sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

A eterna magia do Natal

A verdade é que não vimos sempre o Natal da mesma maneira. O nosso modo de ver o passado em geral vai-se modificando e vamos fazendo o apelo aos nossos sentimentos para continuar a enquadrar certos factos e acontecimentos na nossa vida. Tenhamos vivido mais emoções agradáveis ou mais emoções desagradáveis, temos hoje outra forma de ler o que então aconteceu. De qualquer modo, consigamos ou não efectuar essa releitura com sucesso, o passado não se pode renegar assim de um dia para o outro, embora muitos o façam por razões superficiais que não resistem a uma ponderação mais atempada dos próprios.
O Natal é daqueles episódios de que temos motivos para esquecer alguns, louvar outros e olhar com indiferença para muitos mais, mas se fizermos uma súmula de todos eles continuaremos decerto a ter do Natal uma visão positiva. Podemos dizer que o Natal é a festa para a qual mais pessoas contribuem, mais dinheiro gastam, mas também mais apelam à participação dos outros, mais entusiasmo empregam na sua participação. Não podemos dizer que um Natal foi pior ou melhor conforme o bacalhau que comemos ou as doçarias que provamos. Também não o podemos classificar pelas prendas que nos deram ou deixaram de dar.
Mas não restam dúvidas que, por poucos que possam ser os anos que usufruímos da magia do Natal, foram aqueles em que ousamos esperar por uma prenda no sapato que mais presos estão à nossa memória ou têm nesta mais espaço reservado, por pouco explícito que seja. Havia então algo manifestamente diferente do que acontece nos dias de hoje. Era o significado que o tempo tinha, a maneira diferente como nós lidávamos com ele. Havia um tempo de espera, um tempo que era destinado a essa simulação que, acreditando nós ou não nela, era parte constitutiva da festa, dos seus mistérios e deslumbramentos.
Hoje torna-se muito mais difícil cortar o tempo, suspender o tempo, dar um espaço de tempo próprio a uma vivência que nós sabemos ser única e embora cíclica, decerto modo irrepetível. Vivemos hoje de tal modo atemorizados que não largamos o tempo da sociedade, não temos ocasião para cultivar relações e sentimentos que não tenham a ver com aquilo a que nós chamamos o futuro e que tanta apreensão nos causa. Não se trata somente da maior velocidade que foi imprimida à vida, mas de termos adoptado um estilo de vida que atropela tudo, impõe um ritmo único a todos.
O Natal não é propriamente um tempo para continuar a dar largas ao pessimismo, mas para fazer um apelo às forças que o possam suster. No entanto o que se pode fazer de pior para isso é tornar o Natal um tempo de slogans. No Natal devemos procurar realçar aquilo que nele há de mais genuíno, mas não lhe atribuindo qualidades que não tem. Também não é com o Natal que vamos corrigir tudo, até porque o tempo é pouco. Importante é continuarmos a fazer do Natal aquele tempo para ser vivido na presença de bons sentimentos, como um momento que valerá a pena recordar mais tarde.
Porém a sociedade está a conduzir-nos para uma vivência única, sem tempos e sem ritmos. O individualismo não será a causa, antes será a consequência duma forma de opressiva e permanente imitação colectiva. Precisamos de alimentar continuamente o Eu só porque o ambiente é agressivo, impiedoso, inumano. Numa sociedade aberta já se não recorre apenas aos velhos truques da hipocrisia e do cinismo individuais, mas recorre-se à desvergonha e malvadez colectivizadas.
Criticamos a sociedade, mas quando damos por ela, estamos todos a colaborar. Ao nos preocupamos somente em nos safarmos individualmente não somos senão vítimas dum estado de coisas para o qual vamos também contribuindo. Até os instrumentos colectivos de que hoje dispomos já estão imbuídos da maior perversidade. Todas as formas de associativismo humano estão minadas pelos mais diversos vícios. A actual apologia do Eu resulta em muito do fracassos das vias pelas quais se procurou estruturar o nosso viver colectivo. Mas convenhamos que se não deve construir um edifício em cima da areia movediça.
O dilema da humanidade é este, o Eu de cada homem está em permanente construção. A nossa confiança tem que residir na possibilidade de construirmos uma identidade colectiva suficientemente sólida para resistir no essencial e se ir reconstruindo também pela vida fora. Ao homem só lentamente lhe vai sendo permitido evoluir no sentido de conhecer os mistérios do seu próprio Eu. Hoje os conhecimentos já serão bastantes para se começar a pensar em intuir outros sentimentos pessoais e colectivos, em estruturar outros princípios que suportem outras regras de convivência.
Talvez a humanidade nunca consiga resolver, dentro de parâmetros saudáveis, o dilema da colaboração/competição que é imanente ao pulsar da mente humana. Mas pode melhorar muito. O Natal é esse momento que está ainda no tempo primordial, na inocência anterior às inevitáveis roturas, na satisfação ingénua da existência. Preservar o espírito de Natal é contribuir para manter a esperança num mundo diferente, em que seja maiores as convergências do que as divergências.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

O dinheiro é fonte de relações impessoais

A maioria dos bens que sempre fascinaram as pessoas ainda são aqueles que continuam a fascinar. Esse fascínio tanto se exerce sobre aquelas pessoas que acedem a esses bens normalmente, como sobre aqueloutras que nunca imaginarão serem capazes de a eles aceder. Porém à medida do progresso alguns bens foram perdendo algum fascínio ou, por os vermos mais próximos, passaram a fascinarem-nos doutro modo. O dinheiro está entre aqueles bens que mais fascínio nos criou e persiste no nosso imaginário por si próprio ou porque é a via mais eficaz de acesso a muitos outros bens igualmente fascinantes.
Outrora víamos o dinheiro a uma outra distância, estava no domínio de alguns e a maioria de nós preocupava-se em obter um pouco dele mas para logo o gastar. Não chegava a satisfazer aquele fascínio e nesse aspecto o dinheiro era o mal que se disfarça e persiste em nos enganar. A maioria de nós ficaria pobre por toda a vida, porque só a custo obteria meios para subsistir. Vivíamos permanentemente em crise porque era difícil obter um trabalho certo e bem pago, porque havia excesso de mão-de-obra. Felizmente entretanto ocorreram algumas mudanças.
Ao capitalismo, emergente pela mão da burguesia, interessava o aumento da circulação de dinheiro, o aumento da oferta de trabalho, o aumento da procura dos bens produzidos. As remunerações do trabalho cresceram, o dinheiro circulou com mais facilidade, chegou mais próximo da vista de cada um, passou mesmo a ter um significado diferente. Surgiu outro interesse pela posse de dinheiro, pela questão do seu valor e das suas flutuações. Ao mesmo tempo surgiu a preocupação em saber quem detinha a posse do dinheiro porque tal era correspondente à detenção do poder.
Formou-se então uma corrente de pensamento, o iluminismo, que concluía que a posse do dinheiro e do poder seria mais vantajoso na mão do Rei do que na mão dos senhores feudais. Essa linha de pensamento evoluiu para o comunismo e passou a defender a posse do dinheiro pelo Estado em detrimento dos particulares e do Rei. O Estado como Entidade mais benigna que o Rei, teoricamente sem barriga e sem humores ou deslumbramentos, trataria do dinheiro, da sua distribuição sem ter que respeitar políticas de favor. Também seria um modo de impedir a acumulação do dinheiro e a sua aplicação caprichosa.
Esta corrente de pensamento defendia que o Estado era capaz de garantir um controle bastante do dinheiro. Uma das formas a que o Estado podia recorrer para ajudar a esse controle e para diminuir o fascínio do dinheiro seria a usufruição livre de bens colectivos de que o Estado se apropriaria. Porém as experiências históricas não levaram a uma boa gestão desses bens teoricamente colectivos nem conduziram a uma gestão equitativa da inovação e do desenvolvimento. Uma razoável distribuição do dinheiro não correspondeu a um bom nível de desenvolvimento social.
O Estado não é uma entidade abstracta, é uma organização específica cujo principal elemento é o homem. Ora o homem não se deixa reduzir à função que lhe caiba em sorte, corrompe-se e deixa-se corromper. Seja qual for o tipo de organização do Estado o fascínio que o dinheiro provoca é o mesmo, a atractividade que ele exerce é superior à de qualquer outro bem e não é anulável por qualquer entidade.
Por outro lado o facto de o Estado ser poder com implicações muito mais vastas do que a simples gestão do dinheiro e da riqueza levou a graves anomalias nas experiências efectuadas. Além de se ter ficado longe de uma boa gestão da economia, a vida social foi afectada ao ponto de terem sido postos em causa direitos humanos e princípios de respeito pelo mais elementar humanismo. Houveram mesmo situações extremas de indignidade, bestialidade e perversão.
Embora haja alguns resquícios dessa linha estatal de pensamento a sua evolução natural conduziu à atribuição ao Estado de um papel mais reduzido, mais limitado, mas mesmo assim com uma intervenção significativa na economia. Esta nova linha de pensamento defendida pelos socialistas renega a anterior e tem pontos de contacto com a orientação preconizada por aquele liberalismo que não assenta num individualismo radical. E em menor grau há pontos de contacto com a orientação que o dirigismo de direita preconiza num sentido idêntico ao da antiga monarquia.
A maioria das sociedades actuais encontram-se nesta situação de equilíbrio instável que tanto pode conduzir numa direcção mais socialista como noutra mais liberal. Uma das características comuns e mais importantes destas duas orientações é o monetarismo, a redução do dinheiro à moeda e da riqueza ao dinheiro. Só os extremistas de esquerda e de direita subestimam esta alteração irreversível no valor do dinheiro.
As sociedades mais primitivas eram orgânicas, satisfaziam as suas necessidades através de transferências directas entre os seus membros. O comunismo foi uma tentativa de regresso a esse passado com a ajuda da intermediação de um poder forte entregue ao Estado. A direita ainda hoje mantém esse espírito em que tem também lugar o caritativismo e outras transacções não monetárias. Há pontos de contacto entre a Esquerda do Partido e a Direita da Pátria, a que por vezes se junta Deus e a Família.
Por mais execrável que o dinheiro possa parecer, ele está incrustado hoje na nossa vida. O dinheiro tem a vantagem de tornar impessoais relações que o devem ser, sendo porém necessário sabermos onde devemos parar. Há na sociedade outras relações mais pessoais que se não devem deixar contaminar pelo dinheiro. Da parte daquela esquerda e daquela direita integralistas continua a fazer-se chantagem sobre a sociedade com princípios que estarão em perigo perante a arremetida do dinheiro. Não será porém de considerar que existe o perigo de o dinheiro conseguir dar um carácter de impessoalidade a toda a nossa vida.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Como lutar contra a pobreza?

Há uns anos a esta parte, em especial depois da queda do muro de Berlim, o capitalismo, não tendo mais que temer, lançou-se à reconquista do pouco que havia perdido e, para nossa desgraça, levou à corrosão do pensamento social-democrata, vulgo socialista. De cedência em cedência a perspectiva baseada no papel do trabalhador, em que por princípio assentaram as ideias de esquerda, foi sendo abandonada. A luta contra a pobreza virou choradinho intragável.
Resistiram os comunistas, enquistados na defesa de declarações de fé já há muito desligadas da realidade e que só fazem sentido dentro dum universo discursivo fechado, já não mais que património arqueológico dessa esquerda fundamentalista que no terreno se implodiu há vinte anos. Hoje essa esquerda em Portugal entretêm-se na ajuda à manipulação de índices, uma atitude pretensamente científica que pretende reduzir cada homem a um número.
A vida política de hoje resume-se às tentativas dos seus profissionais e de algumas figuras ávidas do palanque do “faz de conta que sou político” para fazer tudo para que os sentimentos das pessoas se coloquem numa empatia consigo mesmos, de certo modo à sua disposição. Essas tentativas passaram já por outros domínios em que se pretendia a manipulação directa de sentimentos, mas estão hoje mais viradas para os tais índices, criando linhas viciadas de raciocínio que conduzam às pretendidas conclusões.
Os índices mais utilizados são aqueles que se referem às pessoas, querendo com eles dar uma visão da evolução que terá ocorrido de modo a sair mais favorável em relação às épocas em que as forças políticas que defendem tenham tido mais poder ou tenham estado mais próximas dele. Porém qualquer índice só pode ser utilizado na perspectiva em que se fundamente, na qual foi construído. Ora os tais índices foram construídos noutras perspectivas e não numa perspectiva pessoal, nem sequer numa perspectiva do trabalhador.
Todos aqueles índices que se referem à realidade económica são construídos numa perspectiva do capital, do empresariado, da estrutura liderante da sociedade. Isto também assim acontece porque se invoca como razão a utilização de uma visão pretensamente independente e equidistante, mas também porque a esquerda fundamentalista que sobreviveu à queda do muro de Berlim tem um único sonho que se resume a um retorno ao capitalismo de Estado, useiro e vezeiro na mesma manipulação.
Um caso aberrante é o do índice de pobreza que é utilizado com intuitos que revelam o cinismo de quem o usa. É necessário ter em atenção que no sistema capitalista o homem não é a medida de todas as coisas, antes o homem é, como todas as outras coisas, avaliado em termos das disponibilidades financeiras que pode proporcionar. A medida é o valor que as coisas assumem em termos de troca. Por isso se querem liberalizar os despedimentos, que o mesmo é dizer, trocar um trabalhador por outro sem que isso implique custos.
Para compensar uma manutenção mais cara do que a duma máquina, o empregador não quer suportar custos de aquisição. Por este andar o trabalhador terá que adquirir um posto de trabalho pagando-o. Porém não é este o caminho que me interessa agora seguir. Fiquemos tão só pela pobreza que existe e é necessário combater. Mas não noutra perspectiva senão numa perspectiva humana, à medida do homem e dum padrão de dignidade que lhe devemos atribuir de início, antes da ocorrência de todos os outros factos e inclusive do direito ao trabalho no sistema capitalista.
Os economistas, que hoje já não são mais do que econometristas, colocam o índice de pobreza em valores monetários com que se presume que as suas condições mínimas de existência como trabalhadores seriam satisfeitas. Este critério teria a sua lógica só que é impossível a sua aplicação universal. Parte daquilo que seria necessário num local pode ser dispensável noutro. Depois na economia não monetária, de troca directa, que números aplicar para calcular o índice de pobreza? Os valores que podem ser atribuídos ao produto do trabalho e ao consumo mínimo num sector económico não mercantilista são impossíveis de calcular.
Este tipo de índices são ainda menos ilegíveis, isto é, não traduzem uma visão imparcial e séria, quando aplicados a períodos históricos diferentes para fazer a comparação entre épocas distantes umas das outras. Em primeiro lugar porque não podemos definir para um tempo passado as mesmas necessidades que sentimos hoje e com um custo idêntico para uma satisfação igual. Depois porque há uma grande subjectividade na forma de apreciar até as mesmas necessidades de hoje e do passado.
O tipo de vida, o ambiente social, o contexto que envolve a vivência de cada ser humano ontem e hoje, mesmo tratando-se da mesma pessoa, determinam diferentes graus de satisfação com diferentes motivos e prioridades. A subjectividade do fenómeno da pobreza leva à dificuldade da luta contra ela. Há quem diga que o que é necessário é que se fale dela para que não esqueça e se possa lutar contra ela. No entanto é aberrante que se fale em novos pobres e se metam no mesmo saco aqueles que, com aquisições impensadas de bens e património, se endividaram em excesso. Na minha opinião em qualquer plano a primeira etapa é definir com clareza o objecto da nossa luta, sem o que tudo é vago, impreciso e ineficaz.
É mais fácil definir um objectivo como a atenuação das desigualdades gritantes, bem como o seria a eliminação da fome, se ainda fosse caso disso. Nesta sociedade que se quer atribuir alguma qualidade, qualquer manifestação de fome tem que ser seriamente combatida. Mas não haverão dúvidas que o maior problema de hoje é constituído pela desigualdade que se acentua. Tanta desigualdade traz a pobreza mas não só e combatendo-a eliminaremos também outros efeitos tão gravosos como a pobreza.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

O que mudou em dois anos?

Há dois anos atrás quase todos tínhamos a certeza de ter chegado à identificação da origem de todos os males. Seria a ganância, esse sentimento entranhado no nosso código genético que era capaz de nos levar a cometer loucuras, a passar desvergonhas, mas também a praticar muitos sacrifícios para que os nossos olhos se pudessem encher de brilho ao contemplar o resultado da nossa acção. Fosse dinheiro, ouro, acções, imóveis e móveis reluzentes em tudo os gananciosos podiam ver o seu bem que normalmente seria o mal dos outros, o fruto representativo de todo o mal que estará espalhado por esse mundo além.
Em dois anos o caminho percorrido tem sido outro. Os manipuladores do dinheiro estão desculpados, o mercado está divinizado, passou até a ser um elemento castigador tão necessário à nossa redenção. Cumpramos as regras do mercado e tudo estará bem. Já não vale a pena procurar saber quem está por trás da origem do mal, quem é o real soberano do mundo de hoje, quem pode ditar regras sem que lhe vejamos a sua cara, sem o responsabilizarmos pela sua fiabilidade, sem obter a garantia que tudo será melhor para quem as cumprir e que tudo será difícil para quem quiser fugir ao seu cumprimento.
Passados dois anos há uma culpa colectiva a expiar. O mal já está na gula colectiva e abstracta. Na realidade assim como o rico não é quem tem muito dinheiro, mas quem o gasta, assim quem causa prejuízo à comunidade não é quem ganha o dinheiro é quem o gasta sem o ter. Andamos anos e anos a comer aquilo que não era nosso. Recorremos ao fiado para satisfazer apetites que a televisão, os amigos e até os inimigos nos foram transmitindo. Não é que soframos do mal da inveja. Sofremos somente dos defeitos de sermos seres de imitação.
Ao fim de dois anos não só trocamos de culpados, como também é diferente a culpa pela qual estamos dispostos a julgar os outros. Há um mal geral de que ninguém quer assumir a responsabilidade, mas também que temos dificuldade em atribuir a alguém porque tínhamos de reconhecer que alguém nos quereria mal e ninguém se assume. Quanto ao bem já achávamos ultrapassados os castigos do Éden e podíamos partilhá-lo sem sermos castigados por isso. Faltará quem nos convença que por este facto temos um quinhão de culpa pessoal a assumir. Fomos cúmplices, dirão, ninguém pode andar tanto tempo distraído, mas não nos convencem.
Dois anos depois do começo da crise continuamos com dificuldade em identificá-la. Afinal existe uma só ou mais crises? Andam a enfiar-nos crises após crises, uma por cima das outras, sem hipótese de nos vermos livres de uma que não apareça logo outra para nos tolher o raciocínio. Até há quem diga que a crise é permanente, uns destrinçando que o sistema está em crise, outros dizendo que a crise é própria do sistema. Para uns a crise tem o tempo da sua vida, para outros o tempo que decorre até surgir uma nova. Já sabemos muito de crises, mas desta, da última, sabemos menos do que sabíamos então.
Dois anos são pouco para que possamos concluir que o sistema que tem hoje a hegemonia planetária, o capitalismo, tenha um salvo-conduto perpétuo. No entanto podemos reconhecer desde já que o capitalismo de Estado, vulgo comunismo, já viu os seus dias e assim já não pode ser responsabilizado pelas crises. As restantes formas de capitalismo tem uma resistência superior e mais versátil do que a que respeita ao capitalismo de Estado. No entanto teria o comunismo descoberto que pode ser mais seguro juntar à defesa dum sistema a defesa de uma memória familiar e que o comunismo monárquico possa ser uma solução? Veja-se a Coreia do Norte. Mas se esse mal subsiste a culpa não é nossa.
Em dois anos ter-se-ão acumulado experiências que até aqui só julgávamos poderem ser vividos numa eternidade. Em dois anos o não saber pôde respirar de alívio pelos falhanços sucessivos do saber aplicado. Falharam os astros do poder, os da oposição quase poder. Falharam políticos, financeiros e economistas. A estatística e a previsão foram fracassos seguidos. Muita ciência que se presumia existir, e que não estava sequer ao nosso alcance, foi sendo posta em causa no deslizar do tempo. Afinal o que não está em causa é a dignidade dos ignorantes.
Dois anos são pouco tempo e a sua importância não será relevado no futuro por quem vive agora a sua juventude. Mas proporcionaram uma experiência nova, surpreendente, inesperada para quem já julgava ter vivido tudo e julgava o tempo linear. Gerações futuras talvez se riam da leviandade com que vivemos este tempo, da ligeireza com que abordamos soluções que teimam em fugir à nossa frente. Para as gerações futuras o que se está vivendo talvez seja só o fogo crepuscular que fecha um tempo histórico que queimou demasiadas energias para pouco proveito efectivo.
Dois anos são pouco tempo para sepultar um saber e para construir um outro novo e que não permita tanta manipulação. Mas não podemos ficar satisfeitos com a vitória do não saber e deixarmos que se perca o fermento que se formou porque há sempre algo a aprender no meio de tanta asneira. Não podemos perder a ocasião de banir a hipocrisia que anda aí disfarçada de ingenuidade. Também não podemos permitir que nos continuem a enganar com uma ingenuidade que afinal apenas ambiciona ser hipócrita. Mas acima de tudo confirmou-se que não existem vacas sagradas.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

A cópia que nos envergonha

A meritória iniciativa do “Jornal Alpiarcense” de abertura das suas páginas a colaborações com “textos exclusivos” terá começado da pior maneira. Debitar textos parece ser obrigação dos políticos e dos candidatos a tais, porque na verdade anda aí imensa gente de que se não conhecem as ideias. É bom que a Imprensa Regional também publique textos políticos, o problema estará sempre na originalidade, que talvez seja mais necessária nesta Imprensa do que na que tem carácter Nacional.
A escrita é a melhor forma de apurar uma linha de pensamento para políticos e não políticos. Na minha perspectiva é louvável, mas também profundamente saudável escrever, escrever para iluminar o nosso caminho e, se formos capazes disso, de iluminar o caminho dos outros. Parto do princípio de que, se eu souber por onde vou, os outros poderão ganhar algo com isso. Infelizmente sabemos que não é bem isto com que os políticos se preocupam, raramente caminham do pensamento para a acção.
Os políticos seguem antes e preferencialmente o caminho inverso. Partem das necessidades da acção para o pensamento, isto é, procuram justificações da sua acção em argumentos bebidos na realidade de hoje. Vendo a realidade nesta perspectiva, digamos que defensiva, a ninguém se pode impor que produza uma argumentação original que tenha pensamento inéditos, que não copie aqui e ali frases que já foram proferidas por outras pessoas no contexto ou em contextos similares.
Porém não é admissível que alguém, para dar forma a um texto pretensamente inédito e até exclusivo, copie parágrafos completos de três eminentes pensadores públicos, Cardeal José Policarpo, Adriano Moreira e Jornalista Teresa de Sousa, sem os citar expressamente. Tal abuso revelado pelo Jornal de Notícias em 18 de Novembro de 2010 e ainda não justificado pela sua autora Teresa Freitas, é mais grave ainda porque no texto em causa são plágio o titulo e nove dos seus dez parágrafos. Para salvar o carácter original temos somente o arranjo e o parágrafo final.
A autora terá o mérito de se ter esforçado por tirar conclusões de uma amálgama de excertos colados ao desbarato, sem um fio condutor. Mas não é isso que se impõe nestes tempos difíceis, não chega dar sinais de vida, dizer que se está presente e atento à opinião dos outros. Em relação aos políticos, e é de uma política que se trata, tem que se exigir muito mais. Não chegava fazer aquilo que a Senhora fez, juntar num puzzle afirmações avulsas, mesmo que as tivesse identificado, como era devido. É necessário que se dê consistência às nossas próprias opiniões, para sermos nós a responder por elas.
Escrever por obrigação é decerto uma violência a que se não deve submeter ninguém, sob pena destes resultados. Mesmo um convite para escrever pode ser uma forma de coação sobre alguém. Por seu lado uma recusa de publicação podia ser mal interpretada. A culpa será em última instância da Escola, é aí que ainda é possível esticar as orelhas a alguém. Porém a Escola demite-se da sua função de ensinar a escrever porque infelizmente a maioria dos professores nem sequer está em condições de exigir tal tarefa a eles mesmos.
Reconheço que exagerei na última afirmação. Mas como todos nós nos sentimos bem a distribuir culpas, é a culpa que nos realiza, deixei ficar esta no texto e vamos lá dar também muitas culpas ao aparelho educativo que vai sobrevivendo Ministério após Ministério. As pessoas gostam que nós nos refiramos a estas Entidades um pouco abstractas, mesmo que saibamos bem que quem as constitui são pessoas concretas e que, pelo menos é o que se presume, tenham tarefas concretas a desempenhar.
Não vou dar aqui uma qualquer solução para o problema, o melhor é deixar a culpa solteira. Há areia dentro da máquina, quem a vai lançando e a quem interessa que ela esteja sempre emperrada fica para outra abordagem. Há alguém, não sei quem, que não se preocupa minimamente em que os alunos venham a sair da Escola sem saberem utilizar a escrita como o instrumento mais eficaz para nos ajudar, não só a memorizar, mas essencialmente a aferir a qualidade do nosso pensamento.
A boa escrita sob o ponto de vista formal será uma parte do caminho que é necessário percorrer para nos pôr a transmitir correctamente as nossas ideias, mas também para nos entendermos correctamente connosco mesmos. Porém também é necessário percorrer o resto do caminho sob pena se estarmos a construir um edifício intelectual estéril, bom para nos auto-justificarmos, mas incapaz de nos permitir respirar fora dos contextos que nós somos pródigos a construir no mundo imaginário com que sempre nos cercamos.
Temos que desconfiar da escrita que sobrevoa a realidade, sendo que não são a referências a casos concretos, tão do agrado de certos políticos, que tornam o discurso mais credível. Também não nos podemos convencer que são as trivialidades que nos permitem que comuniquemos com os outros e que consigamos assim manter uma leitura plausível da realidade. Esta é demasiado dura para os instrumentos mentais com que dotamos a nossa juventude. A tarefa da Escola só pode ser esta: de dotar o intelecto de métodos sérios de trabalho, não permitindo que nos andemos a copiar uns aos outros. A pedra parte-se na Escola. Não podemos utilizar a Escola só para aprender a copiar.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Ideias novas para velhos problemas

“Ideias precisam-se”, proclamou há pouco tempo um partido político para que alguém contribuísse com o seu trabalho intelectual para ajudar a colmatar o buraco de quinhentos milhões de euros que provocou no orçamento de Estado. Nós já estamos habituados a que o Governo reclamasse ideias à Oposição e que esta as exigisse do Governo. Mas um apelo assim aos anónimos fregueses desta Pátria já aflita com tantos outros problemas é inédito.
Pegando a moda vai passar a solicitar-se à população em geral ideias para tudo, seja para pagar dívidas, seja para aumentar as exportações, seja para produzir bens que substituam os produtos importados. Até se pedem ideias para resolver o problema geral da economia e por arrasto das finanças públicas. Ter-se-á inventado uma nova forma de democracia directa? Estaremos nós dispostos a fornecer aos políticos ideias que deveriam ser eles a procurar? E em muitos casos não estarão os políticos em imiscuir-se em assuntos foram da sua esfera de influência?
Não falta hoje quem proclame a falta de ideias. Parece que basta dizer isto para que passemos perante os outros como pessoas inteligentes. Pois eu acho que não revela inteligência quem faz esse tipo de afirmações, nem quem debita ideias em catadupa, sem se preocupar com a sua exequibilidade. Há ideias de sobra, umas válidas, mas a que não temos acesso, porque não temos que o ter ou não estão suficientemente maduras e também outras menos válidas, que não terão a estrutura necessário para que sejam ideias passíveis de pôr em prática. A produção desenfreada de ideias sem regras, sem objectivo e destino definidos, só lança a confusão.
Estamos num mundo em que tudo tem uma valor monetário e as pessoas capazes de ter ideias novas neste domínio da economia sabem-no antes de quaisquer outras. Quem tem ideias nos domínios em que podem ser esperados dividendos reserva-as para os momentos próprios. Pagou-se há uns anos ao americano Porter uma fortuna para que ele descobrisse aí uns clusters e que se saiba ele não achou coisa que se veja. Seria caso para perguntar se também, estando nós neste mundo em que as ideias se pagam, os partidos políticos terão dinheiro para o fazer?
Se estiverem no poder ainda poderão arranjar para aí um tacho, mas acho que não o farão para pessoas que dêem ideias na praça pública ou na comunicação social, que tal daria muito nas vistas. Esses tachos devem estar reservados para outro tipo de gente, mais calada e experiente, que saiba onde põem os pés. Mas haverá sempre quem queira dar um ar da sua graça e vá deitando para aí umas ideias de borla. Não sei se tais pessoas se valem do seu sentido de humor ou se estarão a falar a sério, mas pelo ar de alguns até parece que o fazem.
Uma ideia que sobressai pela sua vastidão é o aproveitamento económico do mar. No mar fizemos o nosso maior feito, as descobertas, do mar colhemos a nossa mais vibrante poesia, não resistimos ao encanto da sua vastidão. No entanto quando se trata de saber a quantos portugueses esse mar era capaz de dar trabalho a produção de ideias revela-se estéril.
A pesca é um problema complexo com as suas limitações, o seu escoamento, o seu preço. O petróleo tarda a surgir na quantidade que baste para ser viável a sua exploração. Os portos exigem ligações que não temos, fluxos que não controlamos. Acima de tudo já não nos viramos para o mar com o destemor doutros tempos, nele já só procuramos as gaivotas da desilusão de uns tantos. Afinal não queiramos resolver tudo com uma só ideia porque, quando pretendemos tal, podemos estar a desacreditar uma ideia com algum mérito. E o mar é nosso amigo mas não nos vai cá trazer algo numa bandeja. O mar exige mais trabalho que o simples amanho da terra.
O nosso problema é que nós precisamos com urgência de dinheiro e parece que só agora descobrimos que o Estado é pobre, os nossos vizinhos são tão pobres como nós e se não vem dinheiro das Chinas ou das Arábias estamos perdidos. Tínhamos respeito pelo Estado quando o julgávamos rico, agora que o vemos pobre, que não tem arcaboiço para nos ajudar, antes temos que ser nós a pagar as suas dívidas, desprezamo-lo. O problema agrava-se mais porque também nós individualmente estamos endividados.
Ora cá está uma ideia que talvez devesse merecer a nossa atenção. Não contraiamos novas dívidas enquanto não pagarmos as que temos, é um bom conselho. A verdade é que isso seria um travão demasiado brusco que traria imensos problemas. Bastar-nos-ia a consciência que temos que travar e ir travando efectivamente mas infelizmente aquela consciência custa a interiorizar e acima de tudo pensamos que o esforço dos outros talvez chegue e não precisamos nós de fazer sacrifícios. Esta sim era boa ideia.
Com tantos advogados e economistas prontos a vender as suas ideias não nos devíamos preocupar com a sua falta. Ainda há uns contabilistas e outros curiosos a contribuir para a explosão de ideias a título gratuito. O que é politico está ao dispor de todos e todos temos o direito, e porque não o dever, de nos pronunciarmos. O Estado, mesmo pobre, também é nosso sem o ser. Só que para a capacidade da maioria de nós é suficiente o proferir sentenças sobre a culpabilidade, o apontar de erros, a denúncia de incoerências. Ideias sobre o futuro que se vejam, porque esperamos que ele nos dê razão, são antiquadas.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Imaginação … precisa-se urgentemente

Somos diferentes uns dos outros na nossa capacidade de imaginação e na utilização que dela fazemos. Existem tantas imaginações quantas as pessoas, mas podemos agrupá-las pelas sua maiores ou menores afinidades de modo a podermos dizer que há campos imaginários comuns a cada um desses grupos. “Sempre” houve o imaginário dos ricos e o imaginário dos pobres, sendo que as condições de vida, a segregação social determinaram à partida em que grupos nos haveríamos de incluir.
Além destes imaginários, sempre houveram outros mais ligados à vida prática, com outro tipo de conotações. Há o imaginário do poeta, do marinheiro, do caçador, há mesmo um imaginário do ladrão. Nos dias de hoje são grandes as afinidades entre os imaginários dos ricos e dos pobres e de todas as outras categorias particulares, determinadas pela vivência de cada um, mas também pela capacidade mais difundida de sonhar e de se deixar levar pelas ondas da moda, da aventura, da sorte.
A ampla comunicação hoje existente, decerto não livre, mas sim ainda condicionada, mesmo assim suficientemente diversificada, determinou o acesso pelo menos a uma vivência virtual comum e à possibilidade de inclusão no nosso próprio imaginário de situações só vividas por outros ou até somente imaginadas por alguém. Existe um imaginário mais comum dito popular, mas cujo uso como referência é hoje problemático. A globalização comunicacional determinou uma evolução rápida no imaginário popular e difícil de estabilizar para poder ser definido com a precisão necessária.
É vulgar dizer-se que hoje as pessoas vestem todas por igual, o que não sendo bem a verdade, dá a aparência de uma sociedade mais igual pelo menos no seu exterior. Sob o ponto de vista intelectual é bem evidente que as diferenças são hoje porventura ainda maiores embora as pessoas se iludam porque todos parecemos estar aptos a surgir perante as câmaras de televisão a debitar sentenças sobre qualquer tema mais ou menos actual.
Vivemos hoje num mundo de aparências que não são já aquelas que outrora se adoptavam para sustentar as conveniências, mas são as que ainda enredam as mentes numa superficialidade atroz. É verdade que nos tornamos mais polidos, reservamos os sentimentos mais malévolos só para certos grupos profissionais e sociais, apuramos o sentimento de culpa, vamos tendo maior capacidade de indicar o erro, mas não progredimos na capacidade de decisão, mantemos a ingenuidade dos incautos e o temor dos ineptos, a hipocrisia dos falsos.
O homem é um todo em que a solidez do seu imaginário tem que ser a sustentação das conclusões do seu intelecto. Na maioria dos casos o nosso imaginário está unido a saliva, isto é, facilmente se desintegra e repentinamente ficamos pendurados no ar. Ao inverso o pensamento que não encontra suportado por um imaginário sadio corre o risco de ser estéril. Claro que também existem aquelas situações doentias em que o imaginário, por mais confrontado com a realidade resiste na sua inverosimilhança a todas as tentativas do intelecto para a alterar e redimensionar.
O nosso passado é sempre uma condição basilar a ter em conta como ensinamento, como impedimento de uma imaginação desmesurada, mas também não deve ser um travão à possibilidade de novas concepções. Um imaginário “sensato”, que tenha em conta o passado e seja aberto, permitirá que o intelecto tire conclusões úteis para o futuro. Impõe-se o abandono da velha e nefasta ideia do unanimismo forçado e redutor e a sua substituição pela ideia de partilha consciente e solidária.
Faltam escolas de pensamento interno, já que há uma ou eventualmente mais escolas de pensamento da diáspora que vão contribuindo para o modo de Ser Português, mas por cá o solo é estéril. Pensar o nosso futuro, abrir horizontes que não passem pelo nosso êxodo colectivo, não é tarefa para religiosos enquanto preocupados com o além, para políticos enquanto preocupados com o imediato, para economistas enquanto preocupados só com índices ou outros actores profissionais e sociais só preocupados com o seu campo de acção.
Pensar o futuro é dar largas a uma imaginação que deve provir daquela que serviu de base a muitas das figuras históricas que deram corpo ao Ser Português. Afinal a imaginação que permitiu e até serviu de incentivo a feitos que nos enobrecem há-de ter algo que ainda seja aproveitado nos dias de hoje e permitir que também hoje possamos ser capazes de feitos grandiosos. Diferente é o pensamento daqueles para quem uma cópia seria a melhor solução para que surgissem pessoas audazes. Por aí não vamos lá, de múmias está o universo cheio.
É hábito dizer-se que somos desorganizados e que somos relapsos na nossa relação com o poder. O nosso passado prova o contrário. Quando existe uma chama, quando a alguém surge uma ideia luminosa e tem o poder de a pôr em prática não lhe faltam colaboradores capazes de dar corpo à ideia. Mas entretanto existe de facto uma letargia, o nosso imaginário adormece, ficamos prisioneiros das ideias mais negras, só vemos escuridão. Nesta questão não nos distinguimos em ricos e pobres. Estamos sempre à espera que outros nos dêem a resposta às nossas inquietações.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Agarrem-me … senão eu bato-lhe

Quando se vê grande alarido na praça pública interrogamo-nos sempre sobre se será à séria a discussão ou se só se trata duma daqueles casos do “agarrem-me … senão eu bato-lhe, esfolo-o, mato-o, ou outro mimo mais agressivo”, tão característico da bazófia nacional. Porém, como nunca podemos estar absolutamente seguros que este tipo de afirmações é só uma manifestação de bravata, mantemo-nos apreensivos e reservados. Quem assim fala procura, mas também receia um momento de verdade.
Há uns anos que um alarido destes já vem ocupando o espaço da luta política. Diferentes tipos de armas têm sido utilizados para corroborar a ameaça sempre latente sobre os adversários políticos. Em primeiro lugar há uma regra que estipula que é essencial nunca estar calado. De um assunto para outro, conforme a espuma dos dias o vai determinando, chega-se ao dia em que está encontrada a questão que vai merecer um ataque mais em forma, que pode servir àquele momento de verdade Enquanto procura-se manter a questão na ordem do dia e a dúvida pode ser rentável.
Seja a verdade ou outro tema igualmente abstracto, seja o orçamento ou qualquer outro facto assim tão concreto e quantificável, qualquer questão pode ser usada no confronto político, não sendo pelo seu valor que terá mais ou menos aceitação na opinião pública e relevância nessa luta política. O político acredita sempre que um bom confronto é aquele em que ele próprio está mais confortável seja qual for a natureza da questão. O que tem mais importância é a possibilidade de tornar o mais incómoda possível a situação do seu adversário.
Dar corpo à verdade absoluta não parece ser tarefa a que um humano se possa dedicar, pelo seu carácter absorvente e porque a verdade não é um assunto prático para ser usado na política, pelo que os apelos a tão altos valores redundam normalmente em fracasso. Já a ameaça de lançar uma crise política a propósito do orçamento pode ser uma questão séria e servir para obter resultados mais palpáveis. Em qualquer caso o mais experimentado dos políticos pode fraquejar e tremer perante uma dúvida demasiado longa. É que este “agarram-me … senão” é para levar a sério.
O poder, contrariamente às nossas opiniões mais espontâneas, é fraco. O poder consegue ser tremendo quando isola uma vítima, porém não consegue actuar sobre a multidão, é impotente perante as ondas avassaladoras que, seja por um tempo muito diminuto, os seus adversários conseguem lançar. Quando dois fracos se encontram é normal lançarem ameaças mútuas para substituir um confronto imediato. O poder é fraco quando se vê na necessidade de responder com as mesmas armas, de ocupar o espaço mediático.
O poder confirma a máxima de que nunca estar calado é mais importante do que a natureza dos argumentos que possam ser usados para controlar a situação. Muitas vezes a disputa política fica reduzida a um debate superficial, a recorrência é um recurso permanente, a redução ao carácter dos intervenientes é um risco constante. O “agarra-me … senão” não visa só os adversários, pretende também, senão mais, afirmar uma liderança pela coragem, visa o alargamento do um espaço de influência e de intervenção pessoal.
Ninguém diz “agarrem-nos … senão” pois trata-se de uma acção individual, um “agarra-me … senão” cuja credibilidade depende da força de uma só pessoa, mesmo que ela conte com a força de outros para o apoiar se necessário numa segunda etapa. Todos esses ficarão suspensos da palavra do líder, único com o fogo capaz de despoletar a acção. Este “agarra-me … senão” é quase sempre uma iniciativa pessoal, mas também muitas vezes é um acto falhado. O seu resultado depende da ambição e arte do líder, mas sobretudo da resposta do adversário e da sua sensibilidade para se atemorizar ou não pelas suas atitudes exibicionistas.
O papel do líder, ou pretendente a tal, é tentar anestesiar os seus rivais estejam eles colocados à sua frente ou ao seu lado, porque ainda existe a crença que a exibição de força se assemelha a ela. Mas também se ganha poder com pequenas vitórias que tenham impacto pessoal. Tal ajuda a credibilizar o protagonista e leva os outros antagonistas à apatia e até a perfilhar as ideias antigamente combatidas e a colocarem-se ao seu lado. Há sempre gente dispostas e ceder às ideias vencedoras.
Um primeiro objectivo do “agarra-me … senão” é suscitar o medo. Porém o líder não se pode ficar por aí. Para dividir e neutralizar os antagonistas ele tem que avançar de imediato para suscitar admiração, até porque tal lhe vai ser necessário caso aceda ao poder. Ao levar à prática o “agarra-me … senão” nunca todos ficarão aterrorizados, nem todos ficarão convencidos. O “agarra-me … senão” pode ter efeito imediato, mas também o esticar demasiado a corda pode ser contraproducente.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

O virtuosismo e a perfeição do número

O número é uma evidência que se nos impõe na tradução da realidade. A palavra é uma construção muito mais livre que nos permite descrever com mais ou menos subjectividade essa realidade. O número e a palavra derivam pois de um acto de criação de diferente natureza. O número tem a sua utilização mais básica na distinção entre quantidades, mas todos os fenómenos se podem traduzir em números. O número em si não é uma criação humana, porém essa tradução da realidade em números é um trabalho humano. Podemos dizer que o número é anterior à palavra, porém o seu uso levantou problemas que só a palavra permitiria colocar e resolver.
Sobre o número criaram-se palavras numa dupla linguagem simbólica com uma só tradução fonética. As sequências 1, 2, 3, … e Um, Dois, Três, … são símbolos diferentes mas que têm a mesma tradução. Números mais complicados podem porém levantar problemas. A notação constituída pelos algarismos e outros símbolos matemáticos é a mais expressiva para os estudiosos mas é perfeitamente inelegível para muitas pessoas. As palavras que remetem para números podem ser dispensáveis para os estudiosos, mas são indispensáveis para os outros.
A palavra e o número ajudam-nos a interpretar a realidade e a chegar ao que nela é mais verdadeiro. O número e a palavra completam-se nesse trabalho. No entanto há um domínio que só o número consegue traduzir no qual a palavra é perfeitamente acessória. Tal porém não retira a magia que a palavra adquiriu no imaginário das pessoas, algumas das quais reservam boa parte da magia da palavra para o domínio da revelação. Só que a complexidade adquirida pelo número com grande rapidez remete a sua magia para domínios mais dificilmente acessíveis.
Como todas as linguagens a dos números também tem as suas regras sem as quais seria impossível transcrever a realidade. Porém a linguagem das palavras permite a sua utilização com regras básicas simples e que as pessoas assumem empiricamente até um nível razoável para a vida prática. A linguagem do número é desde o início de uma grande complexidade. Só chegamos de um dado número a outro através de complexas operações que permitem simplificar a realidade e só são possíveis de executar por iniciados.
Em primeiro lugar há necessidade de escolher um sistema de numeração porque seria impossível obter um carácter, dito algarismo, para um volume de números que é por natureza infinito. O sistema mais simples é o binário em que só são utilizados dois caracteres, o 0 (Zero) e o 1 (Um). Neste sistema o número significativo começa sempre por um 1 (Um) e este numa dada posição tem sempre o valor duplo do que o mesmo 1 (Um) tem na posição à sua direita. O sistema binário adquiriu uma grande projecção com a informática que inverteu a relação entre números e palavras ao atribuir um número a cada letra.
O sistema mais conhecido é o decimal que usa os caracteres de 0 a 9. Neste sistema cada carácter numa dada posição tem sempre o valor dez vezes superior ao que o mesmo carácter tem na posição imediatamente à sua direita. São possíveis sistemas com mais de dez caracteres usando-se neles letras a quem se atribui um valor. Assumem assim o papel de novos algarismos numéricos. Quanto mais algarismos usar um sistema de numeração mais curto será o número de algarismos que ele precisa para designar uma dada quantidade. No sistema binário o número 1000 corresponde no sistema decimal ao número 8.
O sistema decimal é o que tem uma transcrição imediata para a linguagem das palavras. Em qualquer sistema o número designa uma quantidade, porém necessitamos de uma conversão para o sistema decimal para que a nossa mente tenha um entendimento apropriado, em especial se a quantidade for demasiado grande ou demasiado pequena. No entanto uma quantidade é uma quantidade precisa e neste caso a palavra assume todo o seu rigor ao designarmos essa quantidade.
O número tem como principal característica a precisão. Se existe aleatoriedade ou imprecisão na realidade também esses factos podem ser traduzíveis em números. Com o número o homem pretende quantificar todos os possíveis domínios em que a realidade se pode distinguir. É essa quantificação que lhe permite actuar sobre a realidade. As grandes vantagens do uso do número são a relação entre fenómenos simultâneos ou sucessivos e a comparação entre acontecimentos da mesma natureza que ocorrem em tempos diferentes.
O virtuosismo do número fascina a mente humana, de tal modo que esta acredita poder construir com o número um mundo perfeito. Na verdade o número é capaz de traduzir tudo o que a realidade comporta e não faz a distinção entre o que será eventualmente maléfico ou benéfico para o homem. A palavra permite definir outras categorias não facilmente quantificadas com influência na nossa vida. O número é perfeito, a palavra está contaminada por alguma imperfeição humana.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

O republicanismo como princípio válido

Temos tanta vontade de comemorar algo que quando não temos nada para o efeito somos levados a fazê-lo do irrelevante. Precisamos de modo premente de ter algo a celebrar, algum momento que, tendo sido decisivo e favorável, pelo menos tenha ajudado a que o nosso percurso não tenha sido pior do que tem sido. Sendo assim custa-nos distinguir entre aquilo que é significativo e aquilo que se destina apenas a encher número.
O caso das comemorações do Dia da Implantação da Republica, o 5 de Outubro pode-se incluir entre aqueles que tinham perdido quase todo o significado por ter entrado numa rotina incaracterística. Subitamente este ano o 5 de Outubro reapareceu, foi um relativo êxito, chamou a atenção, despertou a curiosidade para o momento em que ocorreu a mudança e para que se clarifique o que distingue dois regimes assentes em pressupostos claramente divergentes.
Na nossa história o 5 de Outubro não tem comparação com as Descobertas, o nosso maior feito. Tendo sido uma rotura, não foi no entanto um avanço imediato e significativo. Foi tão só um começo, um momento dado já muito antes por inevitável, mas de que o seguimento foi sempre uma incógnita. A esta afirmação de republicanismo viriam a faltar muitas outras condições para que a nossa caminhada pudesse ter sido mais auspiciosa. Na verdade quase tudo falhou ou foi reversível.
O Marquês de Pombal e o Liberalismo Monárquico haviam feito muito mais pelo País que os 16 anos de Republica foram capazes de fazer. A Primeira Guerra Mundial foi um desassossego para nós. Salazar haveria de eliminar quase tudo o que a I Republica fez, mas não eliminou as transformações operadas nos séculos anteriores. Para Salazar o primordial era eliminar tudo o que cheirasse a I Republica. Essa obsessão haveria de condicionar toda a sua acção.
Noutros 5 de Outubro já tínhamos sentido o vazio, um sentimento de tempo perdido, sem outra repercussão que não fosse a de mais um dia feriado. Felizmente que neste ano do centenário o 5 de Outubro readquiriu algum sentido mercê da visibilidade que lhe foi dada. Subitamente conseguimos vislumbrar para além da noite salazarista uma luz que resplandeceu e nos iluminou um pouco mais os dias de hoje. A campanha salazarista contra o republicanismo, em todas as suas implicações parece ter-se desvanecido, enfim.
O republicanismo é um princípio solidamente arreigado, que nem Salazar conseguiu desrespeitar em alguns dos seus aspectos, mas que merece mais aperfeiçoamento e difusão. Porém nenhum princípio se pode afirmar pela negação de um qualquer outro. Também o republicanismo se afirma por ser aquele que mais se coaduna com a condição humana, na sua diversidade e na sua luta contra a degenerescência.
A comemoração do derrube da monarquia seria pouco porque quando outras condições são propícias, e a monarquia nem sempre é nefasta, a sociedade é capaz de se desenvolver e de grandes conquistas civilizacionais. Mas o facto de a monarquia ter alguns momentos positivos é muito pouco para a defender. A mobilidade social tem que ter plena expressão pela possibilidade de acesso de qualquer um a qualquer cargo ou função na sociedade. Não é legitimo que se imponha um lugar à nascença seja qual for esse lugar e seja qual for a estirpe de quem o ocupa.
O republicanismo já se impôs à consciência universal de modo que mesmo onde há reinados ficou o Rei mas morreu a função que tradicionalmente lhe estava associada. Só que tal situação é ainda mais negativa porque impede outro tipo de soluções do tipo presidencialista que se adaptaria melhor às características de alguns países. Melhor que um Rei fraco seria melhor um Presidente forte.
A verdade é que no mundo ocidental em geral as situações de monarquia que resistem e sobrevivem o fazem mercê de uma escolha implícita feita pela população. Esta entende que o Presidente do País não necessita de mais poder do que genericamente é outorgado aos Reis. Mas tal resulta num equilíbrio instável de todo improvável que se mantivesse sem rotura neste País. Nós adaptaríamos de bom grado uma forma presidencial, mesmo imperial, mas não toleraríamos um Rei de pacotilha a fazer figuras caricatas e a navegar entre o trágico e o ridículo.
Como quando ocorreu a implantação da República tínhamos um Império que havíamos segurado a custo com o beneplácito inglês há quem pense em que estaríamos bem. Na verdade não tínhamos arcaboiço para desenvolver tão vastas terras nem com Monarquia, nem com Republica, nem com a ditadura de Salazar. Depois do segregacionismo de Salazar só nos restou sair do Império pela porta pequena.
A ideia sebastianina de um Rei forte ou de um Presidente forte surge periodicamente na consciência nacional. No entanto é hoje evidente que nos colocamos numa situação de dependência do exterior que não permite tais soluções. São muitos os poderes que se cruzam e o político tem sido o poder que mais tem perdido com esta evolução. A situação parece propícia para um demagogo qualquer aparecer a reclamar para si a solução de todos os problemas pátrios. Felizmente o republicanismo contribui para que venha ao de cima o bom senso imprescindível para ultrapassar este difícil momento de modo democrático e participado.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

A busca incessante da palavra

A palavra é a mais fantástica realização do homem. Ela permitiu a fixação do significado da “coisa” e o avanço para a definição de “coisas” cada vez mais complexas. Isto, na sua aparente simplicidade, não é nada de banal. Conseguir intelectualizar a realidade, mesmo que com o apoio da imagem, do som e da memória doutras sensações proporcionadas pelos outros orgãos humanos, é uma tarefa só possível com a palavra. Traduzir tudo pela palavra tem sido um trabalho árduo a que o homem se tem dedicado com perseverança há séculos.
O homem normal, se assim podemos dizer, e o intelectual, pressupondo que este é o homem que adquiriu a capacidade de trabalhar mais facilmente com a palavra, preocupam-se em que a sua palavra tenha uma correspondência inteligível com a realidade. No entanto o homem não tem, mesmo no seu delírio, a necessidade de criar palavras que não tenham correspondência na realidade. Os estados de espírito que pressupõem algum devaneio dão uma imagem distorcida da realidade, mas não se afastam dela. Só mesmo a palavra permitirá um reacerto, algum recentrar do homem nessa realidade.
Dominar a palavra é dominar a realidade, é conseguir a imagem intelectual mais aproximada, menos equívoca desta realidade. Sem dominar a palavra podemos ter a noção da tendência, o efeito da onda, a premunição do impacto, mas não compreendemos os fenómenos, nem conseguimos agir sobre eles. Com o domínio da palavra nós podemos chegar aonde nem a imaginação nos levaria, ficar aonde a sensatez não nos aconselharia parar sequer. Só a palavra nos permite uma visão da realidade imune à influência das próprias forças que a constituem. Só a palavra nos permite um caminhar sem sobressaltos e uma paragem num tempo que nos agrade mais.
Sem o domínio da palavra, o homem dá imensos saltos no seu pensamento, até se poderá tornar mais destemido, porém é um ser menos consistente. Ninguém terá conseguido preencher os interstícios existentes no domínio universal da palavra, nem sequer as lacunas existentes no seu próprio pensamento de modo a poder ter a garantia de que segue o seu caminho com segurança. Porém, na vida prática, poucos se podem estar a preocupar em cimentar intelectualmente esse caminho, é mais prático cimentá-lo financeiramente. Daí as falhas que podemos detectar no esforço discursivo da maioria.
Haverá muitas outras formas de realização, parecendo mesmo despiciendo, ou pelo menos excessiva para muitos, esta preocupação com a palavra. Ser médico, engenheiro, advogado, informático, humorista, cantor, empresário é para muitos de maior importância, embora seja cada vez mais evidente a preocupação com o domínio da linguagem apropriada à sua função, com o domínio das palavras que remetem para o seu universo, o que já revela alguma preocupação com a palavra na sua utilização mais genérica e participada. No entanto é sempre possível distinguir entre o uso mais interesseiro ou mais participativo da palavra.
A palavra permite o discurso que é uma forma de navegar sem remos, sem velas, sem correntes de qualquer espécie. Porém o discurso também se pode desenvolver sobre correntes e necessita então de descodificação. Podemos construir múltiplos discursos sobre a palavra. De certo modo podemos dizer que a palavra perdeu ou nunca chegou a ganhar precisão porque ela se não impõe por si só. Assim o discurso sofrerá sempre de um grau de imprecisão razoável. Põe-se o problema a quem caberá garantir a uniformidade significante da palavra.
O formalismo empregue na criação das palavras, tanto quanto o formalismo usado na criação do discurso permitem-nos alguma segurança com uma interpretação uniforme. No entanto a intenção é parte integrante do significado atribuído à palavra, pelo que estar de sobreaviso é a atitude mais acertada. Criam-se linguagens próprias para que com as palavras se atinjam efeitos determinados. Esta possibilidade de uma mesma palavra ser usada em diferentes linguagens reduz em muito a credibilidade dessa palavra, e por extensão da palavra em geral. Teremos que compreender, mas não aceitar que a diversidade dos caminhos crie interpretações diferentes.
A palavra adquiriu a capacidade de produzir em nós um efeito psicológico que nos prende à interpretação mais autêntica que lhe atribuímos. Porém não produz em todos e a todo o momento o mesmo efeito. A inteligibilidade da palavra pode exigir que se lhe retire a roupagem que lhe tenha sido posta. O rasto, a impressão que nós associamos a uma palavra é uma faca de dois gumes. Esta impressão pode mesmo ser vincada, causar uma sensação de alívio ou pelo contrário, constituir um elemento de pressão, uma carga psicológica que se vai acumulando.
A palavra não nos incomoda se conseguirmos que outrem a não aprisione. Porém, quando retida para uso em contextos pré-definidos e tendenciosos, a palavra pode mesmo dilacerar-nos. Isso pode acontecer se for manipulada por quem está no poder ou por quem o ambiciona e pensa estar perto de o atingir. Mas também quando as intenções de quem a profere são ingénuas, isto é, já não traduzem uma intenção declarada. Só que o uso inadequado da palavra também ajuda a revelar as lacunas da personalidade. Doutra forma não lhes teríamos acesso, pelo que é pela boca que “morre” o peixe. A palavra é a fonte e está no centro da nossa civilização.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

É Bom Ser Português... ... ... Lá fora

Esta afirmação tem sido expendida por vários e eminentes portugueses que as vicissitudes da vida levaram a outras paragens onde passaram parte significativa do seu tempo. Disse-o recentemente Luís Figo no seguimento de outros de quem em Portugal é posta em causa a honorabilidade a propósito de casos de contornos que não são da sua responsabilidade. Quem não terá acreditado foi Carlos Queiroz que, depois de vários sucessos lá fora, que lhe trouxeram admiração e notoriedade, acabou por vir para cá para sucumbir sem glória nas praias lusitanas.
Prometo não continuar no mundo do futebol, não porque tenha contra ele qualquer aversão, mas porque tão só é um mundo em que as ideias se trucidam umas às outras. As opiniões são limitadas, como em tudo que é tão fugaz, e os opinadores são mais do que muitos. O futebol é um mundo em que só os génios conseguem ser originais, tanto dentro do campo, como na teorização do jogo, e aí teríamos que nos vergar todos àquelas personagens que nos vão dando algum estímulo para continuar a pensar que há sempre algo em que podemos ser os melhores do mundo.
Do futebol podíamos passar para a política, até porque não faltará quem diga que este problema da nossa frustração por estarmos cá dentro e não fugirmos todos lá para fora é mesmo político. Concordamos que também aqui neste domínio acontece o mesmo fenómeno que no futebol. Pessoas cá vilipendiadas são lá fora enaltecidas. Se no futebol a culpa é nossa, também terá sido pelo nosso mau humor que personagens com o sucesso externo de Guterres e Barroso não foram cá aproveitadas e o foram lá fora após terem cá tido desempenhos a nosso ver medíocres ou mesmo maus.
Como no futebol o que cá se joga seria péssimo, não fora a contribuição dada por tantos estrangeiros que cá estão, também na política se pode presumir, para nossa desgraça, que os piores terão cá ficado, quando já tinham experiência e idade para se lançarem noutros voos. O problema é que ninguém os quis. Lá vamos nós ter de escolher entre aqueles que não nos largam porque, infelizmente, acham que este é o lugar deles, seja o Cavaco Silva, seja o Manuel Alegre.
Claro que na política as opiniões são mais do que no futebol e o produto posto à discussão do público é muito mais trabalhado, com maior complexidade. Mas lá estão José Sócrates, com a sua persistência razoável para nos acalmar sobre os desafios que nos esperam e Passos Coelho, com a sua truculência light para nos sossegar sobre as tragédias que Ferreira Leite nos havia prometido aleivosamente, mas que também ninguém pode negar de modo absoluto. Sucesso evidente, insofismável nenhum vai tendo, restando talvez esperar que algum falhe para que se lhes dê valor lá fora.
Esqueçamos também a política enquanto não aparece outro político que cá seja ultrajado e louvado lá fora. Vamos para o domínio do trivial em que a culpa não deixará de ser igualmente nossa. Muitos têm sucesso lá fora quando dizemos que para nada serviriam aqui. Infelizmente a maioria pode ser referida mas apenas esporadicamente na imprensa nacional. Mesmo assim todos sabemos que cá medra o bom e o ruim, mas temos de recorrer ao estrangeiro para criar os nossos Ídolos.
Só passando a fronteira se vê a qualidade da colheita que cada um dos cá nascidos pode proporcionar. Na nossa boca não deixamos passar nada, mas também não estamos muito convencidos da nossa razão. Estamos na disposição de condenar todos, mas também de os perdoar a seguir, convencidos que parecemos estar de que, com a nossa palavra o mal está feito e se não vai esvair. Ou será que o mal feito é o húmus da nossa vida?
Andamos todos sobre terreno minado no qual é impossível definir um rumo. Se não nos tivessem criado tantas dificuldades talvez fossemos mais ousados. Porém não nos deixaram rasto de uma caminho a seguir, capacidade para discernir. Deixaram-nos no mar alto, temos visões ondulantes que se não deixam fixar em objectivos tangíveis e visíveis para todos. Não nos afastamos do mais seguro e rotineiro, com receio de nos perdermos.
Quando estamos no estrangeiro trabalhamos para aquilo que esperam de nós. Cá trabalhamos para aquilo que de nós esperamos. Como não sabemos aquilo que podemos exigir a nós próprios, também não o sabemos definir para os outros. Lá fora queremos agradar a quem nos paga. Cá dentro queremos agradar a todos aqueles a quem não definimos como inimigos, o que é o caminho garantido para não agradar a ninguém.
Por fora o mundo abre-se-nos gracioso, brilhante, atractivo. Por cá o mundo tem sempre uma sombria nebulosa de maledicência, de inveja, de desfaçatez. Avançamos para o mar alto com decisão, audácia, destemor, para longe dos olhos que nos tolhem. Conformamo-nos a construir castelos na areia quando antevemos o mar bravo e o nosso ânimo esmorece. Mesmo sem serem grandes, entretemo-nos a destruir à socapa os castelos dos outros. Até nas brincadeiras privilegiamos o jogo sujo.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

A dignidade, quem a pode sustentar

Somos levados por vezes a pensar que há conceitos que já não são aplicáveis nos dias de hoje. No caso da dignidade é um conceito tão em desuso, parece-nos tão gasto e sem valor, com tão pouca gente a reclamar ser merecedora do seu conteúdo, que nos esquecemos que existe. A dignidade talvez ainda pulse com o mesmo vigor doutros tempos e nós não estaremos actualizados sobre a sua caracterização? A dignidade será já pouco e teremos direito a reclamar muito mais? Alguns casos recentes de apelo à defesa da dignidade humana fizeram-nos pensar que não.
Habituamo-nos a apelar à dignidade somente em casos extremos. Aparentemente a dignidade só é posta em causa esporadicamente, o que leva a que nos esqueçamos dela e a perdermos a noção da sua importância. Somos mesmos levados a questionar o benefício em termos da estreiteza ou largueza dessa noção basilar em termos civilizacionais. Temos um conceito mais vasto da dignidade, sem que achemos que ela deva ser invocada a propósito de tudo ou nada. Dar dignidade à dignidade é o nosso propósito.
Porém é manifesto aos nossos olhos que muita gente vive sem uma defesa eficaz da sua dignidade A fuga de muitos é para a defesa de uma espécie de dignidade grupal que foge à noção mais elementar de dignidade e permite que elementos isolados se não preocupem com a sua defesa, mas queiram beneficiar dela. Essa intenção de esconder o indivíduo não é correcta. Por outro lado o pertencermos a um grupo é às vezes uma condenação, não um handicap. Nesse caso contribuir para a dignidade do grupo também é virmos a beneficiar com isso.
A dignidade faz parte do nosso património intelectual. Há muito que sentimos a necessidade de defendermos uma série de direitos que nos emprestam essa qualidade. A dignidade é uma qualidade atribuída e, na sua pureza é uma qualidade pessoal que preservamos, mas que certos grupos desvalorizam. Só a sociedade na sua asserção mais vasta é capaz de aferir os valores que façam parte integrante da dignidade do indivíduo, beneficiário ou não da sua integração social.
Todos, mesmo sem a reclamarem, aceitam a dignidade como um atributo insubstituível na vida em sociedade. Não se confirma que a dignidade natural exista. Sem estruturas sociais a dignidade esvai-se. A dignidade convive mal com a selvajaria. A dignidade pertence ao domínio do social, do civilizacional. Porém à dignidade só podemos atribuir um valor absoluto se houvesse consenso social sobre a sua caracterização mínima.
Sabemos distinguir aqueles que têm dignidade face àqueles que a não têm e mais ainda sabemos distinguir as pessoas que possuem mais dignidade de outras que só fazem o mínimo por a merecer. Afinal a dignidade pesa-se ou não? Presunção e água benta cada qual toma a que quer, dirá quem não dá real valor a conceitos que se referem à afirmação pessoal, mesmo que concedidos pelos outros. Será que este conceito já não nos faz falta? Aceitar um sim seria aceitar a indignidade.
Todos queríamos um mínimo de dignidade respeitada nos países mais miseráveis e nas situações mais degradantes. Será que as pessoas vivendo essas situações são incapazes de definir uma dignidade básica que façam respeitar por todos? Estas situações dão-nos a noção da relatividade do conceito, mas não nos podem fazer depender a relatividade das circunstâncias e da condição social de cada um. Todos mereceríamos à partida uma dignidade que não seria mínima nem máxima mas igual. Para garantir essa dignidade seria necessário garantir condições em que as pessoas seriam incentivadas a fazer o quanto baste para o merecer.
Aparentemente a sociedade em geral não está hoje em situação de poder facultar as condições mínimas que garantam a dignidade, mesmo a que dependa do merecimento de cada um. Se a indignidade se reduzisse somente àqueles que rejeitam aquelas condições já não estaríamos mal e colocar-se-ia então à sociedade a sua dificuldade em dar ao conceito um carácter cada vez mais absoluto.
Partindo do princípio que as condições estejam criadas, será mais fácil definir pela negativa. A indignidade seria então a recusa a ter um comportamento humano, seria o aviltamento da condição humana, a perfídia constante e perseverante, a reiterada perversão. Mas se este conceito satisfaz, as formas de indignidade que mais nos apoquentam não se reduzem àquelas atitudes que vitimizam pessoas determinadas escolhidas intencional ou ocasionalmente.
Os comportamentos indignos são hoje maioritariamente de outra natureza e criam vítimas aleatórias, à distância, indeterminadas. As vítimas não vemos olhos nos olhos aqueles que ferem a sua dignidade. A indignidade campeia-se assim com a liberdade de quem sabe que pode agir impunemente. As pessoas desistem de procurar as razões do seu aviltamento.
A dignidade das pessoas é um assunto íntimo, uma questão pessoal, uma qualidade intransmissível. A dignidade foge às nossas convicções, vai para além das razões que possamos encontrar para o nosso comportamento. Não haverá dúvidas que temos dificuldade em não lhe deixar distorcer os contornos. Sabemos que temos a nossa, que tudo fazemos para a preservar e fortalecer. Mas quem pode ser hoje o fiel depositário de um valor tão importante na nossa sociedade?

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

A humildade é a base da dignidade humana

Ter algumas ideias a expressar sobre qualquer assunto que se aborda intempestivamente mesmo pode dar jeito, mas pode ser problemático perante uma assistência mais preparada. Ninguém gosta de estar em branco, seja sobre que assunto for. Um incómodo, uma sensação de vazio causam um desagrado que nos preocupamos em que não transpareça. De tal modo que, para não dar sinais de fraqueza, caímos na tentação de falar de trivialidades, de tirar conclusões por verosimilhança ou por outro método qualquer.
Quando esta prática se torna habitual é porque caímos no erro de acreditar que temos um método intelectual eficaz para responder a todas as interrogações e mesmo para deixar os outros embasbacados e submissos. As nossas posições passam a ter a categoria de posições de princípio, inquestionáveis, quando muito complementáveis. Quanto menos lacunas do nosso conhecimento se revelarem melhor. A verdade é que socialmente estas posições rígidas rendem e quem o pode fazer estrutura mesmo a sua vida e os seus relacionamentos nesta base egocêntrica. Que os outros nos digam: Este indivíduo sabe, é o nosso maior prazer.
Na retórica social também tem muito importância o que nós dizemos sobre a nossa disponibilidade para andarmos sempre a aprender. No entanto essa afirmação não é tão generosa e genuína como à primeira vista pode parecer. Poucos afirmam peremptoriamente que nada sabem sobre um determinado assunto. Poucos se prontificarão a fazer tábua rasa do seu conhecimento anterior, quando até sabem que só tem uns laivos de conhecimento recolhidos aqui e ali, sem sistematização e sem assimilação. Convencer os outros que já sabemos quase tudo, e mesmo assim estamos prontos para aprender, não é tarefa fácil.
Perante quem nos pode ensinar qualquer coisa, e aqui também não devemos ter ideias feitas sobre o valor dos outros, só devemos ter uma atitude que passa pela humildade de nos colocarmos com toda a abertura de espírito, com a predisposição para aceitar a visão patrocinada pelos outros e para a partilhar, se for caso disso. Porém muitas vezes o nosso ego é demasiado grande para admitir uma coisa dessas. Ou então quem já se não terá fartado de ser humilde, se os outros lhe não dão valor? O drama reside que aquele pouco que possamos saber sobre um assunto pode ser o impedimento para ficarmos a saber mais alguma coisa quando definimos esse saber como uma posição de princípio.
Não confundamos humildade com o resultado de uma qualquer humilhação. Sermos humildes intelectualmente será mais fácil se o também formos na vida prática, mas os problemas que podem surgir são imprevisíveis. A humildade tem que resultar de uma atitude consciente perante os outros, apostando em que estes serão capazes de assumir ou vir a assumir uma atitude semelhante e a não se aproveitarem da humildade alheia. Porém muitos de nós renuncia conscientemente a atribuir a muitas atitudes a validade que elas mereciam e fica-se somente pelo cariz moral, desligando-as da vida corrente.
Ficando-nos sob o ponto de vista intelectual, constatamos que são imensas as pessoas que simulam ter conhecimentos que não têm e que só reconhecem aqueles que procedem como eles. Entre pares é mais fácil fazer compromissos e a vida é um mundo de compromissos. Muitos de nós, só pelo facto de não integrarmos um grupo manipulador, chegamos ao ponto de não nos empenharmos em fazer valer os conhecimentos que temos. Tal atitude assume uma especial importância quando estudamos, porque então há necessidade de termos uma participação activa para aprendermos.
Na vida prática está nas nossas mãos a possibilidade de fazermos alguma coisa para não conviver e mesmo para não pactuarmos com pessoas desonestas. No estudo isso é mais problemático. Temos que assumir compromissos de natureza diferente. Nesta situação há necessidade de associarmos mais intensamente a humildade de quem estuda à honestidade de quem ensina. É o desrespeito deste princípio que tem levado aos maiores equívocos. Quem estuda não tem em geral a força suficiente para pôr em causa a honestidade de quem trabalha, já que é pressuposto que o estudante o não faça. Quem ensina não raro confunde humildade com submissão, o que seria pressuposto não acontecer.
Fora deste mundo difícil da transmissão do conhecimento também podemos fazer alguma coisa para a melhoria do clima intelectual. Podemos clarificar as condições em que aquilo que resta da vida intelectual seja assumido com a dignidade que se impõe. Em termos intelectuais não é bom pressupor que devemos colaborar ou competir, a não ser que o nosso trabalho seja incluído num contexto específico. Apenas devemos contribuir para a dignificação da pessoa humana, com base no desenvolvimento de ideias próprias, suficientemente suportadas no conhecimento histórico e no conhecimento prospectivo.
Perante a impossibilidade de definir regras que a todos obriguem, tenhamos a capacidade de sermos humildes. Não é fácil abstrairmo-nos que vivemos num mundo em que a defesa dos bens materiais está de longe em primeiro lugar, mesmo quando com falsidade o não aceitamos. Constantemente estamos mergulhados na defesa de situações imediatas que exigem respostas que não estamos certos respeitar os princípios que defendemos. Esta também é a razão porque confiamos muitas vezes em pessoas que julgamos estar para além deste envolvimento imediato. É a estes que devemos exigir mais humildade.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

O apego dos Limianos às suas Feiras Novas

Quando tentamos averiguar o motivo da vinda de tanta gente às Feiras Novas é vulgar não encontrarmos uma resposta precisa e decisiva. As Feiras Novas têm muitas constituintes, mas tem em especial uma parte religiosa, outra comercial e outra lúdica. A parte religiosa já terá tido mais relevância no conjunto desta iniciativa, mas que dá ainda o seu contributo para que na segunda-feira, um, dia não feriado, haja uma afluência significativa, em especial à tarde, de pessoas.
As Feiras Novas são um imenso mercado aproveitado por vários sectores comerciais para fazer os seus negócios. É nas Feiras Novas que se encontram aqueles artigos que não se vêm nas restantes feiras do ano. Entre aquilo que se espera e o inesperado, a novidade, de tudo se encontra, o que é necessário é procurar, dar uma volta pelo areal e pelas alamedas, que por todo o lado aparece quem nos queira vencer algo.
As Feiras Novas são um imenso parque de diversões que atrai a mocidade para utilizar velhos e novos divertimentos. Também nas Feiras Novas há eventos para todas as idades. Para os mais velhos há os cortejos e os grupos musicais, os bombos e as concertinas. No entanto, por mais esmero que ponham na realização das Feiras Novas, o atractivo maior continua a estar no ambiente, no clima festivo, na confraternização.
Muitas pessoas dizem que não seria necessário que a comissão de festas se preocupasse com achar novos números para preencher o tempo festivo que as pessoas viriam de igual modo. O essencial seria o bom tempo, que mesmo o mau tempo ainda permite que as festas sejam grandiosas. Não será tanto assim, uns atractivos fazem sempre falta, mas não haverá dúvidas de que o ar festivo surge com uma espontaneidade que surpreende todos.
Um desafio que se apresenta é manter o carácter genuíno que ainda subsiste nestas festas. Elas ainda ligam um mundo rural em permanente extinção a um mundo urbano constituído pelos antigos senhores das terras que mantiveram a elas as sua ligações, e tudo fizeram para que esse mundo rural subsistisse intocado e intocável, e a um mundo suburbano que mistura tudo, faz a amálgama de realidades diferentes e acaba que destruir aquilo que podia ser conservado e conserva somente aquilo que é caricato.
Talvez não cheguemos a acordo sobre aquilo que nas Feiras Novas é genuíno, mas decerto que sobre aquilo que não é genuíno o acordo será mais geral. Numa localidade vizinha foi chamada a atenção para o uso de ténis e calças de ganga nos vários desfiles alegóricos. Efectivamente concordamos que é aberrante ver um camponês ataviado à maneira da cintura para cima e vê-lo desfilar com o conforto duns ténis modernaços e policromáticos. Também não é espectáculo digno ver imensa gente de copo de plástico cheio de cerveja espalhando encanto por todo o recinto festivo.
Valores mais altos se levantarão. Não será fácil arranjar participantes para os cortejos de entre gente habituada a outros meios obrigando-os a adornar os seus delicados pés com toscas chancas de madeira. Não será fácil arranjar patrocínios tão valiosos como os que são facultados pelas marcas de cerveja. Porém tudo deve ser feita para manter o enquadramento em que as festas sempre decorreram com adaptações à modernidade, mas sem cedências ao mau gosto e aos poderes comerciais.
A crítica não será suficiente para desvalorizar o esforço que é feito para realizar estas tão grandiosas festas. Porém era bom que, aqui que ninguém nos houve, se reconhecesse que não chega a ser crítica todo o esforço que possa ser feito para que as festas não sejam adulteradas. Quando esse tipo de crítica é feita entre amigos, entre aqueles que gostam das festas e a elas aderem com entusiasmo, isso não passa para os estranhos, para aqueles para os quais teríamos que adoptar outra linguagem. É aqui estaremos entre amigos.
Nos seus 100 anos o Cardeal Saraiva também é uma referência nas Feiras Novas. Realcemos o seu contributo para as difundir, mas principalmente para manter entre os imigrantes o enorme apego que todos eles, como todos os limianos, dedicam às suas Festas.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Novas ousadias se impõe a Portugal

Mais de oitocentos anos de história consolidaram uma língua, delimitaram um território, definiram um povo. Fomos capazes de mudanças, assimilamos contributos de várias proveniências, aproveitamos da cultura de gente variada. Fomos capazes de algumas ousadias que ajudaram a entrelaçar os nossos caminhos. Aproveitamos bem as nossas virtualidades. Só não demos a consistência precisa às nossas conquistas. Tivemos sempre uma sensação de vazio, de inacabado, de saudade.
Temos estado permanentemente em risco porque outros maiores nos têm afrontado. Não podemos sustentar uma guerra constante e frontal contra adversários tão poderosos. Quando o tentamos baqueamos. É verdade que humilhados também nunca fomos. No nosso passado existiram porém algumas temeridades, impensadas ousadias. Para não nos andarmos a martirizar a toda a hora pelo que estragamos do que havíamos conseguido precisamos de ter plena consciência dos nossos limites.
Se houve outros mais pequenos que nós, nossos antagonistas ou não, que fizeram mais, deixemo-los com os seus feitos porque muitos mais foram os que fizeram manifestamente menos. Não nos podemos deixar levar por ideias megalómanas, deslocadas da realidade. Consciencializemo-nos que não podemos ser bons em tudo e se formos os melhores em algumas coisas já é suficiente para alimentar a nossa auto-estima. A arrogância e o pretensiosismo não são bons conselheiros.
No meu tempo de juventude surgiam ideias, não decerto patrocinadas por gente responsável, mas largamente difundidas, que nos davam como tendo um exército capaz de se bater com russos e americanos. Ora, além de termos um exército que, aos olhos de hoje, muitas vezes não passava de um exército de maltrapilhos, já à altura não tínhamos armamento capaz para um conflito mediano. Só a curtez de vista da maioria e a manipulação de alguns justificava tais asserções.
Já passaram séculos para que possamos visualizar situações em que tenhamos estado em pé de igualdade com os nossos conflituantes. Eram tempos em que a destruição do Império Romano tinha levado à instalação de Estados fracos. Alguns feitos alardeados e aumentados pela História oficial e com grande difusão na escola primária levaram à formação de visões distorcidas. Sem culpa aliás dos professores, inocentes úteis ao dispor da bravata nacional.
Humildemente temos o nosso valor, mas ainda não nos convencemos que não dominamos as regras do jogo. Deslumbramo-nos com o convite para jogar no palco principal, a União Europeia, mas subestimamos as dificuldades que iríamos encontrar no confronto mais aberto com os outros. Tentamos equilibrar com contratações que se revelaram caras. Os milagreiros que prometeram colocar-nos na frente da Europa falharam.
Não tivemos em consideração os enormes poderes que se foram formando. As forças centrípetas entraram em acção cada vez mais fortes. Ainda por cima lançou-se a confusão entre esse processo descontrolado e o federalismo. A resposta em alguns países tem sido suicidária. Os pequenos países fundadores da Comunidade Europeia viraram-se para um processo de desagregação interna, devido à sua impotência perante aquelas forças centralizadoras que progridem nos maiores países.
Em Portugal valha-nos a solidez do Ser Português, para garantir a unidade interna, mas nada está garantido para o futuro. Um Ser Português que continua a ser defensável nesta conflitualidade que se mantém a nível de Estados. A este nível a regionalização não trará benefícios. Substituir o Estado por regiões seria fazer a vontade das forças cujo poder está na união e na dimensão. Regiões cada vez mais dominantes em confronto directo com outros poderes cada vez mais ciosos e coesos não teriam a força negocial dum Estado. Só o federalismo poderá constituir um travão ao processo desagregador que pode eclodir.
Só o Estado, se mantiver a coesão que o tem caracterizado em oito séculos de história, mesmo perdendo alguma soberania a nível de um Estado Federal, conseguirá conservar o poder decisivo em assuntos nevrálgicos para o futuro europeu. Numa Europa Federal poderemos continuar esta saga aventureira do Ser Português. O Ser Europeu é a mais valia que nos faltava para sermos o complemento doutros europeus. Não entramos para a Europa com o objectivo de a pulverizar.
O facto de termos partido para este projecto com um deficit excessivo, essencialmente a nível do aparelho produtivo, mas também educativo e profissional, não é de molde a inviabilizá-lo. Impõem-se que não sejamos titubeantes e que nos não sentemos diminuídos. Sem necessidade de sermos “bons alunos”, impõe-se que nos empenhemos decisivamente. A nossa oportunidade de sermos audazes pode surgir a qualquer momento.
O facto do neo-liberalismo ter tomado conta dos destinos europeus não é de molde a que nos desmoralizemos. O nosso destino está na Europa e é na Europa que devemos lutar por um projecto solidário, como foi sonhado pelos seus fundadores. No entanto forças poderosas dominam agora os orgãos políticos da Europa, na penumbra, mas controlando os políticos cinzentos a quem a vaidade faz com que ocupem cargos a que não sabem dar a consistência precisa, o poder efectivo.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Roubar é a quem o tem

Custa-me sinceramente utilizar esta palavra tão áspera e contundente, demasiado pesada no meu contexto referencial, no entanto hoje usada socialmente sem a carga de outrora. Efectivamente quando alguém era apelidado de ladrão, era acusado de roubar, a não ser verdade era uma das grandes ofensas que se podia fazer a alguém honesto. Hoje já não é assim porque os ladrões têm bons advogados e entregam a estes as questões de honra.
Se mesmo assim uso a palavra roubar é porque pretendo remeter para os assuntos de extrema gravidade casos como os que me suscitaram esta referência. É ou não um roubo levar para casa uns milhões de bónus por cumprir determinadas metas empresariais? É ou não um roubo levar para casa reformas de centenas de milhares e indemnizações de milhões após curtos períodos de prestação de trabalho?
A expressão “roubar é a quem o tem” também está desgastada pelo seu uso tão vulgar pelo que se tornou socialmente inócua. Ela queria dizer que roubar a quem pouco tem pode causar um mal irreparável e seria mais condenável, roubar a quem o tem seria mais tolerável, e no extremo roubar a quem tem muito seria socialmente irrelevante. Claro que hoje as coisas estão invertidas porque quem tem pouco ou mesmo alguma coisa não tem o suficiente para recorrer à justiça, à “boa” justiça.
A expressão “roubar é a quem o tem” pretenderia desculpabilizar quem roubasse a quem muito tem e nesta asserção continua a fazer algum sentido, à revelia do que está socialmente aceite. Assim pensam aqueles gestores que levam maquias imensas para casa a pretexto de cláusulas abusivas dos seus contratos de trabalho. Só estão a retirar um pouco aos accionistas, na maioria capitalistas, de que a parte que detém de uma empresa só constitui uma parcela da sua fortuna.
Esquecemo-nos que há uns pequenos accionistas lesados por tabela, mas essencialmente esquecemo-nos que os clientes à força de empresas que exercem a sua actividade a nível de monopólio ou oligopólio são os mais prejudicados. Não faltará quem contraponha argumentos a todos os argumentos expendidos, como se tais valores de bónus ou outras recompensas representasse, se revertido, um diminuto desconto na facturação total da empresa.
Nenhuma das explicações dadas é convincente, a verdade é que se fica sem saber quem é mais prejudicado, se grandes accionistas, pequenos accionistas ou clientes em geral. Para a economia em geral dizem que estas situações contribuem para um clima competitivo que é benéfico. Também há quem diga que a economia paralela é benéfica e até há quem pense que a corrupção é uma forma de redistribuição meritória. O que parece evidente é que, como estas, também aquela realidade que nos ocupa contribui para o desregulamento social.
Não seria necessário que lhe chamássemos roubo para que o fenómeno não fosse grave e revelador do incentivo que a economia faz, o dinheiro, aos piores sentimentos humanos. O desgaste da palavra, a eliminação de antigas conexões quando os patrimónios eram finitos e havia honra da parte dos dois lados que celebravam um contrato, não incluindo nele cláusulas leoninas, só podem ser suprimidos colocando nessa palavra mais veemência e mais convicção.
Porém nós também dizemos ser um roubo aquilo que certos futebolistas ganham e eles nada se chateiam com isso. Também os gestores já se não chateiam porque se atribuem artes de malabaristas do dinheiro, que conseguem a sua reprodução com dribles de toda a ordem. O que é apanhado no meio desse turbilhão financeiro, trabalho, bens, serviços, clientes, são puros instrumentos para a obtenção do bem supremo, o dinheiro
E nós, os que acedemos ao vil metal com dificuldade, temos de estar calados? Não temos, mas de nada nos vale falar. Chamar roubo não tem qualquer efeito porque para o sistema judicial não o é. Manifestar a nossa indignação também não produz qualquer efeito porque o sistema político não a leva a sério. Teremos nós que nos conformar com o tentarmos causar algum dano nessas pessoas projectando sobre eles aquela terrível arma que é a inveja? Ou até esta também já terá perdido as suas qualidades?
Outrora dizia-se que certas pessoas tolhiam, em particular com o olhar. Então as virtualidades da inveja ter-se-ão perdido? Como eu nunca as possuí não posso dizer nada. Diziam outrora que esse não era um mal de que o próprio fosse culpado, se os seus olhares tolhiam, faziam-no sem deliberação prévia. De qualquer modo, além de manifestar a minha indignação, faço um apelo a quem tenha esse poder, que o exerça para bem de todos.
A não ser que esse poder só se possa exercer pelo olhar directo a essa gente. Então nada feito porque essa gente não nos passa debaixo d’olho amiúdo. Tal gente está demasiado longe de nós para que o nosso olhar as fulmine. Porém mais grave ainda é que esses que deste desbrago beneficiam são aqueles que nos querem impingir o malfadado liberalismo, a fonte de todos estes males.
Para fechar, atingido o cúmulo da responsabilidade, temos instituições que, para o bem e para o mal, eram os alicerces morais que sustentaram um limite razoável à voracidade no negros anos do salazarismo, que hoje se demitiram de uma intervenção mais global a nível de toda a estrutura social e se limitam a pretenderem aumentar o dizimo para 20 %.
Além da hipocrisia que se manifesta na autorização dada a muitas dessas pessoas, expoentes do capitalismo mais desenfreado, para falarem como exemplos das virtudes mais louváveis, há uma tentativa de branqueamento dos mais condenáveis instintos, outrora chamados de “pecados”. Sem autoridades morais, são as velhas armas o recurso possível.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Será possível castigar o fogo posto?

Nos dias de hoje o fogo posto tornou-se um dos crimes mais vulgares. A crer na afirmação das pessoas mais envolvidas no seu combate, a origem da grande maioria dos incêndios florestais está nas mãos criminosas. Não podendo nós acreditar haver assim tantas pessoas capazes de arcar com esse epíteto de incendiários, só podemos concluir que esse crime já tem muitas atenuantes na consciência social. E quando assim é temos que rever o que sabemos sobre a matéria.
Para os que acreditam que o problema está no homem, que terá entrado numa fase descendente de consciência social, já só existe uma solução que será colocar atrás de cada homem um outro a fiscalizá-lo permanentemente. No entanto esta pretensa solução só agravaria a questão. Com efeito, independentemente de qual deles é o bom e o mau, o que assumisse a tarefa de tomar conta do outro, com alguma probabilidade, seria tentado a cometer um duplo crime de cometer o crime original e o de o atribuir ao outro para dele se livrar.
A solução tem que ser outra e tem que obedecer a uma economia de meios. Então policiemo-nos a nós próprios em vez de sermos os polícias dos outros. Em primeiro lugar cada um de nós tem que admitir a possibilidade de que lhe passe pela cabeça a tentação de cometer um crime desta natureza porque a maioria de nós está longe de viver em perfeita harmonia consigo mesmo e com os outros. Já ninguém ousa pensar em ter um mundo harmonioso só para si. No entanto é a essa parte que ainda é capaz de harmonia a que nós nos agarramos.
Nós importamos para dentro de nós a desarmonia reinante. A nossa força passa por conseguirmos não exportar ainda mais desarmonia para o meio ambiente. É por nossa iniciativa que se instalou o desequilíbrio que se vê na natureza porque em nós se instalou um sentimento de desprezo que as simples palavras de boas intenções não escondem. Na mentalidade suburbana que prolifera na maioria de nós encontraremos as causas civilizacionais que determinaram esta mudança de atitude.
O que brilha para nós é o ouro, não as pedras rústicas das nossas serras e aldeias. Veneramos a cidade que tem em si a riqueza e desprezamos a ruralidade pobre, atractiva só para devaneios esporádicos. A harmonia outrora existente no meio rural, o perfeito enquadramento do homem com a natureza, levava a que todas as intervenções do homem na natureza tivessem uma naturalidade e uma sustentabilidade adequadas.
Cortava-se o mato, apanhavam-se o garaveto, podava-se a rama, eliminavam-se os infestantes porque tudo tinha utilidade e a monte era necessário para mandar para lá o gado nos meses em que havia culturas em desenvolvimento. Também se faziam queimadas, mas selectivas e nas zonas não arborizadas. Nenhum palmo de terreno era deixado ao abandono. O Estado encarregava-se das suas próprias florestas e espaços.
Em suma, a actividade económica fazia a gestão integral do espaço, encontrando utilização e retirando proveito de todos os materiais naturais e daqueles que ia introduzindo por via da cultura dos terrenos. Além da procura de novas formas de gestão e da introdução de novas culturas não se terem revelado frutíferas, a gestão dos resíduos florestais e o seu aproveitamento como bio-massa tem sido um caminho já sugerido, mas que economicamente ainda se não tornou viável.
Podemos dizer que no nosso País tudo mudou a partir dos finais dos anos sessenta. Tornaram-se vulgares os grandes incêndios, mesmo às portas das grandes cidades. As matas do Estado também começaram a arder. O Estado demitiu-se, não soube ou não pude intervir de forma eficaz. Tentar virar tudo para a acção policial também seria suicidário, porque seria ineficaz com os meios de que poderia dispor. O aumento da mobilidade das pessoas e a perca das relações de proximidade tornou impossível às populações locais o controlo do seu próprio território.
O fulcro da actividade económica deslocou-se, reduzindo o produto agrícola a proveito marginal e retirando grande parte da população dos campos e das matas. O próprio Estado se retirou da actividade florestal, também aí de certo modo expulso como o foi, em especial depois do 25 de Abril, de outras actividades económicas ligadas à agricultura com a extinção dos organismos corporativos de gestão, muitos deles transformados em associações geridas por particulares. O comércio invadiu e de certo modo alterou e destruiu muita actividade rural.
Muitas das mudanças verificadas são irreversíveis. A redistribuição da população, se a houver, não é de molde a satisfazer o interesse da defesa do equilíbrio entre o homem e a natureza. Também os poderes locais não se mostram interessados em gerir este problema, porque não tem meios financeiros para tal e porque os meios que reivindica ao poder central têm, por norma, outros destinos. Os interesses empresariais não encontram forma de se satisfazerem se tiverem que corresponder a determinadas exigências legais.
Todo o espaço territorial tem valor, mas a sua rentabilidade não justifica os cuidados que seriam necessários para o sustentar. A simples imposição de obrigações legais aos proprietários de terra é de duvidosa justeza e eficácia até porque o maior proprietário continua a ser o Estado. Depois, na consciência social está instalada a ideia de que há mesmo situações que só se resolvem com o fogo. A única forma de resolver a questão é em muitos casos a feitura de fogos controlados em época segura, se é que ainda a há.
Felizmente que se vai cumprindo a obrigatoriedade de limpar os cinquenta metros em redor das habitações. No entanto a ligeireza com que se analisa esta questão, tirando uns dois ou três meses no Verão, ajuda a que na consciência social se não instale uma ideia da perigosidade dos incêndios e de defesa do ambiente, ideia que tem sido tão mal tratada. Não será com fundamentalismos nesta área, que só isola defensores do ambiente, que se defende este, mas com a criação de uma maior proximidade do homem, de todos, com a natureza.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Merece este Estado que alguém o defenda?

Defender o Estado parece à primeira vista um anacronismo. A primeira razão é que o Estado é um ser bruto, mesmo o mais bruto dos seres. Muitas vezes actuou de uma forma desumana, absolutamente contrária àquela que o bom senso recomendaria. Possuidor da maior concentração de força, historicamente recorreu a ela com pretextos ridículos, sempre assentes em valores racistas e vontade de rapina sobre outros povos e países. E continua a haver forças que querem regressar a esse passado.
Muitas das entidades antecessoras do Estado ponham entraves à liberdade pessoal a todos os níveis. Os Estados modernos resultaram de muitas lutas para unificar territórios e assim eliminaram muitos pequenos poderes que sempre se quiseram manter. Porém, conseguida uma certa harmonia territorial e racial, a tentação foi continuar essa saga unificadora e dominadora o que levou a fins trágicos. Por esta razão foi tão promissor o liberalismo que primeiro apareceu a querer, com o seu “laissez faire, laissez passer”, que, sem necessidade de unificação política, não fossem colocados entraves à circulação de pessoas e bens.
O totalitarismo venceu em muitos países, mas após a sua derrota o liberalismo renasceu como uma nova esperança. O liberalismo de hoje já é mais estruturado, pois defende um Estado pequeno mas forte, dotado de poderes irrenunciáveis num âmbito limitado de questões. Porém ao não interferir no desenvolvimento das forças económicas, ao permitir que estas próprias controlem outros sectores da sociedade, mostra-se incapaz de impor a sua doutrina e a sua forma de funcionamento a toda a sociedade. Se o seu Estado é mínimo, os poderes que se criam sob a sua protecção são imensos.
Se esta noção do Estado resolve alguns problemas, cria pois outros porque as forças económicas, dotadas das energias acumuladas ao longo dos tempos, geram desigualdades intoleráveis e dão lugar a iniquidades que nunca tinham sido criadas em tempos mais recuados, mesmo quando a maioria dos homens nem liberdade de se movimentarem possuíam. A crença, ainda muito divulgada, que um Estado forte, por estar provavelmente nas mãos das forças sociais mais poderosas, mais contribuiria para agravar a exploração e a acumulação capitalista, faz com que muitos prefiram o Estado liberal ao Estado intervencionista.
A não intervenção do Estado nunca é absoluta, só assume um cariz tendencial. Na prática, sob a capa da não intervenção há forças imensas, umas velhas outras entretanto criadas que exercem o verdadeiro controlo da sociedade. A intervenção do Estado impõem-se, não no sentido da intervenção favorável à actuação livre das forças do mercado, mas sim no sentido de uma intervenção que pondere e assim corrija o peso que as forças de diferente natureza que actuam no mercado têm em diferentes contextos, de modo a que nenhum deles assuma carácter absoluto e absorvente.
Uma exigência premente dos dias de hoje é um Estado forte, não arbitrário na sua actuação, capaz de exercer poderes soberanos na altura própria e na medida adequada e de se não deixar dominar por forças sociais que temporariamente detenham maior relevância e poder, sejam elas de cariz económico, corporativo ou sindical. Sem um Estado forte, mas também dotado de instrumentos de intervenção eficazes, a injustiça prolifera e atinge sectores cada vez mais vastos da população e das actividades sociais.
A maioria das pessoas tem com o Estado uma relação de vista curta, pouco mais que interesseira, no que o interesse tem de mais imediato. Querem que o Estado esteja à ordem, pronto e seja eficaz para apoiar quando dele precisam. Querem que o Estado se oculte, se demita de actuar quando os seus interesses são contraditórios com os deles. O Estado é assim classificado de bom ou mau, conforme o circunstancialismo económico seja ou não favorável. É uma análise redutora, que esquece os benefícios que, mesmo a funcionar mal, usufruímos do Estado e é uma atitude que também retira eficácia à nossa intervenção social.
A nossa relação com o Estado é contraditória. A importância que lhe damos em momentos de crise e em épocas de “vacas gordas” é sempre diferente e isso depende do nosso posicionamento social. As necessidades sociais não são necessariamente as nossas. Na nossa relação com o Estado é essencial sabermos distinguir quais as nossas necessidades pessoais e quais as que a sociedade em geral vai vivendo, sem que nos deixemos enrolar por grupos de interesse específicos. No entanto há grupos que, sem razão, conseguem sobrepor os seus interesses aos nossos. Há imensa gente a defender causas alheias.
Dar apoio aos outros é uma causa justa, quando justificada. Querer que o Estado desempenhe funções que agradem à maioria é meritório. No entanto até aí o nosso pensamento pode já estar viciado. A nossa relação com o Estado está hoje contaminada por todos um descritivo de más práticas deste. É evidente que mesmo as boas intenções têm, ao serem colocadas em prática, efeitos perversos. Além de podermos ser vítimas da contingência, há uma intencionalidade que devemos entender, sem ficar por ela obcecado.
Exigir-se-ia de nós uma relação mais racional com o Estado. Em primeiro lugar reconhecendo as diferentes características deste em relação a outros grupos humanos. O Estado não é apenas mais um interveniente social colocado ao nível de outros interesses particulares ou colectivos. Em segundo lugar reconhecendo sempre ao Estado poderes mais amplos de que os dos outros orgãos da sociedade em qualquer domínio em que está mandatado para intervir, mesmo que esporadicamente. Em terceiro lugar adoptando uma forma democrática de eleger os seus orgãos de modo a lhes dar estabilidade e coerência interna.
O Estado não deve ter poderes absolutos, nem se lhes deve ser reivindicado qualquer origem sobrenatural ou divina. O Estado não deve ser manietado, nem renunciar ou transferir poderes soberanos. No geral sabemos o que o Estado não deve ser, mas temos dificuldade em definirmos-lhe os contornos. O Estado vai sendo, sem ser nada sublime. Um Estado assim, que não está na mão de ninguém, mas também não é conduzido num rumo certo merece ser defendido?