quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

D. Pedro IV e as Feiras Novas

Qualquer nova informação é importante. Mais importante também é a forma de apresentar essa informação, de a tornar apelativa, interessante, significativa e esclarecedora.
Amândio de Sousa Vieira ofereceu-nos agora, neste Natal de 2006, uma brochura que satisfaz todos estes requisitos e sobre um tema como as Feiras Novas que a todos nós muito diz.
“D. Pedro IV e as Feiras Novas” relata-nos os trâmites que o processo de criação/autorização das Feiras Novas teve que seguir para que fosse permitido que em 1826 se realizassem as primeiras festas/feiras de três dias (19, 20, 21), que as festas religiosas de um dia, é certo, já existiam antes.
Sem por isso causar qualquer controvérsia, o processo decorreu durante regências e reinados diversos, imune às conspirações e conflitos que se desenrolaram num curto e atribulado espaço de tempo.
De leitura obrigatória para quem se interessa pela forma como se estruturou o nosso passado social, este pequeno livro ainda tem espaço para nos falar do Cardeal Saraiva que estaria em Ponte de Lima por ocasião desta festas e da célebre Semana Santa em Agosto feita em honra de Rainha D. Maria II, por ser entendida como a forma mais digna de o manifestar.

Balanço de um ano

Por esta ser uma época de uma natural tristeza, seja ao nível da temperatura, da paisagem e até da cara das pessoas. Por ser altura de algum recolhimento, que até pode ser de meditação, arrependimento ou exaltação, é hábito fazer agora o balanço de um ano que acaba.
Não é meu costume fazer balanços deste género que, como todos, temos de fazer muitos outros mais importantes e mais amiudadas vezes. O balanço da semana, do mês, e o mais trabalhoso de todos, no quinquénio. Quanto ao ano prefiro de longe o ciclo das colheitas.
Mas, que até há uma grande aversão pelo que é americano e eles o adoptam, de Outubro a Setembro, vamos respeitar o nosso, como tudo nesta coisa de dividir o tempo, um pouco arbitrário, de Janeiro a Dezembro.
Politicamente foi um ano frustrante. Tal talvez se deva, não há mesmo dúvida, a ser o primeiro de uma série de anos sem eleições, o que só por si representaria normalmente um alívio para o eleitor, mas que representa efectivamente uma carga de trabalhos por um lado e uma falta deles por outro.
Efectivamente há dois poderes que olham para o primeiro ano com olhos diferentes. Se o governo nacional faz agora o pior para aliviar um pouco a pressão lá mais para o fim da legislatura, o governo local nada faz para deixar os seus projectos e o respectivo dinheiro lá mais para o fim do seu mandato.
Mas se o governo nacional apoquenta alguns e mexe com todos, o governo local põe um pouco de calmaria na festa. E nós, sem outros apriorismos, sem revelar os nossos amores, estamos para analisar o pouco que se fez por cá.
A E.T.A.R. está, enfim, acabada e em funcionamento, de forma eficiente, o que é de aplaudir. Só se lamente que labore muito abaixo da sua capacidade, que só sirva uma pequena rede de saneamento, face à dimensão do concelho. A própria rede na Vila apresenta lacunas evidentes. Quando há muita pluviosidade nota-se que muitas ligações, decerto antigas, estão a alimentar as condutas de águas pluviais e não as condutas que vão para a E.T.A.R. e que até acontece o contrário, o que devia ir directo para o Rio vai encarecer o tratamento na E.T.A.R..
A colocação dos adutores de água que a hão de levar da E.T.A. de S. Jorge, junto à barragem de Touvêdo, a quase todo o Vale do Lima e não só, tem causado tais e tão injustificados transtornos que não há memória doutra obra assim. E ninguém se digna explicar seriamente porque tem que ser assim, que se não tem então estão a fazer de nós parvos.
O Festival dos Jardins deste ano teve algumas ideias interessantes. Dividi-me, perdoe-me o Director, entre o Jardim Português Integrado, que só peca pelo nome e o Sonho Meu, Sonho Meu. A ideia mais forte deste jardim vencedor era a de um barco de papel que nos levaria a um mundo de fantasia. Ora o seu papel era impresso e transportava precisamente as ideias deste jornal, o Alto Minho. Foi pois um prémio para o autor, os votantes e para os que colaboram neste Jornal.
Salientemos a inoperacionalidade do canil, a desordem da feira, a anarquia do nosso Verão. Muitos virão ao sarrabulho e a banhos em Agosto, mas a maioria não vem cá deixar os tostões e os de cá vão pô-los a render lá fora. È evidente que quem cá vem não quer qualidade, incapazes que somos de a oferecer nestas condições. Nós e os nossos imigrantes já nos sentimos cá a mais.
As nossas velhas festas estão a sofrer alterações que não controlamos. Os estereótipos impõe-se de tal forma que o poder municipal e de freguesia vão a reboque. Impingem-se festivais de folclore repetitivos como símbolos de originalidade e naturalidade. Copiam-se formatos para jovens sectários. Salvam-se as bandas de música que inovam e tentam remar contra a maré.
Um excelente Festival Folclórico da Confederação Internacional realizado em 1 de Agosto foi o que de melhor ocorreu neste domínio em Ponte de Lima. Grupos formados por arménios, chilenos, chineses, filipinas, hawaianos, sérvios e venezuelanos deram um espectáculo admirável, de classe mundial, que, no meio da trivialidade reinante, passou despercebido a muita gente que não esperaria tal qualidade e até diria que era mais um. Aqui o “folclore” enganou muita gente.
Tanto se cantam loas a coisas tão fracas que quando o Bom, o Excelente ou mesmo o Sublime nos chega, já ninguém acredita. Esperemos que se continuem a aproveitar estas oportunidades, já que está fora do nosso alcance organizá-las.
As Feiras Novas continuaram a revelar a sua imensa atractividade e a mostrar quão difícil é fazer a sua reconversão. A falha na iluminação, no fogo de artifício, nas condições higiénicas, se tornaram a festa menos esplendorosa, não foram de molde a toldar a sua grandiosidade, que as pessoas ficam cegas só pelo ambiente em que elas são vividas.
Mas tudo tem limites e cada vez mais se tem de pensar se é vantajoso manter tanta grandiosidade com tão pouca qualidade. Muitos dirão que, fosse tudo muito bem limpinho e organizado, e não viria cá tanta gente, a esta “nossa” pretendida Terra Rica da Humanidade.
Enfim fez-se um seminário sobre este tema no qual se desvendaram alguns propósitos. De entre estes, destaque-se o ridículo de pretender colocar a valia desta Terra ao nível do sarrabulho. Mesmo que saibamos que o Português dá a máxima importância à “mandioca”, por mais que queiramos reduzir a cultura à gastronomia, saibamos medir as proporções.
A Confraria do Sarrabulho, essa talvez enredada pelas desavenças entre o gastrónomo-mor Jorge Sampaio e o neo-hoteleiro Daniel Campelo, não sai da cepa torta, depois de um início já periclitante, que a aposta no bízaro já deu o que tinha a dar. O porco de Famalicão é o que está a dar e continuará assim por muitos anos.
Mas, voltando à Terra Rica, o seminário teve muita qualidade, tanto pelas intervenções de alguns portugueses, como dos três espanhóis que cá nos vieram transmitir a sua sabedoria. O contra foi que se saiu pouco da pedraria, da urbanística, da paisagem e falou-se menos da tal imaterialidade, que, lenta, se esvai com o que de mais genuíno se poderia preservar.
Que valeu, valeu. Já se vamos aproveitar alguma coisa, disso não sabemos. Uma intervenção profunda no Centro Histórico será dispendiosa e tem que ter em atenção os objectivos últimos que se querem atingir e que estão por definir. Há exemplos de sucesso mas também de muita desilusão. Encontrar um projecto consistente, auto sustentável e perdurável ainda vai dar muito que fazer.
Aquilo que poderia ser o grande momento do ano foi desperdiçado por inépcia da Câmara. A Carta Educativa é uma manta de retalhos, que devia ser estruturante mas promove a indefinição, que devia ser precisa mas é vaga, que deveria constituir uma mola de arranque para o futuro mas não sai da utilização dos velhos paradigmas de soluções pontuais e capelistas.
Na literatura o concelho mexeu, tendo sido apresentadas algumas obras de valor, em particular a nível da poesia, que o nosso ambiente é propício a esta maneira mais pessoal de abordar a realidade ou de “fugir” a ela.Em 2007 esperemos colher alguns frutos dos investimentos em projectos, da aplicação dos conhecimentos e da experiência obtidos, da correcção dos erros detectados mas não ambicionemos demasiado. É que ainda vamos estar na primeira metade dos mandatos locais e só para o ano seguinte se vai investir mais.

Os benefícios do micro crédito solidário

Esta história também podia ter como titulo “O azar de uns é a sorte de outros”. Efectivamente foi após o nosso amigo António Melo ter sido espoliado do seu instrumento de trabalho, a caixa de engraxador, que houve logo quem se lembrasse de que esse negócio, de certo modo desaproveitado pelo António, podia ser interessante para fazer uns trocados.
Que com certeza se o António vier a recuperar a sua caixa terá igualmente lugar. O episódio do desencaminhamento da caixa serviu sim para que certas pessoas, que nada tinham a ver com ele, soltassem a célebre palavra “Eureka”.
Juntou-se um grupo, cada qual contribuiu com o que pôde e eis que surgiu uma caixa nova, brilhante, esmerada, apetrechada com o que de mais moderno há nesta arte milenar de engraxar os sapatos dos outros que, lembrem-se, é bem diferente daquela outra em que alguns são artistas: o lamber das botas a alguém.
Ponte de Lima teve bastantes daqueles verdadeiros artistas na arte da engraxadela. Lembro-me de, no largo se Camões, cada café ter o seu engraxador preferido mas eles não se limitavam aos clientes de cada um, antes se esmeravam em fazer bom trabalho e conquistar clientes aos outros. Era uma competição sadia, levada por uns mais a sério, por outros mais desportivamente mas que não ia além de uma troca de elegantes mimos.
Os mais velhos lembrar-se-ão do João da Mena, do “Chicago”, do Tone “Picado”, do Abel dos Jornais e dos seus filhos. Houve depois um período áureo com estes e outros rapazes a fazerem verdadeiros campeonatos, principalmente nos domingos de manhã, no sentido de apurar qual o mais rápido e o mais eficaz a polir os sapatos alheios.
Sucedeu-se um declínio, fruto dos ténis, de novas técnicas de engraxadela no domicílio, da poupança em tudo que envolvesse algum dispêndio de dinheiro. O Largo de Camões ficou vazio.
Mas eis que pelos acontecimentos relatados algo de novo ocorreu. O micro crédito, tão louvável que já mereceu um Prémio Nobel, surgiu em Ponte de Lima e tem merecido os maiores elogios. A aventura ainda é recente mas auguramos um futuro auspicioso a este empreendimento pela adesão que tem tido.
O nosso novo engraxador não necessita de apresentação, que em menino era um daqueles que faziam as delícias de quem queria ver uma competição salutar nos domingos de manhã. Trata-se do Manuel Ferreira Soares, para os amigos Amado.
O Amado pratica um preço perfeitamente razoável e tem já angariado muita clientela. E mais, para atrair o elemento feminino, teve a feliz ideia de praticar preços diferenciados conforme os atractivos manifestados. Claro que uma menina do Porto de passagem por Ponte de Lima aproveitou a oferta, mas o certo é que gostou tanto do serviço que no fim o pagou a dobrar.
Temos a certeza que o negócio vai prosperar e que, aprendendo com este caso, outras pessoas se juntarão para ajudar mais alguns noutras soluções por via do trabalho. E que aqueles que precisam de um pequeno motor de arranque recorrerão a esta espécie limiana de micro crédito.
Tudo o que possa ser feito para incentivar outras e diferentes iniciativas que minimizem problemas sociais e promovam o bem-estar daqueles que mais dificuldades encontram nas suas vidas, é louvável. Um Bom Natal.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

O sortilégio do nascimento ou o cerimonial das prendas

A maneira como vivemos as festas depende muito da tradição e do modo como esta nos foi transmitida, mas a nossa experiência particular também é marcante. As festas vão mesmo evoluindo conforme as nossas condições e nós vamos intervindo ao ponto de, às vezes, subvertemos a sua natureza.
Não digo propriamente isso do Natal que, sendo uma festa muito antiga e generalizada, com diferentes formas de ser abordada, algumas mais apropriadas outra menos, tem algum substrato e algum exagero comuns. Cada um vive o Natal de modo particular, mas vai beber à fonte de todos os Natais.
Já se assume hoje em dia que o Natal começa por ser uma festa de presentes, de tal modo que o exagero é evidente. Numa sociedade consumista seria sempre de esperar que o comércio explorasse ao máximo esta última chance de se desfazer das suas mercadorias antes do fim de ano.
Tudo bem, o certo é que no espírito de muitas pessoas este aspecto, que tem a sua raiz lendária nas prendas levadas ao Menino pelos Reis Magos, suplantou tudo o mais, qual ilusão de que seria por um gesto trivial que nós iríamos corrigir um ano de fraco relacionamento com os amigos e a família.
É que para as crianças o “cerimonial” das prendas tem significado. Poderão assim memorizar alguns momentos mais relevantes da sua infância. Já os adultos não conseguem reduzir um ano de vida a um momento significante, a não ser que este momento seja muito negativo, o que não será o caso.
Depois a prenda é para ser um acto de vontade que não espera compensação, muito menos ao nível de uma outra prenda da mesma natureza e valor. Se é aceitável, e quiçá desejável, que entre adultos se possa trocar prendas, reconhece-se que é raro que não se esteja à espera de uma retribuição qualquer.
Nos adultos há uma tendência, em certas pessoas imparável, de avaliar as prendas e de as colocar na conta de ganhos e perdas. As crianças, como é evidente, colocam todas as prendas nos ganhos, com parâmetros diferentes dos nossos para avaliar o seu valor.
O certo é que hoje as crianças, graças à publicidade e porque lhes transmitimos cedo os nossos valores, cedo começam a avaliar as coisas também pelos nossos olhos. Enfim nós contagiamos o mundo todo com a nossa hipocrisia.
Façamos então um esforço para descontaminar o Natal deste aspecto contabilístico que o desvirtua e lhe corrói os fundamentos. Procuremos dar-lhe um significado mais próximo da genuinidade. Embora perto do Fim de Ano, como tal época de balanços, retiremos a balança do nosso horizonte natalício.
Temos de fugir da banalidade de esperar dos outros contra-prendas em géneros. A prenda só pode ter como contrapartida um esforço do outro para uma melhor compreensão no relacionamento futuro e isto é legitimo esperarmos mas não mais do que isto.
Um presente só pode ser mais uma tentativa nossa, repetível ou não, para mostrar a nossa disponibilidade em sermos amigos de alguém. Com presentes não compramos ninguém. Se alguém não estiver disponível para a nossa amizade corremos o risco de estar a injectar hipocrisia na nossa vida.
Mas o Natal felizmente que não é só prendas. O Natal tem como fundamento a festa do nascimento, sacralizemo-lo ou não, façamos dum nascimento particular a salvação do mundo ou de todos os nascimentos sérias apostas no futuro, na certeza de que a Humanidade chegará um dia a honrar o seu nome.
O Natal é o tempo da inocência maior que reside em quem nasce. Partilhando a esperança do provir, também nós nos congratulamos pela nossa existência e não é agora que nos vamos interrogar sobre a nossa razão de ser. A veneração do Menino é o deslumbre pela criação, enquanto acto que a simples interacção de forças ditas “brutas” não parecerá ser capaz de gerar.
O sortilégio de termos a capacidade de procurar no âmago da nossa memória as razões do ser, e de buscarmos na matéria o acto que despoleta a criação e as razões da sua própria “memória”, não são de molde a impedir que sacralizemos momentos marcantes, actos determinantes que fazem um percurso que terá sempre por incógnita maior o nascimento, por mais pequeno a que o possamos reduzir.
O Natal é uma vivência expressiva que nos permite situar num dia, numa época, aquilo que nos parece espartilhado e desconexo no dia a dia. Mas, não sendo tudo redutível ao Natal, havendo outros momentos igualmente importantes na nossa vida, não queiramos que quem é mais vulnerável e dependente reduza a vida a uma sequência impossível de Natais.
A sacralização do Natal insere-se na nossa história de memórias, de sabedorias e de premunições. A nossa capacidade imaginativa é a grande responsável pela sua adaptação ao correr dos tempos. Mantê-la viva pressupõe que não entreguemos a manutenção do nosso espírito a quem se pretenda mais “entendido” nestas coisas do sagrado, mas que nos preocupemos todos com isso.
Não há uma particular mensagem de Natal. Pressupomos que haverá mensagens que no Natal passarão melhor. Mas também é no Natal que surgem mais mensagens que nada têm a ver com a vivência que era pressuposto favorecer.
Então cada um tem de se preocupar em transmitir à sua maneira uma mensagem simples e séria, que é importante estarmos bem conscientes da maneira como ela é entendida pelos outros. Isto é, a mensagem não depende tanto da sua verbosidade mas mais da sua autenticidade.
Quando eu digo que quero que nós vivamos num espírito de comunhão, concórdia e paz digo que, além de escolher a forma que acho mais adequada, me preocupa que o conteúdo corresponda àquilo que literalmente os outros são chamados a entender.
Acreditamos que é possível que, com este espírito, outros se deixem contagiar. O primeiro passo é despoluir o ambiente dum mercantilismo atroz, manietante e decerto mais válido e apropriado para outras ocasiões.

terça-feira, 12 de dezembro de 2006

Arte serôdia para quem não precisa de saber ler

Longe de mim a pretensão de reescrever a história. De retocar quadros, retirar figurantes e colocar lá outros. Houve quem o fizesse e as técnicas à altura nem eram tão boas como hoje. E embora nós estejamos precavidos há sempre quem o continue a tentar, se não para ficar na história, para obter efeitos imediatos.
Quando olho para o nosso percurso histórico não vejo imagens fixas, horizontes iguais, figuras estáticas, gestos parados. Tenho uma visão histórica dinâmica embora admita reduzi-la a uma visão estática, datada, temporária essencialmente para poder comunicar.
Estou sempre disposto a admitir repensá-la, revê-la, reorganizá-la. A integrar na minha visão as visões instantâneas, fotográficas que outros e eu próprio nos vamos fornecendo. No pressuposto porém de que a História é muito mais que a história da Arte, por mais valor que esta tenha.
Admiro um quadro, uma imagem poética, uma fotografia, por si. Mas as obras artísticas também podem ser documentos históricos e como tal utilizados. Só que, se eu não souber o contexto que as informa, eu fico desinformado. Mas admito que o objectivo até seja esse. Quando a mim só lhes dou real valor se souber ir ao seu significado, que, às vezes, até extravasa a intenção do próprio criador.
Por isso se diz que é necessário ser culto para gostar de Arte. Se não a Arte é vista como um artificialismo, o que é um sinal evidente da maior ignorância. A Arte tem de ser vista com os sentidos, a inteligência a emoção e os sentimentos bem despertos. Se não, não se vê nada. E a Arte tem o privilégio de mostrar aquilo que nem o próprio criador tem intenção de revelar.
Por exemplo, quando se retrata uma figura típica num quadro, num roteiro, num poema ou numa simples foto, esse retrato é o espelho da sociedade que no retratado se revê, independentemente do retratista dar maior realce a um pormenor do seu aspecto. Por seu lado esse pormenor caracteriza mais o criador do que o criado, dá mais informação sobre o primeiro do que sobre o segundo.
Poderia aqui dar de barato que o exemplo é fraco e que o pitoresco teve o seu tempo também no domínio da Arte. Assim sendo, mais valeria considerá-lo como uma página virada na nossa História. Isso é feito pelos próprios artistas que a Arte está na sua História cheia de roturas, de saltos imprevistos.
Para mim, porém, todos os contributos e manifestações humanas, toda a barbárie e humanidade, toda a prepotência e humilhação, toda a sobranceria e generosidade, toda a ostentação e humildade, toda a lascívia e perversão, toda a festa e frustração, todas as intenções realizadas ou não, estando presentes na História do Homem, são as fontes da sua compreensão.
Na História nada se deita fora. Todo o auto de fé é um crime banido. A História tem de ter continuidade, ser perceptível e todos os documentos são importantes para isso. Se a Arte tem explosões é a História que lho permite, mas não se reduz a elas.
Na Arte procura-se uma nova identidade quando se dá a velha por perdida. Mas também se pode pretender reconstruir a identidade perdida. Isto pode dar origem a uma arte serôdia, fora do tempo que lhe foi próprio. Mas como a Arte se não vê só com inteligência, eu não pretendo fechar os olhos e dizer que se deva queimar. Historicamente sabe-se que a inteligência tem destas perversidades mas para que serve a evolução?
Utilizar na Arte modelos com um século de atraso, que já foram substituídos por outros, quando isso se insere na tal busca da identidade perdida é aceitável mas não pode ser imposto. E claro que diz muito do ambiente social e político que se viveu no negro miolo do século passado.
O facto de não rejeitar qualquer parcela do passado, por mais negro que pareça, não quer dizer que eu não o possa analisar friamente, tecer sobre ele as minhas considerações, e até abater sobre ele a minha virtual ira. Fraco passado que nos não deu a possibilidade de procurar uma identidade mais progressiva e uma Arte mais moderna.
Claro que tenho de recorrer de novo à inteligência para estabelecer a ligação entre a Arte, a História e a Política. A arte serôdia está sempre ligada a políticas retrógradas e obscurantistas. Quem afirmou que “Felizes aqueles que não sabem ler” andava cem anos atrasado na Arte, na Política e na Humanidade. Até nem sei para que escreveu, se não seria só para auto satisfação “condal”.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2006

Crónicas de um tempo que é outro

Como já vem sendo habitual, demonstrativo do apreço que os seus leitores/espectadores vem manifestando pela obra de José Ernesto Costa, a apresentação de mais um número, o III, da sua “Crónica de um Outro Tempo” teve lugar na noite do dia 24 de Novembro, num Teatro Diogo Bernardes que os seus amigos encheram plenamente.
Não faltou uma forte presença institucional representada pelo Vice-Presidente da Câmara Municipal de Ponte de Lima, o Eng. Vítor Mendes e pelo Vereador da Cultura, o Filósofo Franklim Castro e Sousa. Não faltaram muitos Homens de Letras, como o poeta Cláudio Lima, que apresentou a obra.
Realcemos em especial que não faltou o povo anónimo, se nos é permitido dizê-lo, daquele que preferencialmente constitui o objecto das fotos por si recolhidas e das suas estórias, episódios da vida real, muitos dos quais até aqui só pertenciam à memória oral.
Aqui reside muito do seu mérito, na transcrição fidedigna, tanto fotográfica como escrita, do ambiente social, linguístico, dos aspectos lúdicos e preferencialmente alegres da existência. Que, como nos parece evidente, naqueles tempos só se utilizava a fotografia para retratar aspectos festivos e só se memorizava e recordavam aqueles episódios que davam muito mais colorido ao convívio de todos os dias.
José Ernesto Costa transmite-nos nestas Crónicas a vida no seu estado de pureza, tal qual era realmente “vivida”, os aspectos pessoais, familiares e de convívio, que raras são as fotografias ou referências a cerimónia oficiais ou intervenções do poder.
O pitoresco, a alacridade na qual os padres Laranjo e Passarinha têm um papel preponderante, não resultam do ridículo ou da má formação, antes constituam uma maneira natural e saudável de abordar a vida, que, por estar irremediavelmente perdida, pode parecer às gerações de hoje caricata e artificial.
José Ernesto Costa tem lutado por preservar este legado, apresentando-o numa contextualização familiar, coloquial, cúmplice, em que o agrado e a amizade que transmite em relação às suas “personagens” são uma imagem fiel daquilo que num outro tempo efectivamente se passava entre todos os de cá e os de lá da Ponte, sem artificialismos e distinções.
Haveria, claro, outras contextualizações para apresentar este espólio magnífico, mas será sempre possível a outros fazê-lo. Mas todos lamentarão que esta obra, constituída já por três volumes, vá ser agora suspensa, mesmo que temporariamente, segundo a intenção do autor.
Como soi dizer-se, as Crónicas de um Outro Tempo valem o que valem mas valem muito para a nossa identidade. Valem a pena, é imprescindível continuá-las.

O Aborto, a moralidade e a família

Muitas têm sido as razões invocadas para que historicamente a sociedade ocidental não seja favorável a uma interferência vinda do exterior no percurso normal da gestação de um filho após um acto sexual, qualquer que tenha sido a reacção da mulher à sua ocorrência.
Recentemente porém, quase genericamente, se entendeu que, tanto esta atitude da mulher perante o acto sexual, como uma má formação do feto, pudessem justificar uma intervenção que possa corrigir ou pôr fim àquele processo dentro dum limite temporal razoável de dez semanas.
Agora vamos ser chamados a dizer se o Estado deve ou não permitir que até esse mesmo limite temporal após o início da gestação, sejam dados à mulher plenos poderes para determinar o fim desse processo.
Se a acto sexual sob coação ou pela violência, normalmente designado de violação ou a constatação de que o feto está a ser sujeito a uma má formação congénita irreversível são razões determinantes para que actualmente a mulher já possa solicitar uma interrupção da gravidez, o que se pede agora é que se lhe faça a concessão de poderes absolutamente arbitrários.
Para justificar este alargamento da base legal para a interrupção voluntária da gravidez pode-se perguntar se há assim uma tal diferença de natureza entre o sexo sob coação e o sexo inconsciente, imprevisto, que mesmo consentido, não é avaliado nas suas possíveis consequências no momento da sua prática. Se não é legítimo que à mulher se possa atribuir um período de reflexão razoável.
Dir-se-á que ainda há o recurso à pílula do dia seguinte, mas mesmo esse período de vinte e quatro horas pode não ser suficiente para pôr os pés na terra. Por outro lado pode-se pôr a questão de um prazo ainda maior, que mesmo assim não vão deixar de haver mulheres arrependidas de ter dado um passo, voluntário ou não, no sentido da gravidez, principalmente com o parceiro então escolhido. Mas isso, levado ao limite, seria a barbárie, que quase tudo justificaria.
Não haverá dúvidas que há situações complexas em que qualquer mulher, mas em especial a mais imatura, só depois de grávida, depois de estar perante um facto, doutro modo irreversível, pensará em todas as consequências do seu acto. A mulher pode entender, enfim, que não tem condições para criar um filho, que possivelmente lhe vai alterar radicalmente a vida ou exigir-lhe encargos que não se sente de nenhum modo capaz de assumir.
Claro que as mulheres em condições de poderem vir a deparar com este problema serão em número limitado e serão especialmente jovens e somos todos chamados a aceitar ou não que elas possam resolver o seu problema desta maneira. Legalmente não há aqui qualquer problema porque assim é desde que instituímos o Estado como regulamentador de muita da vida social.
Visto de fora, isolado, sem ter em conta antecedentes e suas consequências, o aborto é um acto impróprio mas também não pode deixar de ser visto como uma manifestação do nosso carácter impuro, imperfeito e que até admite alguma perversidade. É, como muitos outros, que outros até louvam, como a guerra, os maus-tratos, etc., um acto identificador da nossa indignidade.
O aborto livre é só mais um aspecto em que o homem, por se sentir senhor da natureza, capaz de a alterar e subverter, está a apostar no sentido de elevar o seu hedonismo a outros cumes, não antes vistos, e eliminar todos os possíveis resquícios do simples hedonismo primário que sempre o caracterizou.
O aborto livre, só por si, será sempre uma condenação porque será praticado pelas mulheres mais frágeis, mais indefesas, mais vulneráveis. Será como um direito envenenado entregue por compensação aos mais fracos. Não é daqueles direitos que dão a quem os pratica mais força e dignidade.
Nós podemos ainda facilmente acrescentar a esta auto-condenação uma condenação moral, se é que a moralidade é para aqui chamada e se é que da moralidade temos todos a mesma noção. Podemos fazer um esforço nesse sentido, de encontrar uma moralidade que satisfaça o maior número, que para mais fácil compreensão seja definida parametricamente e cujos parâmetros sejam os mais partilhados.
Só que aqui surge um problema que é o de saber se essa moralidade está certificada por processos que terão ocorrido no domínio próprio de acção daqueles que os dizem partilhar. Porque a moralidade proclamada, quando é posta à prova, quebranta e é muitas vezes posta de lado. Felizmente que neste âmbito a moralidade não é posta à prova todos os dias e em todas as pessoas mas é um sinal de bom senso e de humildade moral não deitar a primeira pedra.
Assim podemos e devemos condenar moralmente o aborto, mas de modo não radical, e ser tolerante sem ser moralmente permissivo. À mulher restará sempre a liberdade de achar ou não que essa moralidade se enquadra na sua perspectiva de vida. Hoje já ninguém é segregado e condenado até à eternidade.
O que não restarão dúvidas é que cabe ao Estado fazer leis tolerantes mas também difundir valores como a defesa das relações prolongadas, da criação conjunta de filhos, da responsabilização mútua na construção de um futuro estável. E todos devemos pugnar por isso por uma questão de racionalidade e sem falsos moralismos, que só confundem a questão.
Ao Estado cabe defender o património civilizacional que nos enobrece, que nos valoriza perante outras civilizações, que enunciam certos princípios muito rígidos mas permitem e encobrem práticas de desigualdade e atentatórias da dignidade humana. A nossa superioridade passa pela luta aos fundamentalismos.
Podemos atribuir à família um papel fundamental neste contexto. Designando como família aquele sólido mas livre núcleo central em que podem continuar a ser defendidos os valores civilizacionais que um percurso histórico comum mas variado nos conduziu. A família entendida como a base da sociedade. Se o aborto poder contribuir para a defesa da família, não deve ser pois penalizado pelo Estado. E só a mulher, cada mulher por si, pode determinar se fazer ou não fazer aborto é uma forma de tornar viável a sua família. E aqui só esta interessa por ela ser tida em atenção.

terça-feira, 5 de dezembro de 2006

Os presentes de Natal de antanho - (Conto)

Pedro via a vida deslizar suavemente naquela candura que a idade lhe dava. Não havia então estes jardins-de-infância fantasistas, as pré-primárias coloridas ou outros luxos a que nós, adultos e crianças de agora estamos bem habituados e já consideramos um direito adquirido.
O Pedro tinha por local privilegiado de brincadeira a horta, que as favas eram semeadas cedo e já eram um bom esconderijo para brincar às escondidinhas. Os carreiros eram bons para uma correria mas a bicicleta do pai era demasiado grande para ele.
Que bom seria um triciclo, mas só tinha visto um, que se lembrasse. Os mais velhitos também só tinham para as suas brincadeiras uma vara com uma roda e um pau atravessado a servir de guiador e corriam atrás dela. Mas também era grande para si, o guiador estava muito alto e já tinha caído com uma.
Além disso tais liberdades não eram para si, que o quintal era o seu mundo. Salvo quando a mãe o levava à mercearia, para juntos não deixarem o caminho vazio, dizia-se. Os mais velhos lá iam jogando à bola no improvisado campo, que até ficava próximo da sua casa, mas que só via nestas ocasiões.
Também gostava de dar uns pontapés na bola e já as tinha visto de todas as formas e feitios, que não só redondas. Eram maiores quantos mais trapos se arranjavam para meter dentro de uma meia que se atava. A sua irmã tinha-lhe feito uma certa vez que era redondinha mas porque ela a coseu muito bem.
As bolas andavam rotinhas até se desfazerem sem conserto, que os mais eram tripas a sair delas, que sempre que a bola parava tinha que se lhe meter os trapos para dentro. Os mais sortudos lá apareciam, por festas, com uma bola de borracha mas, com tanta chanca que lhe acertava, depressa furava. Mesmo assim, murcha que nem um figo seco, lá ia rebolando como podia até ser golpeada de vez.
Poderá ser que no Natal a sorte venha a bafejar algum, mas, mesmo assim, a bola, se couber a um mais cioso do que é seu, lá terá que ficar de quarentena. Mais lá para a frente, quando passar a época do frio e da chuva, já se poderá jogar descalço e ela sempre durará mais um bocado.
O Pedro, esse, tinha de se contentar com alguma bola de trapos que chutada por algum mais maduro viesse a cair no quintal. De certo já deitaria as tripas de fora se é que não se preocupassem em a pedir de volta. Com um fio ou corda atada à volta refazia-se a bola. Que trapos e meias eram difíceis de arranjar.
Este era o tempo de muitas brincadeiras que o Inverno proporcionava mas de que os pais gostavam menos. A roupa era pouca e não se podia molhar sem razão. As botas, se ainda assim se podiam chamar, ou as chancas de sola de madeira, não isolavam a água mas vá, que para o frio lá iam chegando.
Num mundo sem televisão, algo inconcebível para os miúdos que hoje têm a idade do Pedro, este andava um pouco à deriva. Não tinha muito com quem brincar, que poucas são as suas visitas, não foram os vizinhos da separadora, a fábrica do minério que via de casa mas onde só tinha ido uma vez com o pai.
O Pedro, já o disse, tinha irmãos mas que lhe pareciam como outros pais, tão velhos eles eram à sua beira. Sabia que a escola já havia começado há muito para eles e que até já falavam por vezes de férias. Um dia eles estavam em casa quando se levantou e ele achou estranho, já seriam as tais férias.
Um dia os irmãos levaram-no com eles ao monte lá para os lados de S. Gonçalo. Trouxeram muito musgo que tiravam das pedras ou do chão mais macio e disseram que iam fazer um presépio, que a mãe lhes trouxera da feira umas ovelhinhas, uma vaquinha, um burrico, uma mulher, um homem e três camelos com passageiros em cima. Tudo se ia pôr à volta ou dentro de uma gruta onde um menino, o Menino iria dormir numa manjedoira.
Depois os irmãos foram a um outro lado buscar um pinheirinho mas não o levaram. Era longe e tinham que subir um monte alto, disseram. O Pedro até gostava bem mais do pinheiro, que vira um no merceeiro com umas pratas com chocolate dentro e que alguém o havia de comer.
A mãe disse-lhe que ia ser Natal e que vinham as suas duas irmãs. Uma era a sua madrinha Casimira, que vivia no Porto. Talvez ela ajudasse a decorar o pinheirinho com chocolates, pensou. Quando enfim chegou foi preciso ir buscá-la à camioneta do Romão que ela andava mal e nesse dia até jantamos mais tarde.
Perguntou ao Pedro o que ele tinha pedido ao Pai Natal mas ele nem sabia quem era, não estava preparado para isso. Ela disse-lhe que então pedisse ao Menino. Quando pôde pensar lembrou-se que a madrinha sabia fazer uma camisola de lã e como seria bom, mas não disse nada, ela nada tinha trazido.
Talvez ela já tenha feito o pedido, que agora o Pai Natal, se era esse, já não teria tempo para responder, tão afadigado que andaria. Se o Menino queria que os outros meninos andassem bem agasalhados, deveria dar ou mandar esse tal de Pai Natal dar uma camisola a cada um.
O Pai Natal seria então uma espécie de carteiro somente, não era ele que mandava nem sequer era ele que fazia as encomendas. O Menino é que tinha a bondade e o trabalho era dos artesãos, como sempre foi.
O Pedro até pensou que, se assim era, até poderia ter pedido ao Menino alguma coisa em ferro, que este o mandaria fazer ao seu pai, que este andava a dizer que tinha pouco trabalho na sua arte e o dinheiro era pouco em casa. Só que a madrinha insistiu e ele já se não lembrava de nada, nem da camisola de lã.
O Pedro ficou triste, duma tristeza imensa que se não podia ver naquela cara, sem expectativas, que é aquilo que dão aos meninos para eles terem aquele ar embevecido quando recebem os presentes.
Logo se veria, que naquela noite não era ainda a do Menino. Quando deu por ela, no dia seguinte, já havia umas cabaças cortadas em cima da mesa. A mãe chamava-lhes chilas, àquelas verdes de pintas brancas que nasciam penduradas na vinha e a umas, que eram tão amarelinhas por dentro, de abóboras meninas.
O Pedro só reparou que à noite havia umas sacas de pano penduradas que tinham dentro tais cabaças cosidas e que estavam a escorrer água para a dala. Como assim não davam para se comer é porque ainda não era o Natal. No almoço do dia seguinte comeu-se arroz de polvo e a mãe do Pedro disse que à noite seria bacalhau. Então o Pedro soube que, enfim, era a noite de Natal.
Lá apareceu uma bacia de barro com água e bacalhau e um feixe de troços que a mãe do Pedro recebeu duma vizinha. Já a tarde ia adiantada e o fogão, que não tinha deixado de ter lenha a arder, foi espevitado para fritar os bolinhos de chila e de abóbora menina e as rabanadas que a irmã do Pedro lavava em leite quente com canela e em ovos mexidos.
Já quando o bacalhau e as couves coziam, a mãe do Pedro lembrou-se de umas pinhas mansas que tinha guardadas e pô-las no fogão. Então o Pedro teve a certeza que era Natal, tal o forte cheiro a resina que delas saía. Comeu-se com azeite duma tigela e as couves bem regadas.
Tiraram-se os pinhões, lavaram-se em água e secaram-se com um pano. A cada um foi dado um punhado de pinhões e todos se puseram a jogar o rapa, o Pedro também. Era assim como que um pião pequeno que se fazia rodopiar com os dedos e que tanto rapava, como tirava, deixava ou ponha pinhões.
Iam-se comendo uns bolinhos e umas rabanadas com canela e os mais velhos lá beberam um cálice de vinho de uma garrafa que o merceeiro mandara, já era noite. Era doce, diziam, tinha vindo do Porto, mas o Pedro não o provou. O jogo durava já há muito e o Pedro tinha era sono e até já estava sem pinhões.
Queriam pô-lo na cama mas a madrinha ainda lhe lembrou que tinha que pôr um sapato na chaminé, que era lá que o tal Pai Natal que vinha pela chaminé ponha os presentes que o Menino mandava. O Pedro não percebeu bem mas já não interessava. A irmã tirou-lhes as botas e pô-las em cima do fogão e de uns tijolos, que ele ainda estava quente.
Ele ainda espreitou pelo canto de um olho e perguntaram-lhe se queria que o acordassem depois da meia-noite para ver as botas. Só que ele já nada ouviu, as cortinas correram-se, ele estava a dormir.
De manhã, sabe-se lá porquê, o Pedro acordou cedo, mas não ouviu barulho em casa. Todos se tinham deitado tarde a jogar os pinhões e a mãe tinha dito que à meia-noite ainda havia de fazer uns formigos e umas sopas de mel e vinho quente.
O Pedro levantou-se e foi à chaminé, que havia uma gateira que dava alguma claridade, e viu um embrulho em cima das suas botas. Lembrou-se que no último Natal tinha tido um presente: um par de meias embrulhado num pequeno volume. Agora talvez fosse a tal camisola.
Rasgou o papel e abriu uma caixa: foi uma desilusão, não sabia o que aquilo era. Parecia uma raquete com três pintainhos em cima e uns fios que passavam em buracos e estavam presos em baixo a uma mesma pequena bola de madeira.
Pegou naquilo, admirado, e agarrou o cabo com a mão. Verificou então que, mexendo com o aparelho, os passarinhos depenicavam no chão, tique, tique, tique… Se pegasse no cabo e andasse com a raquete um pouco em volta ora penicava um, ora penicava outro e assim sucessivamente...
Era lindo. Foi o melhor presente que o Pedro recebeu em toda a sua vida.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2006

O ensino, uma falência anunciada

É conhecida a falência do sistema de ensino que não fornece ao País os técnicos em quantidade e qualidade que todos reclamam. É sabido que as actividades económicas progridem à revelia do ensino, que este se vê impossibilitado de as acompanhar.
Numa sociedade em que a competição foi alcandorada ao ponto mais alto, como factor capaz de elevar os níveis de todos os parâmetros com que se pode medir o seu sucesso, o ensino não corresponde, antes parece ser a causa principal de tanto ineficiência.
Existe no sistema de ensino um outro sistema paralelo e incrustado naquele, uma malha de interesses que se complementam, que torpedeiam qualquer reforma consistente, qualquer melhoria, qualquer inovação. É um sistema de tal modo entrançado no que devia ser o sistema público oficial que o estrangula.
Não é por falta de dinheiro, nem de empenho de alguns bem intencionados que os tem havido em todos os governos, antes por os sucessivos governos se terem deixado levar por cantos de sereia e terem metido tanto dinheiro num sistema que só tem servido para alimentar parasitismo.
Têm-se confiado na boa vontade de estruturas sindicais, directa ou indirectamente elevadas à categoria de gestoras do sistema, dos professores isolados ou manietados por aquelas estruturas, de outros intervenientes internos e externos com interesses específicos na área. Tudo com uma certa inocência útil.
A displicência instalada nos serviços de Estado directamente relacionados com o ensino, na poderosa máquina do Estado que superintende, inquinada pelo imobilismo, pela chantagem, pela sabotagem, contaminada por tudo que são interesses adversos, faz do ensino público um arremedo de prática pedagógica.
A política do ensino generalista instalada pós 25 de Abril, imposta por uma visão do mundo hoje já decrépita e moribunda, que com o fito de criar igualdade entre os alunos, acabou por dar origem às mais injustas desigualdades ao pôr todos a aprenderem tudo para que o ensino só tenha sentido para quem chega ao seu topo. Quem vai ficando de fora é um segregado do sistema.
A entrada no sistema de ensino de gente não preparada para tal agravou as deficiências já herdadas do antigo regime. Claro que havia que alargar o ensino a nova camadas da população e democratizar o acesso a novas profissões e, se não havia professores para tal, tinha que se recorrer ao que havia.
A criação de emprego no ensino além do mais fez-se em detrimento de outros possíveis empregadores estes sim penalizados pela situação. O sistema de ensino esteve muitos anos canalizado para a sua própria reprodução. A anarquia e o desleixo reinantes foram-se solidificando.
Criou-se a negligência do lado dos professores porque os seus alunos, como não iam no fim do curso para o mundo do trabalho, não tinham que se sujeitar à aferição da qualidade do seu ensino. Criou-se nos alunos a ideia de que teriam sempre um lugar de professor à sua espera, sem se preocuparem muito com isso.
Além de se ter criado a realidade de que qualquer um podia ser professor, permitiu-se a acumulação com outras actividades mais rentáveis, mais trabalhosas, ocupando o essencial do tempo de trabalho das pessoas. O ensino ficou para essas como uma actividade secundária, que cada vez menos tempo ocupava, mas que se não abandonava porque é bem paga e dará um dia uma choruda reforma.
Ainda há um conluio real mas não assumido entre políticos, mulheres dos políticos, estruturas sindicais, professores dispensados total ou parcialmente de o ser, professores passados a políticos ou sindicalistas a tempo inteiro, professores sem sentido ético, “compagnons de route” anestesiados que enviam para a sociedade ideias peregrinas de que o futuro está nas suas mãos e sem eles não há saída possível. Chantageiam com o máximo descaramento.
Os alunos nada sabem do futuro, andam à sua procura e nisso são orientados por gente sem escrúpulos que pintam cenários em que eles próprios são os bons da fita e o resto são monstros cínicos e alguns antropófagos.
Os alunos, desprevenidos, facilmente entram na malha previamente montada porque os pais também não estão preparados para afastar esses fantasmas e estão em muito arredados do contexto e da cultura reinante nas escolas e em que os seus filhos se movem quase exclusivamente durante o dia, uma cultura de relaxamento, de displicência, de desenrasque.
Os ricos metem os filhos nas escolas privadas na fase obrigatória e secundária e nas universidades públicas na fase superior. Os pobres mandam os seus filhos para as escolas públicas na fase do ensino obrigatório e secundário e, se podem, para as universidades privadas, que se arrastam sem glória.
As universidades públicas mantêm ainda uma certa qualidade ao contrário das privadas que querem ter bons resultados mas não investem, socorrem-se de professores que trabalham por baixo preço, herdam todos os males do sistema de ensino secundário público. Os ricos contornam facilmente essas dificuldades.
São mais os pobres que dão razão aos seus filhos no seu permanente conflito com tudo e em que confundem exigência e valorização com descriminação e arbitrariedade. Na impossibilidade de dar uma orientação meritória aos filhos neste mundo deliberadamente confuso, claudicam com os seus argumentos.
O objectivo mais ambicioso é ultrapassar etapas e chegar depressa ao ambicionado canudo, malgrado às vezes só sirva para encaixar e pendurar na parede. Agora que a realidade se vai distanciando cada vez mais das pessoas e mais difícil é de perceber, é sempre bom ter um doutor em casa.
Se se não criar uma opinião pública esclarecida, que não seja monopolizada por aqueles que, directa ou indirectamente, tenham interesses no sistema de ensino vigente, temos um futuro negro à frente, que os empregadores não estão dispostos a investir demasiado na formação dos seus empregados.

sexta-feira, 24 de novembro de 2006

Visita ao Itinerarium III de um poeta com obra feita

A crítica literária é, em muito, feita à base de balanço de um percurso poético, mesmo que esteja em causa apenas uma obra determinada. Mas tal será, tão só, devido ao facto de a crítica ser feita normalmente por pessoas amigas e conhecedoras de toda a obra do poeta.
Não digo isto em sentido depreciativo, como é bom de ver. Além do mais não me era possível fazer igual por desconhecimento, talvez imperdoável, mas isso é outra questão.
Eu não acho recomendável, numa análise “jornalística”, utilizar métodos próprios de compêndio, em que se dá a imagem global da vida do poeta. Qualquer obra, de qualquer poeta tem que valer por si. Nem é necessário especular sobre o que está por trás de qualquer deles, obra ou poeta.
A poesia não estará facilmente à mercê dum prosaico como eu. Porém, penso eu, não a utilizando como técnica, nada me impede de ter vivências poéticas semelhantes às dos verdadeiros “fingidores”.
Se assim não fora não haveria ninguém a “comprar” poesia, se tal fora o hermetismo da sua mensagem e não houvesse partilha. Mas claro que é sempre problemático transmitir por prosa vivências previamente poetizadas.
O nosso objectivo aqui tem de ser incentivar/desincentivar qualquer leitura, sem atender a outros factores, sejam pessoais ou não, salvo os de índole qualitativa, se acaso disso formos capazes. Quem dá uma panorâmica da obra dará sempre realce aos aspectos que lhe saltaram mais à vista.
Como quem vai buscar a pedra para a construção da casa, Cláudio Lima vai buscar a palavra para a construção do verso, para com ele nos dar a razão do seu versejar.
O Autor segue a sua gestação quando o poema amadurece …/num vagar de essências …até que com a maturação se dê a explosão … numa girândola …/de sementes.
Da palavra à música é um caminho curto, qual perfeita simbiose que depura o silêncio e faz explodir as corolas/do sublime.
O ter uma folha em branco é o princípio/da queda na ardilosa teia/das palavras. Palavras que se juntam sem sentido/nem destino, só/ímpeto desarticulado, qual conspiração contra o poeta.
À espera de um só verso … no tempo sem limite, é como esperar que deus redime a espera/que luz ou que quimera? É a utopia capaz de iluminar o universo do Poeta.
Pobre poeta, que as palavras lhe montam, a cada passo, uma armadilha, porque por lúbrico deleite … imagina-se a copular metáforas … nessa ousadia, de solitário e concupiscente trato.
Com girassóis/de alegria e chaminés/verticais de assombro se faz a exaltação da poesia – chave da oclusa manhã enfim liberta.
Aqui chegado, Cláudio Lima dá-nos o seu conselho que é em ti/que pode acontecer/a definitiva noite/do poema. A neblina e a prolixidade são más conselheiras, avisa.
Como ténue guião para o leitor mais distraído chega por aqui. O Poeta mendigo continua algures, “sirvo-me dos restos/que deus desdenhou/vasculho no seu caixote” e, enfim, há-de encontrar as palavras …/de cujas/dispara uma luz clandestina às vezes.
Descrente que a poesia não seja um fingimento, o Poeta diz tudo letra e ilusão/em combinações imperfeitas/-voláteis bolas de sabão/ logo desfeitas. De certo que o Poeta também pode fingir que finge.
De alma vazia o Poeta chega ao arrependimento, que o voo sem asa e sem destino o leva ao fingido orgasmo.
Nem todo o caminho deve ser percorrido com guia, seja este bom ou mau, mesmo por quem dele possa precisar. O leitor fará as suas próprias descobertas, seja na confissão ou na revolta.
Sendo esta poesia, como no geral o é, resultante de uma visão pessoal, esta é aqui claramente assumida, com as suas vivências particulares, reais ou virtuais, mas que encontrarão eco nos sentimentos do leitor.
O último poema, que não é de menor apreço e é evidentemente pessoal, entra na linha de um certo pragmatismo mas, como recusa que é, grito de protesto partilhado por todos os poetas, tem a nossa compreensão. Que viva a poesia!

terça-feira, 21 de novembro de 2006

Há “passadeiras” que só o são na imaginação de alguns

Dúvidas tinha algumas, os amigos juntaram outras e o assunto é de tanto melindre que me custava pronunciar sobre ele. Há aquela conversa de esplanada de Largo de Camões em que todos sabemos tudo, mas dali não vem nem mal nem bem ao mundo. Quando se trata de escrever num jornal, tomar uma posição num órgão de poder há que ser preciso, senão mais vale estar quieto.
Felizmente que chegou a mim uma informação fresquinha, que me esclareceu, sem ser necessário consultar a Lei. Mas mesmo assim eu, que antes tinha medo em, consultando-a, não conseguir ver o assunto na sua perspectiva global, foi à fonte e fiquei definitivamente sem dúvidas.
Mas aquelas informações surgiram-me tão inesperadas no conteúdo que não me atrevo a escrever sobre a questão em questão, que é tão só o atravessamento das faixas de rodagem pelos peões, sem referir a autoridade do Automóvel Clube de Portugal, entidade avalizadora devidamente creditada e em que foi beber tanta “sabedoria”. Que transmito à minha maneira.
Em Ponte de Lima re(fizeram-se) recentemente algumas passadeiras de peões, fizeram-se outras coisas que o não são, mas passaram e passam por o ser e até há gente que jura a pés juntos que o são, na Rua Cândido da Cruz em frente ao n.º 22 e no seguimento da Ponte Medieval para o Largo de Camões.
Só algumas das passadeiras que se “adivinham”, isto é, virtuais, tem sinalização horizontal, no chão, e, na ausência de outra, só essas passadeiras o são efectivamente. Isto é, só essas obrigam o peão a passar por elas, se ele quer atravessar a faixa de rodagem a uma distância inferior a 50 m dela.
Além do mais não há nas passadeiras limianas semáforos nem qualquer sinalização vertical que deveria alertar os peões para o cumprimento da Lei e os condutores para a maior probabilidade das ditas passadeiras aparecerem.
Os peões se, para atravessarem a faixa de rodagem, se não dirigirem a uma passadeira que esteja a menos de 50 m podem ter de pagar uma coima de 10 a 50 € (art.º 101 nº 3 e 5 do Código de Estrada).
Salvo este aspecto os peões podem atravessar a faixa de rodagem em qualquer local, desde que cumpram o seguinte:
“Os peões podem transitar pela faixa de rodagem com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos quando efectuam o seu atravessamento.”. Caso contrário, incorrem na coima de 10 a 50 € (art.º 99 nº. 2 alínea a) e n.º 5).
Os peões têm de ter, fora das passadeiras, precauções redobradas porque aí os condutores não têm que ter especiais cuidados. Já perante as passadeiras estes têm obrigações específicas:
“O condutor deve reduzir a velocidade e, se necessário, parar para deixar passar os peões que já tenham iniciado a travessia da faixa de rodagem.”. E “mesmo que a sinalização (mesmo luminosa) lhe permita avançar, deve deixar passar os peões que já tenham iniciado a travessia da faixa de rodagem.”.
O não cumprimento destas obrigações sujeitam o condutor ao pagamento de uma coima que pode ir de 120 a 600 € (artº. 103 nº. 1,2 e 4).
Assim o respeito pela sinalização luminosa é imperioso quando impeditivo, mas as restantes obrigações são comuns a qualquer passadeira. Pelo seu lado:
“Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nele transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente.” Caso contrário, incorrem na coima de 10 a 50 € (artº. 101 nº 1 e 5).
Vejamos: Acontece haver pessoas que seguindo por um passeio lateral à faixa de rodagem e, tendo à sua frente uma passagem de peões, invertem intempestivamente a sua direcção e atravessam-na sem curar de saber se o condutor tomou todas as cautelas para precaver essa inesperada situação. Estas pessoas estão a infringir a Lei. Não procedem correctamente.
Outra situação que tem o seu quê de caricato, não fora perigosa, é os peões que correm para chegar à passadeira mais depressa do que um carro que dela se aproxima a uma velocidade normal. Claro que não estão a proceder devidamente.
Outra situação perigosa, e que devia merecer a atenção das escolas, é a dos utilizadores de velocípedes, que neste caso são equiparados a peões, mas que dispõe de uma maior velocidade e que se atravessam nas passadeiras inopinadamente, por vezes vindos de trás de qualquer obstáculo visual, criando problemas com carros que delas também se aproximam, mas a uma velocidade normal. Claro que também estes procedem de modo incorrecto.
Voltemos às duas situações acima referidas, situações particulares que merecem ser analisadas, tão referidas e controversas que elas são.
Na impossibilidade de serem colocadas no seguimento da Ponte Medieval barras brancas longitudinais paralelas ao eixo da via porque seria contraditório com o efeito pretendido com aquelas pedras, só será possível assinalar uma passadeira naquele local com duas linhas transversais contínuas de cor branca, a colocar ao lado daquele corredor em pedra homogénea, sinalização a reforçar com um sinal vertical de cada lado da faixa de rodagem.
Para que não levem a sério aquela passadeira a brincar, enviesada e tudo, mas que é considerada efectiva por muito boa gente, será recomendável colocar no fim da Rua Cândido da Cruz uma passadeira real, para que as pessoas lá se dirijam.

sexta-feira, 17 de novembro de 2006

A grande alteração do paradigma da natalidade

A preocupação com os filhos é fenómeno recente, dizem os historiadores. Mesmo na sociedade ocidental de matriz cristã, na qual o menino Jesus era objecto de rara atenção, cuidados com os filhos quase sequer existiam na barriga da mãe.
E, se vista a criança, ela merecia alguma atenção, os cuidados terminavam quando começasse a andar. É que a mãe era peça fundamental na angariação do sustento da família e não tinha tempo para meiguices.
Mesmo nas famílias abastadas da nobreza ou burguesia os filhos eram cedo entregues a amas e criadas e as mães não tinham qualquer preocupação com a maneira como eram tratados.
A mortalidade era imensa mas os nascimentos compensavam largamente esse mortório continuado. As pestes ciclicamente davam cabo de quase metade da população. A esperança de vida era extremamente reduzida.
Mesmo assim periodicamente havia explosões demográficas que davam origem a terríveis crises de escassez de bens alimentares, fermento de guerras, de tentativas de expansão, de cruzadas, de descobrimentos, de migrações.
Só a partir da civilização industrial começou a ser dada outra importância às crianças, valorizando-as como factor económico a ter em conta, tal qual a mão-de-obra constituída pela sua família.
Começou então a pensar-se também no necessário controlo do crescimento populacional de modo a que não houvesse falta nem demasiado excesso de população, de forma a corresponder às necessidades da economia.
As guerras dos dois últimos séculos já não são necessariamente por um problema de expansão da população mas de expansão do domínio, redefinição de fronteiras e da propriedade dos recursos.
Com a paz conseguida após a segunda guerra mundial e a formação das estruturas que darão origem à Comunidade Europeia, criaram-se condições para passarem a ser consideradas e generalizadas novas preocupações com os filhos.
Com a evolução da condição feminina, o papel e a opinião da mulher vão sendo cada vez mais preponderantes na questão da natalidade e cada vez mais contrários à formação de famílias extensas.
Com o aumento da escolaridade e das exigências dos próprios jovens, o ter filhos passa a ser cada vez mais considerado como um encargo que se cria para um período significativo de vida o que normalmente é vivido com maior hedonismo.
Estes e outros factores estão a dar origem a uma situação de declínio da população. A pirâmide da população aguça na base e alarga-se no topo, tendendo para um aspecto de paralelepípedo, diminuindo a população em idade de trabalhar.
Com o aumento da esperança de vida, os encargos com o topo da pirâmide da população vão aumentar ainda mais e os governos afadigam-se em planos para vir a minimizar em tempo útil este problema.
Simultaneamente os governos vêem-se na necessidade de fazer inverter a situação da natalidade, conscientes que suprir a necessidade de trabalhadores com o recurso à imigração não resolve a situação. Também os imigrantes informam dos mesmos “defeitos” e não deixarão gerações para os substituir.
Ter filhos parece ser mesmo um embaraço e mesmo que se diga aos jovens actuais que, por este andar, não haverá, em devido tempo, ninguém para lhes pagar as reformas, eles não se dispõem a ter três ou mais filhos como antigamente.
Para os jovens o tempo e o dinheiro já têm destinos programados, muito antes de se lá chegar e de se ver a sua cor. Quer dizer que já não se caminha para o futuro com os mesmos olhos de antigamente.
A competição está agora ao virar da esquina, na pista de dança e na medida da cintura. Os filhos podem ser um empecilho que dificulta os golpes de rim. Só a diminuição da competição desenfreada pode contribuir para alargar o cinto.
A natalidade não pode ser reduzida ao nível do capricho que fica caro ter. Caro em condições económicas, mas também em condições psicológicas e sociológicas. Ninguém tem hoje sequer a garantia da partilha desses encargos.
Impõe-se uma diminuição da idade em que os jovens que querem ser “doutores”, hoje todos, adquirem a sua independência económica. Para além de se não abandonar a formação universalista, impõe-se definir mais cedo cada curriculum em função da formação final a atingir.
Impõe-se que a paternidade partilhada seja mais que uma contribuição monetária para as fraldas dos filhos. Os encargos com a criação dos filhos têm de extravasar muito as simples trocas de afectos em momentos pré-definidos.
A reversão do paradigma civilizacional não é fácil e será mesmo impossível no nosso tempo. Outras civilizações vão ter uma palavra a dizer na fixação de novos paradigmas, se continuar o actual processo de globalização.
A civilização ocidental só tem a ganhar em se não isolar numa solitária decadência. Esperemos é que as outras civilizações saibam ultrapassar as muitas contradições de que elas próprias informam.

terça-feira, 14 de novembro de 2006

O Carro é o amigo mais fiel do …………….Governo

Nesta questão das finanças públicas o mais pintado se espanta: Eles, os responsáveis pelo nosso governo, que 99,9% são sempre os mesmos (e só 0,1 % vão aprendendo alguma coisa e mudam de ideias), andaram anos após anos a dar a alguns e a prometer a muitos.
(Daqueles responsáveis, grosso modo, 49,95 % são do P.S. e outros tantos do P:S.D.. Mudam 0,05 % do P.S. e outros tantos dos restantes partidos).
Esses mesmos responsáveis (Não vou agora discutir se estão entre os 49,95% ou entre os 0,05 %) tiram agora uns trocados a alguns e sacam o que podem a muitos. Que o Governo não tem dinheiro, que os cofres estão vazios. Instalou-se uma espécie de peditório nacional. É a crise que está aí.
São os hospitais que gastam tudo em papel higiénico, é a G.N.R. nas balas, os professores nas greves, os alunos nas cervejas, todos andam em aulas para verbalizar queixumes, valha-nos isso. Estar pronto a aparecer na televisão compensa bem um mês sem salário.
Fala-se mas a sério acho que a crise não vai chegar aos detentores do poder na poderosa máquina do Estado. Fala-se em migalhas mas o grosso não é tocado. Há muito parasita que, a trabalhar ou na reforma, é um pesado encargo.
De qualquer modo há um pouco de exagero em virar toda a artilharia contra os funcionários públicos. Porque se os das linhas mais baixas são responsáveis pela fraca produtividade, de que são responsáveis os das linhas superiores?
Nunca se pode dizer que a crise chega a todos. Andam para aí uns gajos a quem sobraram uns “cobres” da anterior crise no Vale do Ave, ou outra afim, e que compram boas charretes puxadas, não por um cavalo, mas por tantos quantos cabem na Ponte Eiffel de Viana do Castelo.
Depois de aparecer alguém a decretar o fim da crise vamos estar alerta que só então se saberá se esta crise chegou efectivamente a todos. Se sobrarem umas massas a alguns figurões para comprarem uns aviões, então continuamos na mesma. Teremos sempre razão, mas quando já é tarde demais.
À maioria resta contribuir, condescender no que estamos habituados, pagar aqui e acolá, moderar os gastos nisto e naquilo, apertar o cinto e o colete também, juntar bem a roupa ao pelo, não se vá apanhar uma gripe. Se chegarmos vivos ao fim da crise já é bom.
É que a crise está de pedra e cal, não vai embora tão cedo. Nós cá fomos sentindo-a, qual tempestade que atinge todo o território nacional, mas agora veio sob a forma de furacão para esta região.
Por onde havia de vir? Claro que pela estrada mais utilizada, por onde havia de ser! Porto - Viana do Castelo vai passar a ser uma ex-Scut, que o utilizador vai ter que pagar, que nós teríamos entrado no clube dos ricos.
Nós que aceitamos o princípio do utilizador pagador, que é melhor ser este a pagar do que pagarmos todos, mesmos de forma diferida, achamos que há aqui algo de precipitado e há mesmo um senão.
Ninguém aceitaria que, por ter um vizinho com uma rica casa, teria que pagar pelo seu casebre o mesmo I.M.I. que ele. Quando se diz que o Baixo Minho é uma região rica e tem de pagar portagens nós temos de ser levados na enxurrada?
Se nós, o Alto Minho, estamos na cauda de tudo o que é indicador, se muito se deve a nós, mas muito mais aos governantes que temos tido, não se aceita um agravamento do que já é problemático.
Pagar portagens a Norte da Póvoa do Varzim é de todo intolerável. É que mesmo a parte do Baixo Minho Litoral acima da Póvoa tem os mesmos índices do Alto Minho. Há um princípio de solidariedade com Esposende que devemos assumir.
Sabe-se que aquilo que o Governo pretende é apanhar na sua rede de cobrança de contributos para a crise é o transporte internacional que foge à auto-estrada de Ponte de Lima. Mas nós não temos a culpa.
Quando se fala em arrecadar mais dinheiro, a primeira forma que surge no espírito dos governantes é tributar os veículos de transporte e tudo aquilo que tem a ver com a sua utilização. Em especial os combustíveis e as portagens.
Tornamo-nos de tal forma escravos dos veículos automóveis, dependentes da sua utilização no transporte pessoal e de mercadorias, que não prescindimos deles. O Estado agradece, o seu consumo é dos mais facilmente tributáveis, que aqui quase todos bebem do mesmo.
Um carro, um autocarro, um camião são como porcos que deles para tudo se arranja aproveitamento, isto é, um impostozinho. São o melhor mealheiro para os momentos de crise.

terça-feira, 7 de novembro de 2006

Os comentadores

A certos comentadores da coisa pública corre-lhes facilmente a pena para a sandice. A técnica é sempre a mesma, sem inovação e criatividade, começam por lançar cortinas de fumo, fazem falsas profecias, pintam o futuro de negro e lá vai a arrufada de insultos do costume.
O objectivo, não é de esclarecer ninguém, não é de deixar que as pessoas tirem conclusões por elas próprias, é sim de sentenciar, de chatear, qual a esperança de que alguém mude de direcção, só por, eventualmente, vir a ler coisas que só se entendem se se analisar o estado de espírito de quem as escreve.
Proclama-se que as pessoas estão a trabalhar para criar o inferno no futuro. Como a nível local as pessoas se conhecem e este discurso não passa tão incólume, estes comentaristas viram-se para o nacional. Ataca-se alvoroçadamente este ou outro qualquer governo, tanto faz.
Nada mais louvável que a pretensão de querer que os outros vejam aquilo que possivelmente não vêm. Mas tal não se consegue com um quadro previamente pintado, por mais qualidade que ele tenha, mas com a sua pintura perante os olhos de todos, para que eles saibam como pode ser criado ou pode ser evitado.
A premunição simples não é eficaz, já ninguém acredita em visionários. As pessoas já deixaram de se identificar por estados de alma.
O que se passa com estas perspectivas negativas a que as pessoas estão mais habituadas passa-se igualmente com as apologéticas. Também os reveladores de futuros risonhos agem de modo similar. Os seus ídolos fazem tudo de bem, cada passo seu é um passo para o seu e nosso céu.
A nível local muitas pessoas procedem assim e acreditam em amanhãs que cantam. Por exemplo aquelas que vêem jardins, bosques, pintassilgos e canários por todo o lado e turistas a aterrar em jactos resplandecentes no planalto de Antelas. Como a nível nacional há aqueles cujos ídolos residem mais longe, em Lisboa, e vêem os jactos com triliões de turistas a aterrar na Ota, claro.
Estes têm de fazer do passado um cataclismo e de criar um momento no tempo universal a partir do qual o Sol passou a resplandecer a todas as horas do dia. Se não houvera quem do presente já fizera esta maravilha em que vivemos, o futuro nunca seria tão magnífico como eles e só eles o vêm.
Ora nada disto é verdade, nem as perspectivas são tão negras nem tão brilhantes como muito querem fazer crer.
Que esta Câmara de Ponte de Lima não tem plano é bom de ver, quando se entende que deveria haver uma ideia consensual de qual a evolução futura do concelho, para que não houvesse informação privilegiada e hipóteses de corrupção.
Que este governo não é socialista é bom de ver, quando por socialista se entende como um distribuidor daquilo que há, mas que neste caso não há, porque não tem que haver ou porque atrás alguém colocou o que havia em certas mãos impróprias.
Que esta Câmara de Ponte de Lima sofre dos problemas de excesso de poder de que sofrem todas as Câmaras por esse País fora é bom de ver, quando sendo responsáveis pela concepção dos documentos de planeamento, são também pela sua execução. Não há uma Assembleia Municipal com poderes efectivos.
Que este governo permite a acumulação capitalista é bom de ver, mas qual o governo por esse mundo fora que não permite, mesmo os poucos que dizem o contrário, e que quando caem deixam ver toda a espécie de podridão que escondem.
Perante a dificuldade hoje existente em se ser justo, esperar-se-ia que não houvesse pretensos julgadores da história, mas efectivos construtores do futuro. Só uma sociedade de homens livres, sem cartilhas e sem manhas, poderá vir a construir um Estado sério, nem pendura e sem penduras.
A relatividade hoje existente em relação a valores e princípios que há uns anos se consideravam património inalienável de uma corrente política ou até, por extensão, da humanidade, é por demais evidente.
Também o novo enquadramento das pessoas é mais complexo do que há uns anos atrás, pela reformulação e crescimento das classes, pelas novos esquemas que as pessoas voluntariamente compartilham, pelas vitimações a que a comunicação dá origem, pela facilidade de fazer eco com a vaidade e com o choradinho nacionais.
Perante tanta turbulência é por demais importante falar para o homem comum, aquele que tem as qualidades e defeitos do homem de hoje, mas que tem a capacidade de ser o homem de amanhã.É necessário que se fomente nesse homem comum uma sadia sede de justiça e se evite ou anule uma insaciável sede de vingança.

domingo, 5 de novembro de 2006

Com bom vinho se fazem bons amigos

Uma frase atribuída a Salazar afirmava que “ beber vinho é dar de comer a um milhão de portugueses”. Hoje, manifestamente, que assim não é, e ainda bem, porque para proporcionar rendimentos suficientes a um milhão teríamos que beber muito vinho, o que de certo nos faria algum mal.
Mas a vinha, mãe deste precioso néctar, continua a ocupar um lugar privilegiado na paisagem rural e em alguns sítios exclusivo até. Videiras cortadas, vinhas abandonadas, crise a sério só em Ponte de Lima pelos erros cometidos.
Proponho-me fazer um louvor ao vinho, caminhando por outra via, que não esta da economia, demasiado batida e desagradável nesta altura de recessão. Esqueçamos dívidas e dúvidas quanto ao futuro e quem tão mal fez ao vinho.
O vinho tão louvado tem sido, que é difícil ser inovador. Desde tempos imemoriais, logo que se descobriram as imensas qualidades do mosto gerado pelas uvas, que ele tem sido melhorado, seleccionado e não deixou de ser apreciado.
Gregos e Romanos concederam-lhe célebres patronos, com assento no reino dos Deuses. Se para a maioria dos povos sempre foi objecto de intensas libações, para o Cristianismo ascendeu ao plano simbólico de “sangue de Cristo”.
Só os muçulmanos lhe atribuem mais defeitos que virtudes. Mas uma coisa é certa: Há culpas que se atribuem ao vinho que não lhe pertencem, como se prova por eles próprios que, para fazerem tanta asneira, não precisam de beber.
Eu, por mim, confesso, de todas as bebidas, desde a água aos simples sumos miscíveis, às miscelâneas ditas naturais, chegando às bebidas fermentadas e destiladas, a que mais aprecio depois da água é o vinho.
Não se riam: Eu tenho pela água uma veneração que assume aspectos divinais, ela que sempre foi considerada elemento entre os essenciais que compõem o universo. Eu aceito o seu carácter sagrado e bebo-a com moderação.
E, embora infelizmente aconteça, hoje o vinho já dá mais garantias de pureza que a própria água. Tanto assim que já há vinhos ecológicos, sem esses horríveis fungicidas e pesticidas, que quando muito absorvem algum herbicida, que é preciso tirar as ervas e a sachola é pesada.
A água do solo pode não ser pura, que a videira funciona como um depurador natural, de tal modo que a água quando chega à uva já vai liberta de impurezas, pura como a das nascentes de antigamente.
A uva acrescenta então a essa água assim purificada os milagrosos aromas, ácidos, taninos, não me preocupei em fazer ciência, mas acho que há mais alguns e que até só se libertam na fermentação dos seus açúcares. O que interessa é o resultado.
A grande diferença do vinho para outras bebidas, essas bem mais responsáveis pelos malefícios que se lhe atribuem, é que ele é uma bebida fermentada, resultado de uma transformação natural, com baixo grau alcoólico.
Não sou delator, mas olhem que as grandes culpadas do alcoolismo e dos seus efeitos maléficos são as bebidas destiladas, que simples ou compostas, transportam o álcool em estado puro para o organismo humano.
O álcool resultante de fermentações é diferente do que resulta de destilações. O mal é quando se faz vinho a “martelo”, pois aí usa-se este álcool, tal como na confecção das aguardentes, licores, whisky, bebidas brancas em geral.
A defesa do carácter genuíno do vinho é importante para a preservação do seu papel na nossa cultura milenar, no relacionamento humano. Tanto é verdade que nós sabemos ser muito mais fácil entendermo-nos com o leve desprendimento que ele nos proporciona.
O papel das Adegas Cooperativas deveria passar estatutariamente por aí. E em relação ao vinho verde, um vinho difícil, com grandes mudanças de quantidade e qualidade de um ano para o outro, resultado de pequenas produções, com métodos de cultura diferenciados, esse papel era, há uns anos, imprescindível.
Hoje já vão aparecendo outras formas de associação, normalmente à volta de uma razoável produtor, que dá também saída à produção de uns tantos “vizinhos”. E as Adegas correm o risco de ficar com as produções residuais, sem o prestígio que lhes permita exercer aquela função de que algumas, aliás, largaram criminosamente a mão. Infelizmente, por isso nunca ninguém foi penalizado.
O vinho verde é um vinho para beber jovem, isto é, não dá para ser envelhecido em cascos, garrafas ou qualquer outro recipiente. Além do mais, o vinho verde tem características próprias que se lhe permitem manter os apreciadores, não favorecem novas angariações.
Tendo a sua produção crescido muito, em particular a de vinho branco só a qualidade permite ambicionar novas adesões à sua bebida. Com as campanhas feitas contra o álcool, este vinho que sozinho será o menos culpado por acidentes, doenças ou outras maleitas, foi dos que mais pagou, dos que mais saiu prejudicado.
Enfim, hoje a aposta virou no bom sentido, do vinho verde tinto, vinho único e, parece, inimitável em qualquer região do mundo. As suas qualidades voltam a ser apreciadas, selecciona-se melhor as castas, aperfeiçoa-se a sua confecção, depuram-se os elementos que lhe poderiam deteriorar o aspecto e sabor.
Então o vinho verde tinto voltou a ser o Rei. Pode ser bebido em maior quantidade do que o maduro ou o próprio verde branco, é benéfico para a saúde, para a flora intestinal. E é o que melhor convívio proporciona à volta de umas castanhas ou um outro petisco, para que não caia desamparado no estômago.
Não digo isto com qualquer interesse que o meu vinho é fraco, não é vendável e não sou comerciante. Mas é de toda a justiça louvar quem tanto trabalho tem para o produzir, produz do “bô” e dá de beber ao amigo que, quando aparece, vem sempre com uma sede daquelas de quem subiu o monte a pé.
Por isso dedico este artigo a um grande amigo que o faz do melhor, mas que não indico quem é, porque senão o seu vinho não chegaria para os “amigos de ocasião”. Estou a brincar, apareçam que bebem também. Com bom vinho se fazem bons amigos.

Festa Portuguesa em Martres de Veyre

Quando duas vilas se geminam assumem projectos comuns, intercâmbios que proporcionam relacionamentos proveitosos para ambas.
Apesar da diferença de meios, da diferente estruturação do poder local em Portugal e França, Arcoselo e Martres de Veyre prosseguem na sua atitude de fortalecimento dos laços que já as unem.
Com este propósito deslocou-se a Martres de Veyre uma delegação da Vila de Arcoselo, tendo sido assinado, pelas respectivas Associações de Geminação, um protocolo para a área da educação que pretende desenvolver o intercâmbio juvenil.
Estas duas vilas têm uma dimensão territorial e populacional, estruturas sociais e educacionais semelhantes e, como seria de esperar algumas características diferentes.
Se é verdade que em Arcoselo a agricultura nunca foi actividade exclusiva e deixou de ser dominante há uns trinta anos, em Martres de Veyre, estando na zona de influência da industrial Clermont-Ferrand, a viticultura, como sua actividade preponderante, já há muito foi abandonada.
Se é verdade que Arcoselo tem uma zona histórica que integra a Zona Histórico de Ponte de Lima e mais alguns lugares com características urbanas, Martres de Veyre tem uma Zona Histórica própria, muito antiga e concentrada.
Tem uma particular beleza as suas ruas floridas e os seus “impasses”, ruelas sem continuidade que constituem bonitos recantos, aconchegados para o Inverno, acolhedores no Verão.
Os portugueses que demandaram estas paragens, muitos há quatro décadas, estão perfeitamente integrados nesta vila, nesta sociedade tolerante e receptiva às diferenças culturais, característica francesa que tem aqui um expoente dificilmente ultrapassável.
Nota-se que há uma conjugação de esforços para que a comunidade portuguesa, estando bem integrada, não seja assimilada e para que não perca as suas próprias idiossincrasias, antes para que as preserve e valorize.
Esta ligação a Arcoselo é vital para manter aquele vínculo às suas origens, aos usos e costumes que os franceses não rejeitam e até a alguns dos quais, de bom grado, aderem. A sua alegria em participar numa festa dos portugueses, realizada no decorrer desta visita, foi evidente.
Vital também é que as gerações futuras continuem a falar português. Se isso está garantido aqui na segunda geração, já será mais problemático a partir da terceira, sendo esta já, em muito, resultado de ligações matrimoniais entre elementos das duas comunidades. Além do querer será necessário apoio.
Também nas escolas públicas francesas o espanhol já suplantou o português. Há pois que fazer grandes esforços para que comunidades como esta, que tão arreigadamente querem manter os seus laços à terra e usar a sua língua, o possam fazer.
Estas viagens, como a desta delegação da Associação de Geminação Arcoselo - Martres de Veyre, não são um desperdício, mas antes mais um contributo válido para manter viva a chama de portugalidade que os franceses também se empenham em que seja mantida acesa no seu seio.
Martres de Veyre não é Paris mas brilha no coração da França, tão perto do Puy-de-Dôme, nesta região do maciço central francês onde a alma francesa tem a sua manifestação mais profunda. Aqui tão perto, em Gergovie, neste vale do Allier, foi onde, pela primeira vez, os gauleses comandados por Vercingétorix venceram as hostes romanas de Júlio César.
O vale do Allier, afluente do Loire, é de uma beleza surpreendente que se pode desfrutar dos vários montes circundantes, muitos de origem vulcânica, e destaca-se pelo multicolorido dos seus campos de trigo, das suas vinhas e pomares de árvores de fruto, em particular nogueiras, das suas vilas dispersas.
Martres de Veyre, como Arcoselo, não se pode dissociar da beleza que a rodeia. Também neste aspecto, ambas são locais privilegiados, usufrutuários de paisagens magníficas e deslumbrantes, cuja contemplação liberta a alma para a sua verdadeira função: a espiritualidade.
Neste relacionamento entre Arcoselo e Martres de Veyre é a comunhão espiritual que prevalece. Não existe qualquer artificialidade, antes parece que já nos conhecemos há séculos e que esta amizade perdurará enquanto em Martres de Veyre houver algum sangue arcoselense.
E, a avaliar pela determinação e empenho dos que vivem em Martres de Veyre, que também são de Paredes de Coura, Viana do Castelo, Santo Tirso, Póvoa do Lanhoso e doutras terras, o sangue português nesta linda terra de França não se prevê que deixe de existir.
Se estes portugueses são os “ponta de lança” da nossa maneira de ser e da nossa cultura, nós não os podemos nunca atraiçoar, antes temos de constituir para eles um esteio bem forte, a fonte e que mereça continuar a ser o destino dos seus sentimentos mais nobres.

sexta-feira, 3 de novembro de 2006

A Escola na glorificação e na segregação

A escola hoje não é um patamar na vida de um homem mas um conjunto complexo deles, com diferentes objectivos, destinados a idades específicas, com formas organizacionais próprias e avaliações com critérios e exigências particulares.
Tem sido norma, comummente aceite, a tentativa de uma melhor adequação do tempo dedicado à escolaridade, de adaptação dos métodos e das actividades praticadas na escola à vivência própria da idade dos alunos, de modo a que haja um percurso paralelo ou o mais convergente possível.
Paralelamente atende-se cada vez mais ao papel da família na educação, à medida que, contraditoriamente, a família tem cada vez menos tempo e disponibilidade, até mental, para dedicar aos seus filhos.
A escola vê-se na contingência de assumir nova tarefas. Por exemplo, se a família não tem possibilidades de ensinar música, e é a família, e por extensão a sociedade, que cada vez mais faz essa exigência, é o Estado que tem que facultar essa possibilidade. Aliás a família está, no geral, bastante distante do contexto em que os seus filhos se movimentam.
Mas a partir de certa altura começa a ser problemática a capacidade da escola em acompanhar o desenvolvimento dos seus alunos e de ter o poder de dar satisfação a todas as possíveis exigências, muitas não suportáveis no contexto escolar.
Se nós olharmos umas décadas atrás verificamos que a fase de maturidade ou pelo menos de assumpção de muitas responsabilidades sociais se atingia em idades em que hoje ainda só se estuda e se não pensa dar esse passo.
Mas o natural é que os alunos vão tendo que dar resposta a novos estímulos externos, da sociedade e a novos apelos interiores, do seu próprio ser. Para eles vai-se tornando cada vez mais premente a necessidade de uma certa independência, de ter um poder de iniciativa que lhes não é facultado.
E as dificuldades vão surgindo em ignorar esses estímulos, controlar esses apelos e conciliar as exigências do estudo, a dependência económica, o adiamento do “ser” com a promessa de uma saída airosa para a “vida real”.
Quando o sistema escolar está estruturado em patamares, mas só se concebe uma saída pelo topo, quando a família não tem qualquer possibilidade de ver os seus filhos aí chegar, o desinteresse em atingir qualquer ponto intermédio generaliza-se, a perspectiva para os alunos vai-se deteriorando.
Se virmos o problema na perspectiva única da família verificamos que, se esta é de todo disfuncional ou se tem tempo mas não tem saber ou se tem saber e não tem tempo, é só quase da capacidade única dos filhos que depende algum sucesso escolar e algum do seu sucesso na integração laboral e social.
É em relação a estes alunos que vivem num contexto familiar desfavorável que mais se exerce a influência negativa que resulta da falta de sintonia entre um percurso normal de vida e o percurso escolar que, um pouco contra-natura, foi incrustado naquele.
Em cada patamar do estudo se vai pondo o problema de saber se este vai ou não ser o último. E tendo isto a ver com a capacidade da família, a sua cultura própria, o relacionamento interno dos seus membros, o aluno é o primeiro a se aperceber se há efectivo apoio para que possa fazer a sua inserção imediata na vida activa ou para a protelar por mais uns tempos.
Haverá sempre uma altura em que os alunos têm que sair da escola, abandonar esse mundo descaracterístico e artificial e enfrentar o mundo do trabalho. E cada vez mais a escola tem que estar preparada para deixar sair do seu seio alunos capazes de se confrontarem com essa mudança e de se adaptarem às novas exigências que se lhes vão deparando.
A adequação dos patamares do ensino aos ciclos normais da vida da criança, das fases da adolescência e de uma certa mas imprecisa maturidade seria um passo importante para que a mudança para a vida laboral se não fizesse a meio de ciclos e houvesse uma melhor transição.
Não há qualquer drama em nem todos saírem pelo topo do sistema. Nem todos podemos ser “Doutores”. Mais, a sociedade não preciso só de “Doutores”. A escola tem que incluir para os que acabam a escolaridade obrigatória e para o final de cada um dos patamares seguintes uma forma de inserção dos seus alunos no mundo do trabalho, numa vida social mais ampla do que aquela a que, enquanto estudantes, estariam habituados.
Continuarão a existir, por força da divisão do trabalho, tarefas que poderão ser desempenhadas com igual dignidade por aqueles que não possam ou não queiram “suportar” tantos anos de escolaridade. Mas que têm direito a ter uma habilitação intermédia valorizada e exigente.
O Estado não pode, mercê da deficiente estrutura em patamares da escolaridade que nos faculta, dando exagerada importância ao topo e deixando a parte que constitui o cerne do sistema no maior desleixo, contribuir para uma abusiva estratificação social, em que o que conta é ser “Doutor”.
O Estado tem que tudo fazer para, com o mínimo de interferência na vida familiar, dar igualdade de oportunidades a todos. Há percursos escolares que, em princípio, não estarão ao alcance de muitos, por razões económicas e familiares, mas uma interferência na família pode repercutir-se na sua harmonia.
Acima de tudo o Estado tem de proporcionar saídas dignas. Todos os que, por terem menos capacidades ou por qualquer outra razão, vão terminando o seu plano de estudos, merecem igualmente sair dignificados, para que não haja ninguém segregado.
De qualquer forma o alcance de mais um ou menos um patamar no percurso escolar não pode ser motivo de discriminação, sendo que hoje essa ameaça é usada como incentivo para os alunos mais novos ambicionarem ir mais além.Infelizmente a segregação não começa quando o “filho da mamã” atinge o ambicionado “canudo” mas quando lhe é incutido, enquanto criança, que se não obtiver o dito não é nada na vida. E mais, quando nunca se lhe chega a dizer que se pode estar a criar um “monstro”. E há tanta gente digna sem “canudo”.

terça-feira, 31 de outubro de 2006

Os Cibernéticos da casa não fazem milagres

Há uma máxima que sentencia que “Santos da casa não fazem milagres”. Se assim é, é porque esperamos conflitos. Mesmo assim não podemos ver esta situação sobre uma óptica depreciativa, porque é muito natural que nós tenhamos mais conflitos com as pessoas com quem mais convivemos.
Esta máxima pode-se ainda alargar um pouco e aplicar aos Santos da beira da porta, aos da aldeia, aos da terra e por aí nos havemos de ficar. Claro que agora há Internet e, caminhando pelo ciberespaço nós chegamos ao mundo, mas este tem mais com que se preocupar do que connosco.
Vai daí, aquilo com que temos de nos preocupar mesmo é com a gestão dos conflitos caseiros, de vizinhança, de aldeia ou da terrinha. No fundo é das pessoas com que interagimos nestas áreas restritas que esperaríamos o milagre de não haver conflitos. Com as mais longínquas já só haverá conflitos virtuais.
Um bom milagre já é a ausência de conflitos reais. Mas estes surgem e se não houve solução para os não criar, há que contribuir para os não empolar ou para os ignorar.
Se muitos nascem sem pernas para andar outros depressa atingem o seu apogeu. Então só resta relativizar a sua importância ou encontrar a sua solução no contexto em que foi criado. É difícil, porque as pessoas não querem regressar aí.
O que complica ainda mais a situação é que muitos conflitos que se pensa terem sido agora criados, têm as raízes no passado, em outros conflitos não resolvidos e não necessariamente da mesma natureza. Muitos são resultado de revanches, vinganças que nunca encontrarão solução.
É lamentável que a Internet seja usada para criar ou avivar conflitos. Muitos já constataram que é o meio mais cómodo para aferroar uma pessoa ou lança-lhe umas farpas que a vão maçando. O que prova que os pensamentos mesquinhos são os primeiros a aproveitar as novas oportunidades.
Sendo um meio com pouca repercussão pública não deixa de provocar os seus efeitos nas mãos de pessoas assim. Um meio aberto à mais ampla consulta seria idealmente bom que lá revelássemos o que temos de bom, as soluções que congeminamos para o que temos de mau e não andássemos a inventar intenções, quando não factos que não correspondem à realidade.
Ninguém vai andar a navegar à procura de conflitos de pouca dimensão, mesmo de quem se possa julgar o centro do mundo. Mas os mais conhecidos é natural que dêem alguma importância e isto lhes sirva para satisfazer algum capricho. Mas também podemos levar este mundo a sério.
Assim não nos podemos admirar por aquilo que se passa neste mundo ainda um pouco lateral, como que escondido às vistas de quem ainda é o nosso homem-padrão, que é sempre para ele, tendo-o em mente, que nós escrevemos.
Ora esse homem, seja o que temos, seja o padrão de sociedades mais evoluídas, nunca será um assimilador activo de novas ideias, pela adesão vinculativa da sua inteligência, da sua emotividade e quiçá da sua afectividade.
O homem “normal” antes procurará sempre alguém que, por ser portador de determinado sistema de ideias e princípios o possa vir a representar a cada um dos vários níveis em que é solicitada a sua intervenção.
Os nossos políticos com blog não ignoram que são virtuais representantes de alguém, pelo que são políticos na acessão mais ampla da palavra. Pretendentes a integrantes dum sistema de representação são evidentemente.
Como muitos já o foram, são geralmente considerados assim e não restarão dúvidas que agem como candidatos a tal. O que atrapalha um pouco estes candidatos é que os que têm passado não se querem responsabilizar por ele e os que o não têm brincam com o presente.
Mas com o presente só brincarão se nós deixarmos. Mentiras e conclusões erróneas e abusivas não serão por mim aceites quando se faça uma referência implícita ou explícita em relação àquilo que eu escrevo nestas páginas ou noutras.
Escuso-me a voltar a apreciar um prato requentado, trazido dum blog do Sr. Nuno Matos para este Jornal. Como a “polémica” na blogosfera já vai num outro patamar, de certo mais elevado, recuso-me a repô-lo a um nível que eu abomino.
Pelo que escrevi acima acho que já será explícito que não morro de amores pela blogosfera, que não me escuso a qualquer polémica em qualquer ambiente desde que não haja argumentos cruzados provindos de ambientes diferentes e sinceramente aprecio mais a comunicação escrita e impressa.
Ah! E utilizem os meus comentários para me atacarem a mim, para porem em causa possíveis incongruências e inverdades, mas não para atacarem quem neles não é citado.

sexta-feira, 27 de outubro de 2006

A autoridade e os grupos em contexto escolar

No nosso País a sociedade tem muito pouco peso e está permanentemente à espera que seja o Estado a resolver todos os problemas. E este lá vai tentando chegar a todo o lado, omnipresente, que não seja doutra maneira, pelo menos pela sua notada ausência.
O Estado moderno estruturou-se há pouco tempo e ainda estamos longe de uma correcta afectação de recursos. Vão-se fixando prioridades, aqui e ali, a educação é daquelas que, de tempos a tempos, salta para os primeiros lugares.
Só que quando assim é nem sempre as soluções encontradas encontram receptividade e as sondagens feitas com dados reais nem sempre correspondem à expectativa criada. Quando se não sabe bem aquilo que se quer, pedem-se e rejeitam-se as coisas quase aleatoriamente.
Analisando a nossa situação em relação à educação e em termos comparativos, têm-se chegado à conclusão de que estamos bem pior do que devíamos. E se admitirmos que o Estado algo tem feito para inverter esta situação, concluímos facilmente que as resistências são tais que a sua acção resulta ineficaz.
Há uma conjugação de interesses instalados com a falta de perspectivas para colocar estas questões, com visões unilaterais e restritas. Tais manipulações fazem com que aquilo que noutros lados foi reivindicado seja cá rejeitado.
E para cúmulo não se trata aqui de investir muito dinheiro mas, de modo principal, empenho, perseverança, disciplina, rigor. Conclui-se facilmente que o Estado não tem sabido o que fazer ou não tem poder para fazer o que se impõe.
Acresce que a educação é um assunto em que o papel do Estado é fundamental e o papel da sociedade passa por ter que ser exigente. Para esta a principal questão é a necessidade de se organizar para colocar exigências claras e saber reivindicar o seu cumprimento.
Longe vão os tempos em que os conhecimentos eram comunicados de pais a filhos e tanto chegava. Hoje em dia os pais já não têm tempo para isso e transmitir todos os seus conhecimentos obrigaria a um exagerado dispêndio de tempo e energia, necessários para garantir o sustento da família.
Acresce ainda que tal, de modo algum, garantiria que esses conhecimentos seriam aqueles de que os seus filhos precisarão quando forem “grandes”, isto é, quando precisarem de angariar os seus próprios rendimentos.
Então aqui sim tem de ser o Estado a definir quais os conhecimentos que devem ser administrados aos alunos e a preparar e pagar a quem lhos ministre. E aos alunos impõe-se que para os adquirir se tenham que juntar em escolas para que o preço do ensino não saia incomportável.
A responsabilidade do Estado é neste domínio de tal modo importante que não se coaduna com o deixa andar que lhe é característico, com o desleixo e com a sua entrega por renúncia a sindicatos ou a gestões “ditas” democráticas.
O Estado tem uma responsabilidade de carácter técnico, organizacional mas também de adequar o ensino às necessidades da economia, da formação humana, da convivência fraterna, da transmissão dos valores culturais mais apropriados às exigências do futuro com a manutenção das características essenciais do homem.
Ao Estado cabe fazer a selecção dos valores em que assenta o “seu” ensino e a preparação das pessoas para que todas elas tenham o seu devido lugar no futuro. Aos agentes do ensino tem que ser exigido o seu envolvimento nesta tarefa.
Ao Estado cabe fazer a agregação de gestores, professores e outros agentes para que nas escolas públicas se faça educação. Todos os profissionais envolvidos têm que ter sempre bem presente na sua mente que “aqui” quem tem direito a ter problemas são os alunos.
Estes, durante todo o tempo da sua escolaridade, e em grande parte dos dias, vêm-se bastante desligados do meio familiar e deparam-se com múltiplos problemas de que destacarei: a transferência de autoridade, a necessidade de contextualização da sua vivência escolar; a convivência dos múltiplos apelos que lhe surgem com um horizonte temporal passado, e possivelmente futuro, estratificado e orientado em sentido diferente do seu.
A escola como local hoje imprescindível para a socialização e transmissão de conhecimentos, se comporta por esta razão elementos altamente positivos, comporta também elementos cujos efeitos são deveras negativos.
Por exemplo a autoridade escolar, exercida por dirigentes, professores e outros agentes escolares, é vista pelos alunos como uma extensão da autoridade paternal e se esta se não exerce pacificamente não é de maneira nenhuma pacífica a sua transferência para a escola.
Raramente os alunos reconhecem aos agentes escolares a autoridade que não reconhecem aos pais. E se estes pais não conseguem exercer a autoridade mínima que se imponha na educação dos filhos também raramente o reconhecem
Quando os alunos deixam de ver a autoridade escolar como um extensão da autoridade paternal são tentados a tentar explorar em seu favor essa dissonância. À escola é imposto que mantenha esse vínculo nem que ele já só seja virtual ou mesmo que a família tente transferir para a escola a “culpa” dos problemas de sociabilidade dos filhos e não assuma a sua “culpa” original.
Seria necessário um esforço comum para que a escola e a família conseguissem ultrapassar os problemas sem curar de procurar essas “culpas” mas tão só responsabilidades da situação, para que fosse possível estudar soluções.
Quando a escola é incapaz de estabelecer esta cooperação e por si só não tem os meios para reencaminhar os alunos com problemas, estes criam entre si uma contextualização em que é preponderante uma cultura grupal anti-social, anti-disciplina, anti-qualquer ordem que não seja a definida pela estrutura que consigam dar ao seu grupo ou por qualquer outro que seja tido como exemplo a seguir.
Então, se não é possível que os membros desses grupos reformulem os valores em que eles os assentam, a única maneira de tentar resolver o problema é a sua desagregação “física” e o impedimento da sua nefasta acção.
Mas não só os “insurrectos” formam grupos. Na contextualização que é feita pelos alunos em relação à sua vida escolar, quase todos integram grupos, mas quanto a vida escolar dos seus membros mais desligada estiver da sua vida familiar mais dá origem às tais formações grupais problemáticas.
Embora “os filhos da mamã” não estejam de todo “isentos” de criar o seu próprio contexto diferenciado mas integrável, ou seja de natureza grupal, são muitas vezes vítimas do isolamento, outro grave problema de socialização.
Por todas estas razões, também é função da escola contribuir para a formação de grupos (não para a selecção de pessoas) com culturas positivas, de modo que estes, sem roturas e até sequer sem ressentimentos, possam assumir a liderança em detrimento doutros com culturas negativas, que têm tendência a assumir a preponderância na cultura da escola.

terça-feira, 24 de outubro de 2006

A frágil garça entre a águia e o abutre

Sempre tenho dito que a “coisa” mais relativa que há é o gosto e que é o gosto que nos liberta, nos dá personalidade e valor. Mas não adiro à teoria do bom gosto, qualquer que seja o entendimento que sobre isso se tenha, muito menos quando se entende por tal algo bem definido e intocável.
Sendo humano tenho o meu gosto, nem bom nem mau, relativo como o dos outros humanos, e, nestas lides “croniqueiras” de comentarista, para simplificar, como convém, associei o meu gosto ao espírito leve mas não leviano da garça.
Uns queriam que eu fosse uma águia, voando triunfante sobre a presa, capaz de repentinamente picar sobre a triste vítima que assim acabaria morta e dilacerada. E, qual parvalhão eu fosse, aparecia com mais uns tantos pilantras que me acompanhassem a gritar bem alto: vitória!...vitória!
Outros queriam que eu tivesse a espírito do abutre, tivesse a calma de um monge e a paciência de um pajem, suficientes para esperar que alguém se encarregasse de matar a vítima e, prostrada que ela fosse no chão, já meio esventrada que estivesse, cairia calmo e pachorrento sobre ela, só tendo então que me preocupar com que os outros abutrezinhos me não tirassem o meu quinhão.
Outros ainda quereriam que eu não existisse, que a existir estive quedo e calado, que o jogo corre o risco de ficar baralhado e a vida correria bem sem mim. A esses pouco interessa o saber, antes interessa o poder, o comer e outras coisas mais, com certeza. Mas a estes eu não ligo patavina.
Eu sei que, infelizmente, a maioria das pessoas têm espírito de abutre, que a experiência diz, por exemplo, que o poder autárquico não se ganha, perde-se, que é preciso esperar. Mas eu não estou aqui para fazer politiquice barata e acho que até já é tarde para muita gente perceber isso.
Aqueles que têm ambições a águias, que são muitos, e que se preocupam fundamentalmente em ganhar posição à partida, que tem imensa dificuldade em lançar o seu voo, no geral vão desprezando os outros, mas se aparece um mais destemido, porque acham que alguém tem de fazer o trabalho duro, que seja esse a fazê-lo.
Para não gastar energias, que a águia gosta de atacar pelo seguro, nada como alguém que faça o trabalho de sapador, levante a caça, faça estardalhaço onde o bom repasto possa surgir. O problema é que muitos daqueles abutres que se querem passar por águias, poucos têm arcabouço para o virem a ser e nem conseguem sequer convencer os amigos.
Não é águia quem quer e se vemos o repasto aparecer abocanhado por alguns é porque esses tiveram a arte de se colocarem no local exacto, no momento exacto, para que as ditas presas, fugindo às águias-reais, lhes possam vir a entrar pela boca dentro. Já algum mérito terão porque os abutres, esses que não fazem um esforço para se levantarem, só lá chegam pelo cheiro das vísceras.
No meio deste panorama avícola que prazer imenso em me identificar com a postura inteligente, com os pés bem assentes em terra, vigilante e pacífica da garça. O rio chega para todos e a garça tem o seu espaço, não gosta de peixes mortos e não está à espera que qualquer outra garça escorrace os vivos para a sua beira, para os apanhar.
Discutir gostos é muito difícil e prometo não os discutir mais. Sinceramente espero que não ponham em causa os meus gostos com estafados argumentos do género: Não tens envergadura para isto, isto não é do teu domínio, precisas de umas penas maiores, mais vistosas e atractivas para voares como deve ser.
Por sorte, ou por falta dela, o nosso rio é pequeno, os nossos assuntos parecem caber todos na palma de uma mão e por isso os inaptos cedo chegam a conclusão conclusivas, passe a redundância, daquelas de que não vale a pena mexer mais no assunto. Então há imensa gente que diz que tudo já está discutido.
Então a “criatividade” dessas pessoas vira-se para outro lado, para o nacional, para o internacional mesmo, e enchem-nos de sentenças sem recurso que as instâncias que elas congeminam nos seus cérebros já estão todas ultrapassadas.
A garça não se coíbe de fazer alguma referência ao nacional, convencida que está que os maus exemplos sempre proliferam e que os bons dificilmente cá chegam. Mas reconhece que falar destes assuntos é falar de algo bastante distante para muita gente e que se pode aprender também com assuntos que nos tocam de mais perto, mesmo que estejamos alheados deles e os não vejamos.
A garça está convencida que há beleza na areia, na água do rio, no azul do céu, no sorriso, tanto como no ar compenetrado de quem pensa. A garça está convencida que há atracções e aversões epidérmicas que podem provir da educação ou da imitação mas não são racionais e é necessário fugir a elas.
A garça está convencida que não é a natureza do assunto que faz a diferença, mas a maneira como ele é abordado. A garça está convencida que o afecto, a emoção e a inteligência são a trilogia de cuja concordância resultam os seres mais valiosos. Quem se banha com água e não ama a água é um ser incompleto.