sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Num mundo contingente que o Bem seja um princípio de vida!

Para os crentes, Deus criou um mundo contingente e nada pode fazer para alterar essa condição. Os homens que acreditam em Deus crêem-no como estando para além dessa contingência, obstáculo que eles nunca conseguirão transpor. No entanto e no geral acreditam que existe um prémio para cada comportamento, mas divergem muito na forma da sua atribuição.
Uns acreditam que Deus se limita a observar e que o homem é o único responsável pelo seu destino, havendo tão só um princípio e um fim a que eles não podem fugir, enquanto tal ou enquanto pré-determinados. Outros acreditam que no seu percurso o homem vai recebendo indicações, mensagens, graças, que lhe permitem, sem ser só pela sua cabeça, ir corrigindo o trajecto. Outros ainda, mais minoritários, acreditam em que tudo já está pré-definido, sem que isso torne indiferente o percurso de cada um.
Por sua vez os materialistas, vulgo comunistas, pensam que não há outra intervenção além da sua e os homens são capazes de vir a dominar todas as contingências, de modo a que os que sobrarem tenham uma paz e uma satisfação perpétuas. Se acreditam nisto, também acreditam que o princípio e o fim de cada um serão absolutamente indiferentes.
Entre estas duas visões extremadas do mundo há porém uma outra que reconhece a existência de algumas características de cada uma destas. Em primeiro lugar parece evidente, sem necessitar de crença, que existe contingência no mundo e que esta é, para nós, o factor mais relevante. Por outro lado nós, estando integrados na própria contingência, não a vemos influenciada por factores que lhe sejam estranhos.
Esta visão admite a possibilidade de o homem alterar alguns factores que à partida pareciam contingentes, sem que isso passe necessariamente por criar mundos em redomas, universos fechados, como o faz para analisar certos fenómenos. Mas o que está de todo vedado ao homem é submeter a contingência que o é efectivamente em absoluto ou mesmo significativamente aos seus ditames.
Os homens que têm esta visão do mundo partem de princípios que a prática, a experiência e os recursos próprios do cérebro humano permitem a elaboração de saber que, nunca sendo definitivo, permite a redução da contingência a níveis aceitáveis e que ela tenha uma melhor influência sobre o seu próprio destino. No decorrer dos tempos o homem já eliminou os aspectos mais grosseiros, já tornou explicáveis e de certo controláveis fenómenos considerados até então aleatórios.
O que o homem tem feito é determinar o maior número possível de condições que podem influenciar um dado fenómeno. O homem vai-se libertando da sua perspectiva natural e conseguindo ver a realidade a níveis mais precisos, menos passível de ter um outro aspecto alternativo, uma interferência por factores desconhecidos. Mas saberá que condições não conseguiu identificar para que o mesmo fenómeno se possa ter passado de uma outra maneira?
O homem na sua vida prática tentou em primeiro lugar adquirir conhecimento que lhe permitisse controlar melhor os elementos naturais que estavam ao seu dispor. Mas também foi adquirindo conhecimentos teóricos cuja aplicação não imaginou possível durante muito tempo, mas de alguns dos quais viria a beneficiar extraordinariamente. Mesmo assim a maioria do saber de hoje não tem ou parece não ter aplicação prática e é desprezado pelos ignorantes.
Mal estão aqueles que atribuem a esse saber um carácter absoluto e mal estão também aqueles que o relativizam para se justificarem a si próprios. O que não pode é ser ignorado, o que não pode é ser esquecido o seu carácter contingente na perspectiva humana, mesmo que já tenhamos retirado esta característica a muitos fenómenos aos quais a tínhamos atribuído.
A contingência é uma realidade ainda muito presente e é uma defesa para a própria mente humana. O que não pode é ser usada para justificar o absolutismo. Efectivamente a realidade humana e em particular as relações sociais estão prenhes de contingência que nós procuramos contornar, enganar ou utilizar em proveito das nossas ideias particulares.
A sociedade é um domínio complexo que quase todos tentamos simplificar, aplicando-lhe normas redutoras que, maugrado inexactidões e injustiças, nos dão uma visão mais clara e mais fácil para os nossos movimentos mais vulgares. Dada a natureza humana, a sociedade é o domínio em que a contingência mais é visível pelos seus efeitos práticos. Aqueles que tentaram criar a sociedade normalizada, estereotipada, perfeita esbarraram pela incapacidade de dominar todos os factores.
A evolução do homem levá-lo-á a ter um mais perfeito domínio dos factores contingentes conhecidos e das suas possíveis manifestações que ainda ignoramos. Mas nunca será possível ignorar que o homem é uma fonte criativa, dotada de força, de poder, da faculdade de intervir livremente, de modo mais ou menos surpreendente. O que temos que fazer, esperemos ou não prémio por isso, é continuar a lutar para que o homem aplique o bem como princípio de vida.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

A meritocracia como forma política democrática

Há quem diga que a democracia só seria efectivamente o melhor regime político se os seus quadros pudessem constituir um meritocracia incontestável. Nós só elegemos uma ínfima parte das pessoas que exercem cargos políticos. Depois os poucos que são eleitos escolhem mais alguns, ministros e secretários, e estes são na realidade quem escolhem a grande maioria, muitas vezes sem conhecer as pessoas que beneficiam de tanta “sorte”.
Embora em democracia este procedimento seja perfeitamente legítimo e se aceite ou mesmo recomende que exista alguma afinidade e lealdade entre quem escolhe e quem é escolhido, não é aceitável que a escolha seja feita de fidelidades partidárias ou pessoais. Uma pessoa indicada pelo partido ou por um amigo pode ser muito competente, mas à partida sofre de uma suspeição de compadrio.
Além da revolta gerada por escolhas claramente fraudulentas, no geral para cargos de menor visibilidade pública, mas não menos relevantes no aparelho de Estado, há no nosso país a sensação de que também a sociedade civil se comporta afinal da mesma maneira que tanto critica no sector público.
É verdade que se caminha no sentido da maioria dos empresários escolherem um bom profissional anónimo em detrimento dum parente mentecapto, mas ainda assim muitos se vão afundado alegremente agarrados aos seus. É evidente que o mesmo tipo de pessoas no aparelho de Estado, onde menos lhes dói, se preocupam ainda menos com a competência dos seus colaboradores ou daqueles que, por força do seu peso político, conseguem impingir aos outros.
O triunfo pelo mérito é em Portugal muito difícil e a tradição não ajuda. Na sociedade tradicional não havia mobilidade social, a grande maioria das pessoas iam exercer a profissão já exercida pelos pais ou ainda pior. Só no último meio século, e em particular após o 25 de Abril, passou a ser vulgar os filhos economicamente menos favorecidos ombrearem com os mais favorecidos, suplantá-los nos negócios e ocupar altos cargos.
Este hábito novo ainda hoje encontra resistências em certos sectores sociais e profissionais mas a igualdade de oportunidades é cada vez mais vista como condição básica da democracia. Já a meritocracia encontra mais dificuldades, pelo hábito chamado da cunha, qual veneno larvar, pior que fungo, bactéria ou vírus, que empesta as nossas relações.
Na impossibilidade de haver um sistema electivo para todos os cargos de responsabilidade no aparelho de Estado, a única maneira de lhes dar alguma qualidade é mesmo uma aposta na meritocracia, na escolha de forma transparente daqueles mais capazes e a quem não repugnaria cumprir ordens legítimas dos seus superiores hierárquicos.
A meritocracia não é uma oligarquia, um sistema fechado ou com grandes limitações à entrada, em que um grupo de “eleitos” ocupa rotativamente cargos. Não é uma gerontocracia, um sistema em que os anciãos, mercê de uma experiência que já nada diz à realidade actual, controlam a evolução da sociedade. Não é uma genearquia, um sistema em que está estabelecida a linhagem dos que virão a ocupar os vários tipos de cargos disponíveis no aparelho de Estado.
No entanto estas são as principais doenças que afectam os sistemas que querem basear no mérito toda a escolha dos seus dirigentes não eleitos. Elas constituem sistemas atractivos para o tipo de imaginação portadora dessas doenças. Os oligarcas para os convencidos, os gerontocratas para os respeitáveis, os genearcas para os arrogantes. Ainda não vi um louco que não quisesse ser Rei.
Mesmo com as facilidades infraestruturais, as pessoas têm dificuldades em lutar pelo mérito. Hoje essa luta começa pelo percurso escolar, de cuja importância às vezes os jovens se não apercebem, mas em que a família pode ter um papel crucial. Depois continua numa adaptação ao mundo do trabalho, sem ser a procura de um lugar de repouso à espera de uma “merecida” reforma.
Efectivamente existem fases fulcrais em que se joga muita da nossa capacidade de chegar ao mérito. Cada etapa pode ser decisiva porque, se cada uma não for ultrapassada com êxito, as sequelas resultantes podem ser inibidoras de um desempenho meritório na etapa seguinte. E aqui convém lembrar o princípio da inteligência emocional. O empenho em prosseguir um caminho que implica algum custo depende da nossa disponibilidade emocional.
Em muitas circunstâncias a nossa descrença, a nossa desconfiança no êxito em alcançar o mérito ou pelo menos o seu reconhecimento mínimo, leva-nos a por de lado qualquer pretensão a ter uma intervenção positiva. Aqueles que são classificados de Velhos de Restelo são muitas vezes pessoas que foram ficando para trás, não numa competição leal, mas numa competição desigual entre quem teoricamente e à partida teria as mesmas possibilidades de êxito.
Por efeito também da nossa luta, as coisas hoje estão mudadas, sem podermos descurar que continua a haver muito cinismo, muita deslealdade, muita traição, muita vingança. Muitos pais continuam a educar os filhos nestes princípios, convencidos que eles se têm que defender e muitas vezes a melhor defesa é o ataque. Não vêm riscos num caminho que já conhecem.
A meritocracia não é o resultado dos elogios mútuos daqueles membros de clubes literários que a isso despudoradamente se dedicam. A meritocracia não é o resultado da protecção das sociedades secretas que se dedicam a promover os seus membros, independentemente do seu valor. A meritocracia não é lobbying exercido pelo poder económico. A meritocracia não passa por filiações partidárias ou amizades cruzadas de interesses suspeitos. A meritocracia é o que isto não é…

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Portugal e a sua inserção na Comunidade Europeia

O Estado é a organização que mais influencia o nosso bem-estar e o nosso relacionamento. O Estado tanto nos permite que usufruamos dos nossos direitos como nos impõe limitações que não desejaríamos. O Estado pode ser a garantia do nosso direito a ter direitos como pode contribuir para que vejamos serem defraudados direitos que há muito tínhamos por certos e seguros.
Por isso convém, é vital, sabermos em que “Estados” estamos nós metidos. No momento presente pertencemos em simultâneo a dois: Portugal e a Comunidade Europeia. Portugal, velho estado europeu que entre alianças e traições, foi aproveitando as divergências alheias para subsistir. A Comunidade, nascida no pós guerra da necessidade de cimentar através da economia a solidariedade continental e pôr fim a velhas disputas por bens e espaço vital.
São dois Estados com organizações próprias e duas formas diferentes de fazer política. Em Portugal tudo se vê a nível de poder, da sua partilha e das suas manifestações exteriores. Na Comunidade, até pela dependência congénita dos aspectos económicos, é em função da economia que a política se desenvolve. Tudo o mais está condicionando à correcta resolução dos seus problemas.
Hoje a Comunidade tem alguns órgãos de soberania característicos de qualquer Estado. Os Estados unidos no mesmo entendimento sobre as questões que no passado foram causa de tantas guerras e desinteligências prescindiram de alguma soberania fazendo dos órgãos comunitários os seus fiéis depositários. A comunidade usou os modelos já testados e criou os seus.
A economia está no cerne dos problemas de qualquer governo e é a área de mais difícil gestão. A economia tudo condiciona, implica uma interferência noutros domínios que as pessoas envolvidas rejeitam. Há quem nunca tenha pensado em depender da economia, das mesquinhas finanças do Estado. Há quem nunca tenha pensado em submeter-se às leis de concorrência. Há quem nunca tenha pensado em lutar pela competitividade.
Aparentemente ainda é o Estado Português o soberano neste domínio da actividade social, precisamente o mais decisivo e mais discutido na comunicação social, na política, na intelectualidade. Na realidade a nossa integração na Comunidade e na Zona Euro criou-nos um colete-de-forças a que nós não estávamos habituados, obrigou-nos a sermos organizados e disciplinados. Obrigou-nos a mexer em domínios que até aqui pareciam de soberania reservada.
Efectivamente em muitos campos já só decidimos sobre a maneira como havemos de corresponder àquilo que é decidido pela Comunidade. E esta, sem ter agentes directos dotados de poderes de soberania, exerce já muitos poderes por interpostas organizações no território dos Estados Membros. O Estado Português, como os outros, limita-se a respeitar as suas orientações, e a cumpri-las, caso se aplique o princípio da subsidiariedade.
Muito do trabalho de estudo e muitas das tomadas de decisão são executadas por órgãos próprios da Comunidade. Os Estado membros fornecem os dados, os números e esta informação cedida constitui o poder maior. O seu tratamento é feito em termos dos interesses conjuntos da Comunidade e as conclusões são tiradas em termos de preservação desses interesses e da sua competitividade externa. Malgrado o seu esforço a Comunidade tem da sua coesão interna uma noção não consensual entre os europeus.
Se na economia é possível tirar conclusões mais ou menos consensuais já o mesmo se não pode dizer das soluções para os seus permanentes problemas. A Comunidade pode apresentar conclusões aceites como inevitáveis mas não se permite recorrer a soluções rígidas. Assim cada Estado Membro tem a capacidade de escolha entre os cambiantes de solução enquadráveis dentro de parâmetros previamente aceites como razoáveis.
Existe uma espécie de soberania em escada no domínio fulcral da economia e correlativos. A Comunidade já tem mesmo conseguido que políticas semelhantes, ou pelo menos convergentes, sejam adoptadas noutros domínios como a educação e as políticas sociais, mas sem instituir qualquer órgão responsável por um efectivo planeamento de recursos, de meios e das realizações. A Comunidade não assume poderes soberanos nestas questões mas a sua influência é evidente.
Há no entanto domínios que, sendo aqueles cuja resolução constituiria o culminar dum trabalho de mais de meio século rumo a atingir os objectivos de pacificação e harmonização do espaço europeu, mais resistem à intervenção comunitária. Assim a entrada no domínio da segurança, da defesa e da política externa é um passo demasiado perigoso para que alguém o aceite dar levianamente. Todos temos consciência da sua existência e da sua importância, mas eles tocam-nos de maneira substancialmente diferente.
Enquanto o centro de interesse colectivo é a economia há um fácil entendimento. Quando se caminha para os domínios tradicionais que definem a soberania do Estado, as coisas complicam-se. O federalismo ambicionado por muitos é ainda rejeitado pela maioria. Porém a política de pequenos passos já levou a que quase não haja domínios em que o poder central se não exerça.
Em Portugal subsiste muito a ideia que, dada a nossa habituação a copiar modelos estrangeiros, sempre será melhor que esses modelos se vão aplicando em simultâneo e sem atrasos em toda a Comunidade. Portugal é um país pequeno, sem dimensão, não preparado e inexperiente, sem o conhecimento de muitos dos fenómenos próprios de sociedades maiores e mais desenvolvidas, sem grandes hipóteses de reagir à progressiva integração de processos e mercados.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

O que fazer pela democracia política?

A noção mais simples de politica baseia-se na necessidade de haver Estado, estrutura não imutável, e de haver pessoas preparadas para desempenhar os cargos políticos que tal estrutura comporta. Não há exemplo de sociedades organizadas que tenham podido prescindir do Estado, nem está na natureza humana que isso seja possível num futuro previsível.
O Estado, podendo sempre assumir formas variadas, constitui o esqueleto da sociedade, sobrevive dependente da sua economia, tem uma intervenção cada vez maior na definição da sua dieta. Mas a sociedade pode não estar de acordo com a forma do Estado. Pode ter acontecido esta ter-lhe sido imposta ou já não corresponder às suas necessidades. Porém não pode prescindir dele, sob pena de por em causa a sua própria existência.
O papel do Estado pode estar inflacionado, ser caro e pode ir para além das possibilidades da sociedade. O inverso pode acontecer por descuido dos responsáveis ou falta de vontade da sociedade em contribuir para isso. Os seus vários modelos têm dependido das condições históricas, internas e externas, das cedências, transferências e do exercício exterior da soberania.
Em principio a soberania reside na sociedade e o poder de a exercer reside no Estado. Mas há situações em que o Estado, por impotência, é obrigado a partilhar poder com outras organizações da sociedade como sindicatos, grémios ou ordens. Existem forças politicas que consideram isso como uma situação transitória, enquanto não têm condições para exercer plenamente o poder.
A maioria das forças políticas entende porém não haver razões para a partilha do poder. Conseguir o entrosamento perfeito entre o Estado e a sociedade, dispensando a partilha do exercício de soberania, é antes tido por um ideal democrático que infelizmente não é decerto o objectivo nem mais nem menos imediato da maioria dos políticos. Falam mais disso quando não há dinheiro.
Efectivamente é a sociedade que tem de se preocupar em saber que Estado quer. Um Estado de dimensão excessiva pode ser demasiado complexo, pondo a sociedade perplexa e desorientada quando dele necessita. Por exemplo o excesso de técnicos pode levar a que compliquem demasiado as coisas para justificarem a sua própria existência. Tem a vantagem de ser o refúgio de muito inepto. Muitas vezes a sociedade embarca voluntariamente nesse erro.
Um Estado de dimensão restrita pode não estar a executar de modo conveniente as suas funções dinamizadoras, fiscalizadoras, de segurança e outras. Algumas deficiências podem pôr em causa mesmo a sua independência perante inimigos internos e externos. Outras deixarão mesmo sem resposta algumas necessidades sentidas pela sociedade. Tem a vantagem de não gastar excessivos recursos da sociedade. É muitas vezes uma ilusão que fica cara.
Haverá sempre forças sociais apostadas em incentivar as divergências entre a sociedade e o Estado. Mas isto não seria tão fácil se o Estado fosse transparente, a sua orgânica fosse conhecida, explicada em função de objectivos, os seus custos fossem ponderados e razoáveis. A lógica das organizações contribui porém para que os órgãos do Estado se fechem, se achem auto-suficientes, descurem a necessidade da sua permanente justificação e que, pelo contrário, tudo se lhe exija.
Criando-se o Estado para corresponder aos interesses da sociedade, sendo ele sustentado por esta, é natural que a sociedade por vezes ache exagerada e nada razoável a sua independência, ache que actua em roda livre. A perplexidade da sociedade chega à identificação da exacta sede dos poderes de soberania que têm nela a sua justificação. O Estado é por vezes caprichoso e baralha a sociedade, outras vezes é manietado por organizações desta.
Há vícios do Estado que nasceram com um determinado modelo mas que outros prosseguiram ou tentaram imitar. Por exemplo há regimes que se não cansam de exigir dinheiro para a segurança, quando o gastam em ostentação. Um Estado vanglorioso pode ser mais democrático ou mais totalitário, mas decerto é um Estado inseguro, que não está certo do seu futuro. No entanto, já muitas vezes a sociedade se deixou enlear por este cântico bazofiador.
Se tem que haver Estado para que haja politica, nem sempre é linear a sua relação com ela. Há sociedades que, por sua vontade ou não, viram instalar-se um poder oligárquico que não é exercido por políticos. Para haver política tem que haver candidatos sem origem pré-definida e eleições para todos os órgãos que exercem os seus poderes mais significativos. A política não pode ser exercida por um grupo fechado que usurpa para si os direitos de todos.
Os estados totalitários e autocráticos tendem a reduzir ao mínimo a politica, o debate, a discussão, a eleição. Os membros dos órgãos de soberania são-no por pretenso direito próprio ou cooptados por estes. Ainda por cima no geral só informam a sociedade sobre aquilo que acham fundamental para assegurar a sua manutenção no exercício dos seus exacerbados poderes. Se querem passar-se por políticos, são políticos desprezíveis
Num Estado democrático não cabe o exercício arbitrário do poder mas nele existem bons e maus políticos. A democracia e os próprios políticos só têm a ganhar em serem bons comunicadores, em cultivarem uma imagem de qualidade e rigor, em não serem pau para toda a obra e em se não agarrarem a qualquer preço ao poder. Um político tem que o ser por gosto, sem ceder a facilitismos.
Um político não pode cultivar uma imagem fácil, mas se perdeu o seu controle, se ela se desgastou com o tempo, só tem que deixar as rédeas do poder. Os ditos ícones, mártires e outros insubstituíveis que aproveitam todas as suas influências para se perpectuarem são um preço exagerado da democracia.

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

O que a escola pode fazer pelo sucesso da sua missão

Nunca como hoje tinha sido dada à família a oportunidade de preparar os seus filhos para o futuro com base na sua aquisição de conhecimento. De forma formal ou informal, práticas e experiências foram durante séculos o modelo base do ensino para a maioria da população, mesmo os mais favorecidos.
Do antigo regime herdamos o ensino comercial e industrial que pretendia que as pessoas fizessem a sua preparação para o mundo do trabalho sem ser no escritório ou na fábrica, como noutros tempos. Com base numa suposta descriminação, esse tipo de ensino foi posto de lado e a tentativa de o recuperar não tem infelizmente sido sempre bem sucedida.
Digo infelizmente mas terei que ressalvar ser contra a opinião daqueles que viam neste sistema a melhor maneira de defenderem o imobilismo classicista, de reproduzir incessantemente, numa lógica corporativa, a mesma estratificação social. As virtualidades do sistema podem e deviam ser exploradas noutro sentido, permitindo, à semelhança doutros sistemas, a mobilidade social.
Não investindo nisto, tem-se reduzido todo o ensino ao dito teórico, muito mais difícil de adaptar às necessidades do mundo do trabalho. Como se compreende é necessário transmitir conhecimentos muito vastos para que os alunos na vida prática venham a aproveitar alguns, o que será quase sempre numa pequena percentagem, e os saibam escolher e complementar.
Não será uma perca, mesmo partindo do pressuposto que todo o saber transmitido tem alguma utilidade no sentido da obtenção por todos de uma cultura geral semelhante? Na verdade há um saber essencial muito mais reduzido e eficaz para que os seus possuidores o usem como instrumento sempre que queiram aprofundar conhecimentos num ramo do saber em que são ignorantes.
O saber tão actual quanto possível e as armas intelectuais que o façam progredir num dado ramo do saber deve ser dado a quem já está na prática seguro de que é com a sua utilização que irá estruturar a sua vida futura, em termos práticos, que terá emprego próprio ou alheio. Fica com a sua empregabilidade garantida. Caso contrário só dá para criar frustração e dispêndio inútil.
Os teóricos e investigadores têm que ver as coisas na sua universalidade e intemporalidade, fazer esforços colossais para desbravar caminhos, devem estar preparados para nada conseguir ou para o sucesso repentino. Mas são sempre uma minoria que vive um mundo à parte, com a sua lógica própria e recompensas adequadas, preferencialmente intelectuais.
Alguém tem que fazer a redução do saber teórico ao saber prático para que este se aplique sem o apoio da própria prática. Existem condições tecnológicas e condições locais ou nacionais que recomendam que se sigam determinadas orientações. Mas é a valorização económica que acaba por ser preponderante nessa escolha. E afinal deve-o ser, se o que está em causa é a obtenção de um emprego no tecido económico circundante.
Os técnicos colocam o saber à disposição dos que o vão transmitir. Na realidade nenhum saber é verdadeiro se não for transmissível. Por outro lado são os professores as pessoas encarregues de o fazer. Nenhum ensino é válido se os alunos não estão preparados para o receber ou se não transmite devidamente o ensino mais apropriado.
Além do próprio sistema de ensino, os professores, cada um em particular, pode ser decisivo no sucesso escolar dos seus alunos. No geral, se as explicações têm sucesso é porque, quando os professores se preocupam com aquela parte do ensino essencial para obter bons resultados, estes aparecem. Ou então o explicador não vale nada.
O professor normal, que dá aulas normais, recebe porém solicitações muito diferentes daquelas que se fazem a um explicador. Na realidade ele é limitado por resistências e excessos derivados do ambiente escolar, além do seu próprio ambiente e convicções. O ambiente escolar é determinado pela acção dos governos, dos sindicatos, dos grupos informais de alunos e professores, do ambiente social circundante.
O professor sentir-se-á sempre responsável e pronto a corresponder ao que socialmente lhe é pedido. Um dos problemas é determinar a quem há-de respeitar, tantos são os patrões que se lhe deparam. Um dos problemas a resolver é mesmo o da autoridade, também disciplinar, mas essencialmente pedagógica.
De certo que à escola se não pode pedir mais do que ela é capaz de dar. A autoridade se se constrói na família não pode falhar logo nela, como tantas vezes acontece. No entanto a escola é demasiado permissiva aos problemas exteriores, a interferências políticas ou pelo menos da política. Esta intervenção da política tornou-se já quase um problema de cultura difícil de erradicar.
Também muitos professores se deixam contaminar por aquela política brejeira que tem resposta imediata para tudo. Mesmo quando se não querem envolver demasiado também eles transmitem displicentemente alguma da cultura de rua. Num local em que a análise devia ser privilegiada é uma síntese pseudo-científica e tendenciosa que impera.
Contrariamente ao que se pretendia com o sistema escolar único e o fim do ensino prático, e devido ao ambiente cultural que nelas se vive, as escolas servem para potenciar as desigualdades sociais, para agravar os problemas oriundos da família, para a constituição de grupos informais de alunos que transmitem culturas anti-sociais, porque a escola não constrói barreiras intelectuais a isso.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Aos jovens restará descobrir o seu caminho?

Hoje em dia os pais, na sua ânsia de querer o melhor para os seus filhos, investem muito no seu ensino. No geral preocupam-se em definir carreiras, amaciar-lhes o caminho, preparar-lhes o futuro. É certo que entregam à escola o essencial da sua preparação mas a gosto ou contra gosto despendem uns cobres para mais algum acrescento nas matérias mais difíceis.
A família, como primeira instituição a transmitir o saber e como base estruturante da sociedade e da constituição de toda a autoridade, nem sempre consegue manter esse papel durante muito tempo. Perde muitas vezes bastante cedo uma sua parte substancial, umas vezes reduzindo-se no tamanho, às vezes e dramaticamente, deixando que ela perca a centralidade.
Contraditoriamente os jovens estão economicamente dependentes da família durante cada vez mais tempo. A sociedade apela aos jovens para que eles prolonguem a sua vida estudantil com promessas de melhor situação futura, o que, aliás, está longe de poder vir a ser cumprido no sentido do estatuto doutoral com que muitos se arrogam.
Sentir, estar atento e receptivo a esse apelo da sociedade para estudar até mais tarde é por princípio saudável, sem que o oposto seja necessariamente reprovável. A formação pode ser conseguida durante a vida. A família, pela sua parte, é chamada a cumprir o objectivo de cada vez “deixar” o jovem melhor posicionado no ranking do emprego e da sociedade no fim do seu longo período de aprendizagem.
A dependência económica prolonga-se muito para além do que ainda vão uns anos se entendia como razoável. Esta situação prolongada nem sempre é fácil de gerir porque os interesses dos dois lados vão divergindo. A uns a situação de dependência pode vir a repugnar. Outros acham-se demasiado condicionados por ela. Outros ainda não assumem plenamente as suas responsabilidades, criando à família situações difíceis de solucionar.
Se a sociedade apela, também seria natural um apelo em sentido inverso, mas no geral ela não está preparada para oferecer condições aos jovens para prosseguir os seus dois objectivos: Estudar e ser economicamente independente a partir de uma idade em que os jovens já estão na posse de todas as suas faculdades e da capacidade de definir o seu destino.
Malgrado a sua falta de sustentação económica, os jovens defendem direitos que ainda há pouco eram entendidos como naturais para a sua idade e que agora são nesta situação mais dificilmente praticados. Naturalmente que querem continuar a obter os mesmos direitos de todos os jovens a partir da mesma altura, mesmo na situação de dependência que existe e então não existia.
As situações de conflito no interior da família são potenciadas por outros aspectos com origem tanto em si como no seu exterior. A complexidade do ensino leva a que no geral a família esteja cada vez mais distanciada do dia a dia dos filhos. A falta de tempo dos pais também vai contribuindo para esse desacompanhamento. As separações e as famílias mono parentais ajudam a agravar o problema.
Os centros de interesse dos jovens são cada vez mais diversificados e cada vez menos decorrentes das referências a que os pais estavam habituados. A perca da centralidade nas famílias, como principal centro de interesses, é o mais dramático dos episódios que ocorrem, mercê dos seus novos envolvimentos.
Os jovens encontram novas referências não totalmente compatíveis com os valores prevalecentes na sociedade na altura que os pais passaram a adultos e que querem fazer perdurar. Novos valores que entretanto despontaram chegam com mais facilidade aos jovens e são no geral mais apreciados por eles.
Entre eles há hoje valores claramente negativos, canalizados por referências claramente destrutivas em relação à sociedade heterogénea em que nos movemos. Também há porém novos valores que a sociedade assimilará com maior ou menor facilidade, sem perder o fundamental dos seus princípios estruturantes.
São processos dolorosos os que então na génese duma síntese construtiva do passado com o presente, de modo a garantir o futuro. Os jovens acabarão por conseguir, obtidos os conhecimentos e a experiência sempre necessários para a elaboração do saber transmissível, fazer a súmula daquilo que eles acharão deverem deixar em herança às gerações seguintes.
Se analisarmos aquilo que os jovens estão a receber da geração anterior chegaremos facilmente à conclusão que esta ainda não conseguiu realizar convenientemente o seu trabalho. Delegaram-no numa intelectualidade fútil, avessa às responsabilidades próprias, mas manifestamente interesseira, que tudo faz para passar referências nitidamente ilusórias, por terem aspectos de maior negação dos outros do que os de afirmação própria.
Uma conjugação de factores favoráveis fez com que os criadores dessa geração que corre para ser passado conseguissem introduzir as suas próprias referências no mercado dos bens intelectuais transaccionáveis, sem que as tivessem elaborado de modo a constituírem eles próprios o suplantar das contradições vindas do seu passado.
Os jovens dificilmente entendem uns pais mais contestatários que eles próprios, não encontram grande valor em quem se limita a dizer em simultâneo mal dum passado de que nunca se encontraram os responsáveis e dum presente de que dizem não os comprometer. A culpa anda sempre solteira.
A herança recebida pelos jovens de hoje não deixa de ser uma miscelânea desgarrada de conceitos, direitos e reivindicações. Não podemos querer que os jovens bebam nela aquilo que lá não está inscrito. Se os intelectuais de hoje olham para o futuro com os olhos conturbados de quem ainda não conseguiu dar algum limpidez à sua mente, resta aos jovens descobrir o seu caminho.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Só com paciência se equilibra a nossa excessiva impaciência

A paciência é uma qualidade do ramo das virtudes ou um defeito do ramo das maldades. È, conforme o ponto de vista, um aspecto positivo ou negativo que caracteriza o comportamento humano.
A constatação de que existe paciência também revela que a impaciência não está longe. Paciência ilimitada é uma virtude rara e muitas vezes suicidária. A paciência esgota-se mais ou menos depressa. A pessoa ou chega à conclusão de que a sua existência se não justificava ou reage impacientando-se.
A paciência é sempre um sinal revelador do nosso estado de espírito. A maneira pela qual se manifesta, se transforma, se esvai ou se satura, dando origem à impaciência, nem sempre é igual mas caracteriza, para um dado estado de espírito, o comportamento individual.
Constantemente chegamos à conclusão que o que nos impacienta nem sempre sensibiliza os outros e o que olhamos com paciência é motivo de revolta e impaciência no espírito alheio. Esta simples contradição dá origem a permanentes litígios, constantes aversões, ódios e ofensas.
Todos temos um nível de tolerância à contradição da nossa razoável impaciência com a exagerada paciência dos outros e da nossa, pensamos sempre, sensata paciência com a sua excessiva impaciência. Se não houver motivos particulares está definido o nosso grau de sociabilidade.
A importância que, relativizando-o, nós dermos ao assunto que é motivo da nossa paciência ou impaciência pode ajudar-nos a controlar as nossas reacções. O que é diferente de pensarmos que a paciência ou impaciência são sempre de louvar ou pelo contrário merecedoras do nosso desdém.
Uma atitude inicial acertada é sempre mais importante do que qualquer distanciamento que criemos mais tarde. Porque, se nós estamos sempre predispostos a aprender e a reformular reacções que, por força do hábito, tornamos quase mecânicas, a sociedade privilegia comportamentos rígidos, quando não agressivos.
A agressividade, traduzida em insultos e outras ofensas graves, está tão arreigada no comportamento de muita gente que é incorporada na sua própria imagem. Por isso ela se transfere doutras formas de conflitualidade social em que se poderá justificar (¿), para esta situação de simples divergência entre uns que são pacientes e outros pelo contrário.
É muitas vezes assumido como valor civilizacional aceite que a paciência tem limites. Que, passados estes, será natural cairmos num estado de impaciência. Objectivamente não cedemos perante a não satisfação de um dado objectivo que tínhamos em vista. Como a impaciência também tem limites só temos duas saídas: caminhar para a agressividade ou regredir para um estado de paciência.
Controlamos cada vez melhor a impaciência, sendo impacientes cada vez mais. Adquirimos mais sabedoria para atingir os mesmos objectivos, contornando os obstáculos perante os quais a nossa paciência tinha limites. Mas, se o tempo e a experiência são por si mesmos importantes, as excepções continuam a surgir e a revelar afinal alguma forma de exclusão social.
Por outro lado as contradições continuarão a existir e, tendo em vista os nossos objectivos, não nos podemos cingir somente à forma, antes prosseguiremos na tentativa de explorar em nosso proveito as nossas diferentes atitudes, nem que isso passe por nos “deixarmos” vitimizar ou pelo contrário usar outras formas de persuasão ou constrangimento para conseguir esses objectivos.
Baseados na forma podemos atribuir méritos ou deméritos às atitudes, mas são os objectivos que permitem não confundir paciência com cobardia ou impaciência com bravura. Por outro lado os objectivos não justificam tudo, embora, quando prosseguimos objectivos colectivos, tenha que haver sempre quem ceda em relação àqueles que lhe são mais próprios.
Uma das formas pela qual é vulgar surgir a impaciência é, usando a indefinição dos outros, tentar levá-los dessa maneira a tomar decisões rápidas. Além de vencidas possíveis hesitações, consegue-se assim subtrair a questão a alguma observação e ponderação mais atentas. Querendo andar para a frente, sem mais, até se apelida a paciência dos outros de demissão.
A paciência em excesso também pode ser contraproducente. Empregando o necessário calculismo, muitas vezes somos pacientes com o objectivo de levar os outros a aceitarem também serem resignados, como nós somos ou parecemos. Como não queremos que se avance, acusamos os outros de aventureirismo e, não revelando os verdadeiros motivos, coagimo-los a abandonar uma impaciência salutar.
A nossa paciência, ou a ausência dela, é função não só do nosso passado, da satisfação ou não dos nossos objectivos crescentes, mas também do caminho que queremos seguir e das forças que julgamos possuir para garantir um sucesso, que pode ser uma acção futura vitoriosa ou simplesmente a fuga a uma qualquer humilhação.
Mas na sociedade há uma impaciência crescente que mais se nota, muitas vezes sem objectivos definidos, outras vezes perante a não satisfação de objectivos demasiado concretos, mas irrealistas. Somos excessivamente volúveis para conseguir um equilíbrio saudável

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

A pobreza de ontem, de hoje e … a do mundo real

Há dois aspectos com particular relevância na vivência humana: A sobrevivência física e o sentimento de segurança. Nestas duas vertentes gasta a política muito do seu esforço, que, aliás, nunca será demais.
Por força do desenvolvimento económico e civilizacional outras necessidades se têm acrescentado de modo a formar um todo em relação à satisfação do qual se define um índice de bem-estar. E também outros índices com parâmetros mais convencionais, a um dos quais se dá, um pouco subjectivamente, o nome de pobreza, melhor dizendo, de deficit económico.
Há uns anos atrás a ambição medianamente aceite pela população passava por não estar sujeito à fome e ter uma “casinha” para viver. Era uma expectativa comedida que tinha que ver com a efectiva situação de pobreza que então se vivia e era o mínimo considerado para abandonar essa situação. Ainda por cima um sentimento de segurança ajudava a colmatar aquele deficit.
O mal é que esse tal sentimento de segurança é que explica a sobrevivência do Estado Novo durante quase cinco décadas. A ditadura não garantiu qualquer situação de bem-estar permanente mas utilizou a seu favor a situação exterior em certos períodos para “justificar” a sua manutenção.
A força política exclusiva da altura tudo fazia para que a muito generalizada situação de deficit económico não fosse tida como situação de pobreza. Mas esta era tal que, em especial com o racionamento nos anos de guerra e nos maus anos agrícolas do período sequente, foram frequentes as situações de fome. Algumas situações posteriores foram um pouco mais amenizadas com ajuda internacional.
Pelo contrário, quem tinha as necessidades de sobrevivência garantidas, por beneficiar de um sentimento de segurança, já era considerado numa situação de riqueza. O dia a dia não revelava porém grande diferença, pelo que também os conflitos derivados de qualquer sentimento de inveja não eram frequentes.
As situações de pobreza, sempre mitigadas, e riqueza, sempre não ostensiva, interligavam-se num patamar muito baixo, sendo que esta última se atingia com apenas a posse de poucos hectares de terra ou de algum outro meio equivalente de produção. Toda a gente aceitava que houvessem uns mais pobres e outros mais ricos do que nós.
Hoje os objectivos mínimos das pessoas estão a um nível muito mais elevado e há uma grande confusão entre as situações de pobreza e as situações de falta de bem-estar. Ninguém num regime democrático tem por função acalmar as expectativas das pessoas, antes pelo contrário. Também os que estão em situação de riqueza não se coíbem de a exibir.
Não havendo tanto comedimento nas expectativas e colocando a situação de riqueza a uma altura mais inatingível, o patamar em que as situações de pobreza e riqueza se interligam está muito mais alto e é muito mais ambíguo. Todos os outros factores que influenciam o sentimento de bem-estar individual interferem afinal muito mais do que o da sobrevivência pura e simples.
As modas, as relações sociais, a alteração de modelos comparativos por força da mobilidade social leva a que surjam muitas oscilações no decorrer do tempo e nos vários patamares sociais. Em Portugal as camadas sociais são agora em muito maior número do que há meio século, o que leva a que a nossa percepção de médias e medianas é muito mais problemática.
O tempo é uma realidade que tem hoje uma dinâmica muito acrescida. As pessoas têm bastante dificuldade em acompanhar a evolução mas no geral já não parecem apanhadas de surpresa. É na dificuldade em compreender os passos intermédios que se encontra a explicação para a forma tão desajustada como é interpretada a realidade de hoje. O tempo passado foi vivido demasiado depressa.
Por vezes as pessoas falam como nada se tivesse passado, ingenuamente ou não, vivem numa perplexidade extrema. Não se compreende que as mesmas pessoas se façam de pobres para receber e, quase em simultâneo, de ricas para poderem ser sobranceiras. Equivocamente diz-se que há mais pobres, mas também se inflaciona o número de ricos quando convém. Que, novos-ricos, raramente o são a sério.
Atingir o patamar da sobrevivência física foi um sonho para gerações e gerações de humanos e continua a sê-lo em muitas partes do mundo. A maioria dos residentes no mundo real dos pobres nem sequer pode usufruir de qualquer sentimento de segurança que de certa forma os compense. Lá a pobreza é bem visível. Infelizmente muitos de nós, com uma quase natural displicência, achamos esta pobreza congénita e estas diferenciações lastimáveis mas irremediáveis.
O pior de tudo é que a determinação do nosso patamar relativamente alto de pobreza nada ajuda e antes prejudica a maneira como nós vemos o mundo. Um sentimento apurado de justiça levar-nos-ia a ajudar esses povos a aceder a um patamar de pobreza pelo menos semelhante ao nosso. Mas demitimo-nos facilmente perante a impossibilidade prática imediata disso acontecer.
Nem um maior contacto das pessoas com as realidades exteriores, nem o reconhecimento da influência mútua dos acontecimentos nas várias partes do globo, nem podermos vir a ser vítimas de ondas de choque provenientes de terras longínquas, nos leva a dar mais atenção a esta diferença, afrouxando as nossas próprias expectativas e diminuindo o egoísmo do mundo ocidental.
Alguns de nós pode estar em situação de deficit económico. Mas pobres, pobres são os do Darfur em África e os de tantas outras partes do mundo. Olhemos para eles, para que alguém olhe por eles!

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

O imperativo ecológico: Na ecologia eu sou mais decisivo!

A ecologia atingiu uma gravidade tal que tem que ser levada em consideração mesmo que, de forma deliberada ou ingénua, se queira analisar um problema apenas pelo prisma da economia, da demografia, da sociologia, da política ou de qualquer outra ciência exacta ou menos.
A ecologia veio prestar um grande contributo para uma visão global do nosso planeta e para que todas as questões relacionadas com o nosso futuro sejam vistas com o equilíbrio e a ponderação de todos os factores que há uns anos ainda nos era difícil equacionar.
Há muito tempo se sabe que a grande maioria dos bens terrenos mais úteis existem em quantidades limitadas, que para muitos se não encontrará substituição, que na delapidação e na transformação dos produtos naturais se dá origem a subprodutos prejudiciais e, o que é mais grave ainda, mesmo os produtos obtidos podem constituir um perigo para o mundo tal como o conhecemos.
A ecologia tem vindo a entrar lentamente nas preocupações quotidianas mas tem encontrado muita resistência nos negócios, no equacionar pelos políticos dos problemas mundiais. Há mesmo quem feche os olhos aos problemas de tanta gravidade que, como o aquecimento global, já nos entram pela pele dentro.
Com as agressões ambientais a progredirem no ritmo a que se vão exercendo, corremos o risco de romper os ténues equilíbrios que a custo se têm vindo a estabelecer no mundo. Nesse sentido há que prevenir: O desastre que se avizinha pode não tocar da mesma maneira a todos e ninguém se vai conformar em ser mártir quando outros, embora temporários, são beneficiários das suas próprias agressões.
Os factores desencadeadores de conflitos e guerras do futuro podem estar no domínio ecológico, como hoje estão no domínio energético. Por isso a humanidade quer integrar plenamente a ecologia quanto trata de diplomacia económica, dos negócios mundiais, da política planetária. Na ecologia pode estar a diferença entre a guerra e a paz.
Todas as pressões são legítimas para a incorporação séria da questão ecológica no diário político, no mundo diplomático, das negociações e dos negócios, nas leis nacionais e internacionais, nas preocupações locais, nacionais e transnacionais. Todas as oportunidades de ganhar visibilidade, como o oportuno Prémio Nobel da Paz, são de aplaudir.
Como o tempo escasseia, não chega dizer às crianças que tomem este problema como seu. Nem aos adolescentes, que no folclore mediático muitos o tomam tão só como maneira de obter umas fantásticas fotografias e fazer umas sortidas esporádicas à natureza. E mesmo que a consciência ecológica entre nas suas preocupações só chegarão ao poder dentro de trinta anos.
A ecologia também é o problema dos peixes que se matam no Rio Labruja, das garças que são alvejadas no Lima, do lixo que se abandona nas encostas, das leis permissivas e das outras, as correctas que as entidades públicas não fazem cumprir, dos maus exemplos que vêem de baixo e de cima, do desleixo reinante.
Foi sem qualquer sentido crítico que se incorporaram processos e substâncias nocivas na nossa vida económica, no nosso quotidiano, desde o início da era industrial. A ecologia é um problema civilizacional muito mais recente. Entretanto já se criaram situações irreversíveis.
Hoje é irrealista fazer uma guerra contra qualquer bem ou objecto ecologicamente impuro quando entranhado no nosso consumo. Os hábitos são de tal maneira poderosos que as pessoas os assumem como direitos. Só pela via da contestação destes direitos é possível formar uma consciência ecológica.
O realismo leva-nos a pugnar pela criação de um sentido crítico que obste à criação de hábitos novos ecologicamente não recomendáveis, mas também vá pondo em causa aqueles que estão arreigados e que não podem constituir qualquer direito adquirido.
O ideal seria que a humanidade alterasse os seus modos de vida para formas mais saudáveis e ecológicas. Infelizmente a competição é muita e todos estão mais preocupados com o vizinho do que com a humanidade no seu conjunto. As pessoas vão resolvendo os seus problemas de consciência de forma casuística.
Alguns pensam que não consumindo isto ou aquilo referido por pouco ecológico já resolvem a sua parte do problema. Outros pensam que se todos, a não ser ele, contribuem para o problema, porque se há-de ele preocupar e não consumir o que deseja?
Uma atitude colectiva, que não é somente o somatório das atitudes individuais, só é tomada quando um problema atinge uma dimensão crítica. Nós podemos dar uma ajuda para diminuir essa dimensão. Individualmente impõe-se-nos que tenhamos em vista aquela atitude, mesmo quando nos parece improvável que possamos contribuir para ela.
A vertente ecológica, por exemplo a preocupação com a qualidade do ar, tem que ser incorporada na nossa vida pessoal e profissional com a naturalidade com que nós o respiramos. É um imperativo de sobrevivência e da paz.
È necessário que na questão ecológica atribuamos a nós próprios uma importância superior a quaisquer outra que tenhamos obtido noutro qualquer domínio do nosso interesse. Uma máxima pode ser:Na ecologia eu sou mais decisivo!

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

O cada vez mais difícil mercado da cultura

Uma das estratégias de venda de um produto é apontar para uma das suas possíveis qualidades, realçar o seu carácter decisivo na escolha a fazer. “Compre-me estas flores, olha como elas são belas, dificilmente encontra outras assim.” Se tanto chegar para que o comprador se decida tanto melhor.
Mas normalmente o vendedor preparado não pode ficar só por aí. Ele tem que destacar uma outra qualidade qualquer, por exemplo a robustez e durabilidade, para tornar mais consistente e apelativo o acto de comprar. Isto é, para tornar quase irresistível a intenção de trocar um bem pelo seu dinheiro.
Perante a resistência inesperada, quantas vezes o vendedor ainda tem necessidade de recorrer a mais um ou dois atributos que façam descambar definitivamente a balança para o seu lado. Até porque os anteriormente assinalados podem ter dito muito pouco ao comprador.
Por tudo isto ser vendedor não é tarefa fácil, exige estudo e conhecimentos diversos para seguir uma estratégia coerente e que permita que na hora se não revele qualquer sinal de improvisação. Se o vendedor não está seguro, como o há-de estar o comprador e este precisa de o estar.
Na transacção de bens culturais esta segurança é igualmente decisiva. De tal modo que muitos criadores, que isto de vendedores é para muitos pejorativo, para não correrem riscos desnecessários, se ficam pela primeira etapa do percurso que acima se apontou como necessário. Na verdade tudo tem justificação e não é sem razão que o criador fica por aqui.
Naquele caso a pessoa comprará porque o objecto é belo ou então não compra nada, por mais razões que pudesse vir a descobrir. O vendedor só conhece uma razão e na sua opinião não vale a pena estar a gastar tempo com um fraco comprador que não valoriza os atributos que lhe são propostos e está a menosprezar uma parte não desprezível da beleza universal.
Se o comprador não vê o mundo pelo mesmo prisma seu, também não vê como deveria ver o objecto que ele criou e neste caso a sua posse é pura estragação. Afinal é indigno de possuir um objecto de que não partilha a beleza que ele proporciona. O homem de cultura é arrastado para esta via por uma espécie de fundamentalismo que torna impuros os que olham com indiferença o que ele olha com paixão.
Quem trabalha em primeiro lugar para si é livre de pensar assim e os outros só aproveitam se quiserem. Quem trabalha para os outros tem que aceitar as suas opiniões. Mas mesmo este não aceita esta confusão entre ele e o vendedor normal. Este está disposto a tudo fazer para levar a sua missão avante e ele não tem pachorra para isso.
Sempre lhe parecerá que copiar-lhe os métodos é dar aos seus objectos o mesmo valor que todos os outros que ele vende têm. É rebaixar a sua “mercadoria”. A sua tem o valor que resulta de ele próprio ter ido buscar à beleza uma parte para nele colocar. Facilmente ele se convence ser dos poucos que tem acesso à beleza pura. Outra faceta do fundamentalismo.
Se virmos desapaixonadamente, retirada a parte do papel do vendedor que se refere a obter a maior margem de lucro possível, no restante se trata da mesma função de saber pôr ao dispor do comum das pessoas os bens de que estas necessitam para que a sua vida tenha qualidade em todos os aspectos.
Se o acto de criar foi mais ou menos doloroso, mais ou menos demorado, mais ou menos espontâneo, quem usufrui não está a pensar nisso. Pela criação cultural o homem desempenha um papel único no mundo. Mas se não tiver que “vender” esse produto, no sentido de o tornar útil para os outros, pode estar a “iludir-se somente com as suas capacidades criadoras”.
Analisando um produto sobre várias perspectivas, como o fazem os vendedores, pode chegar à conclusão que, acrescentando-lhe uma outra dimensão, pode obter um produto incomensuravelmente mais valioso, correndo embora o risco de concluir que construiu um castelo na areia.
Os compradores de cultura também se deixam levar em ondas e redemoinhos que permanentemente se formam e aceitam estatutos de criadores cuja consistência não avaliam. Também a cultura lhes deve fornecer armas para separar o trigo do joio.Cada vez mais as pessoas necessitam de estar munidas de meios que lhes permitam obstar à publicidade mais insidiosa e aos seus impulsos mais primários. Na cultura esses efeitos de certo que têm uma base mais secundária mas não deixam de poder ser descodificados. O mercado da cultura é cada vez mais difícil, por mais parecido com todos os outros.

Contra a insolente defesa da pena de morte

A vida perde-se estupidamente por vezes, deliberadamente noutros, criminosamente nalguns. No primeiro caso quando se deve ao desleixo, à negligência, ao desprezo pelas normas de segurança, ao voluntarismo, à indecisão. Nestas situações a “culpa” tanto pode ser de quem morre como dos “outros”, mas normalmente fica solteira.
No segundo caso a pessoa, conscientemente ou não, decide pôr termo à vida. Normalmente porque no seu espírito se instala um conflito insanável, para as solitárias forças do próprio, entre aquilo que ele pensa ser ou ter direito a ser e aquilo que a vida lhe reserva. É uma demissão perante o mundo quando esse conflito com o exterior está de tal modo interiorizado que lhe parece irresolúvel. Ninguém se mata por ter fome mas por achar que tem todo o direito a não ter forme e não encontrar solução que a sua própria dignidade admita.
No terceiro caso uma pessoa é privada da vida contra a sua própria vontade. As situações mais numerosas são aquelas em que alguém vê na eliminação do outro a única maneira de atingir os seus próprios objectivos ou fugir a uma punição eminente. Mas cada vez surgem mais situações em que alguém elimina os outros por vingança ou crueldade, mesmo quando não seja capaz de assumir o resultado e até se suicide em seguida.
O sentido de justiça humana tem lutado pela fuga à lei do olho por olho, dente por dente. Nós portugueses fomos dos primeiros a instituir um sistema diferente da pura réplica do crime de sangue. Isto chegaria tão só para justificar que continuemos a condenar a pena de morte.
Outra justificação é os muitos erros cometidos na atribuição da autoria de um crime, na gradação dos motivos que podem ir do mais fútil ao mais humanamente “justificável”. Somos emocionalmente inseguros e intelectualmente fracos para nos atribuirmos funções de juízes em matéria de tal gravidade.
Dir-se-á que, como vivemos em sociedade, delegamos esse poder no Estado e num sistema de justiça devidamente preparado. No entanto em todos os Países este se revela influenciável por pessoas e por ideias feitas, carregado de ineficácia na averiguação, na análise, na constatação da relevância social do crime, no julgamento propriamente dito.
Embora os sistemas de justiça sejam fracos e se desacreditem a si próprios pelas incoerências, pelas contradições, pelos vícios de que informam, isto não dá uma justificação para que deixemos de neles delegar, certos de que eles sempre farão melhor esta incumbência do que nós próprios a faríamos se entendêssemos fazer justiça por nossas mãos.
O que não podemos admitir é que o sistema se auto justifique. Temos que lhe impor sérios limites à arbitrariedade. Nunca lhe podemos permitir que prive da vida mesmo quem eventualmente se ache merecedor de pôr a cabeça no cepo. Aqueles que, dentro ou fora do sistema judiciário e judicial, pugnam pela pena de morte manifestam a leviandade de quem se acha infalível no julgamento dos outros. Há uma clara diferença entre ser juiz e justiceiro.
Os nossos impulsos, como resposta a agressões alheias, só são justificáveis em autodefesa e mesmo assim nunca nos livramos de que a situação se possa vir a revelar contraditória. Se nos for dado um momento para pensar, a não ser que a insolência tenha tomado conta do nosso espírito, já nos podemos achar suficientemente magnânimos para perdoar, mesmo que tenhamos a certeza que a ideia de alguém era aniquilarmo-nos.
Ao homem que lhe é dado esse momento para pensar, se não for capaz de ser digno dele, perde todas as características que o distinguem duma brutal fera.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Em defesa do Nobel da Paz

A evolução da humanidade não tem sido linear, seja qual for o prisma por que se veja. Há mais de dois mil anos que nós já vimos civilizações deslumbrantes protagonizadas por quem se tinha libertado da dependência da terra. Isto é, conseguiu-se que a terra produzisse o suficiente para o sustento dos que a trabalhavam e uma parte já substancial da sua produção sobejasse para que um grupo vasto não precisasse de lutar na terra para sobreviver.
Tais civilizações produziram saberes práticos e especulativos que nem sempre se preservaram. Por mais Impérios que se tenham construído à volta desses focos civilizacionais, eles não resistiram às hordas ditas selvagens, grupos em expansão em busca de espaço vital para os seus membros ou em consolidação dos seus próprios domínios.
Os grupos que adquiriram o controle desses vastos espaços quase sempre fizeram tábua rasa de tudo o que havia sido construído pelos que os antecederam nessas terras. Muitas vezes a vaga destruidora era tal que, para além da ignorância dos valores espirituais, sejam literários, musicais, religiosos ou outros, era o próprio património físico, arquitectónico que era ignorado.
Alguns, quando se aperceberam do valor do que tinham subestimado, já o fizeram tarde demais. Entretanto tinham desenvolvido a sua própria urbanidade, a sua própria cultura, o seu próprio estilo, a sua própria civilização. Beneficiando embora de alguma experiência acumulada que tinha sobrevivido, nem sempre conseguiram ultrapassar o patamar em que a anterior já se encontrava colocada.
A nós, tenhamos ou não avançado mais do que quaisquer outra civilização, interessa-nos saber tudo o que se passou no passado para não repetir os mesmos erros, seguir os mesmos caminhos sem saída, chegar aos mesmos bloqueios e estagnações.
Mais do que um fio condutor na história encontramos um fio de contas que empenhadamente vamos juntando, mas que nem sempre conseguimos segurar, que por vezes perdemos, que penosamente reconquistamos e recolocamos. E quando nos reposicionamos na história sofremos ao detectar falhas e descontinuidades que a imaginação não corrige.
Houve um retrocesso sempre que uma civilização agrária se sobrepôs, reestruturou os mecanismos sociais tendo por base os seus pressupostos e limitações. Demorou por vezes séculos a que novas forças, similares àquelas que tinham sido submetidas, conseguissem emergir de modo a poder estruturar uma sociedade independente e suficientemente forte para se não deixar regredir ciclicamente.
Podemos dizer que hoje há um patamar que a custo foi atingido, mas que está longe de estar livre de perigos, dado que a aparente estabilidade geopolítica assenta em critérios de força que nem todos aceitam.
Evidentemente que esta relativa estabilidades só existe porque os blocos mais fortes possuem ou compartilham o suficiente espaço vital para as suas necessidades. Há uma evolução global convergente que garante que, sem quebra de reciprocidade, se caminhe em direcção a um futuro mais solidário, sem conflitos dilacerantes.
Num mundo tão diverso, em que o homem se desenvolveu beneficiando ou sujeitando-se a uma tão grande diferenciação, as condições agora criadas, sem serem ideais, deixam-nos uma réstia de esperança de que esse futuro é possível.
Ao fazermos com que a evolução científica e técnica incida eficazmente no mundo rural, ao libertarmos daí forças para outros fins, ao chegarmos a que cada Estado dependa apenas dum restrito espaço agrícola para alimentar os seus membros, ao este negociar e permutar outros espaços vitais, estamos a caminhar no sentido da paz.
Se cada Estado vai ficando cada vez mais seguro do que lhe não vão subtrair a sua parte do espaço global já não podemos estar assim tão certos que a natureza o não faça. Por isso, antes que a natureza nos obrigue a invadir o território dos nossos vizinhos, negociemos com ela um futuro previsível para a humanidade.
A consciência dos perigos globais a que a vida na Terra está sujeita não nos pode passar despercebida e a atribuição do Nobel da Paz a quem se preocupa com este problema é sinal revelador da urgência com que ele tem que ser pensado. A ecologia entrou definitivamente nas questões que é necessário integrar e que sejam pensadas em conjunto e a nível global.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

O tempo da natureza, do trabalho e da festa

A proletarização da população portuguesa é um fenómeno relativamente recente. Proletarização no sentido mais lato de desvinculação da terra, de deixar de depender desta para o seu sustento, de fuga ao carácter cíclico da natureza, de chegada a um mundo de total dependência do exterior.
A maioria dos homens passaram a trabalhar para um indivíduo ou para uma organização em regime de exclusividade e sem outro pagamento senão o dinheiro. Alguns com mais sorte podem beneficiar com o trabalho dos outros se tiverem engenho e arte para os organizar sob a sua dependência.
O trabalho rural, seja de auto-subsistência, seja de assalariado, tem agora o carácter residual que em tempo era assumido pelo trabalho industrial. Este, associado ou integrando novas formas de trabalho, tomou o lugar primordial em termos qualitativos e quantitativos.
Podemos verificar que entre as novas formas de trabalho se pode incluir a gestão e a administração, o trabalho técnico e o operacional, o de investigação e o de manutenção, o aprovisionamento e a limpeza, genericamente todos são prestados da mesma forma do trabalho industrial.
O tempo em que o trabalho rural era entendido como o espaço normal das pessoas está quase definitivamente abandonado. Procurou-se durante demasiado tempo com medidas irrealistas, não apropriadas que o trabalho não agrícola não destroçasse o equilíbrio existente entre o homem e a natureza.
Cultivou-se um bucolismo serôdio para lutar contra a inexorabilidade do tempo. Criaram-se situações, como o sacrifício da unidade familiar, cujo corpo maior era mantido naquele espaço rural e o homem era destacado para essa actividade industrial, que não podiam perdurar sempre.
Uma ilusão se criou também para os mais favorecidos e se difundiu como verdade assumida: Seria possível disseminar toda a indústria e serviços pelo espaço rural de modo a que a família não fosse obrigada a desmembrar-se para exercer o seu trabalho e pelo menos alguns dos seus membros se pudessem manter pelo trabalho em contacto com a natureza.
Tomava-se como exemplo as indústrias de mão-de-obra intensiva, como o calçado e a confecção, facilmente instaladas no meio rural para aproveitar a mão-de-obra excedentária da agricultura. Mas esta situação revelou-se transitória e se aumentou os rendimentos de modo a reter alguma população não alterou significativamente a qualidade do trabalho e manteve a procura de trabalhos melhor qualificados e remunerados.
A tentativa de conciliação entre trabalho rural e não rural na mesma família, de modo a não a separar, mesmo que temporariamente, deu origem a uma desigualdade familiar insuportável. A interdependência é cada vez mais rejeitada, antes se busca a igualdade através da criação das mesmas possibilidades de obtenção de recursos.
Cada vez mais se caminha para o delimitar dos campos de actuação dos indivíduos e das unidades familiares, com a junção dos elementos da família no mesmo espaço de vida e de trabalho. Um dos efeitos evidentes, imediatos e irreversíveis é o abandono dos campos, a desertificação do interior.
A atractividade da vida urbana vai fazendo o seu percurso e embora continue a haver uma manifesta desigualdade nos rendimentos dos géneros, por habilitações literárias, por sectores, há uma vida social urbana que vai fazendo esvanecer essa diferenciação.
Os movimentos de regresso à terra, que por vezes se esboçam, não têm dimensão, não representam fenómenos de massas, não têm carácter definitivo, são, pelo contrário, manifestações ostentadoras, com carácter temporário, que se esboroam com o tempo.
Mesmo os investimentos que o Estado faz, cada vez menos directamente e mais através das autarquias, não tem efeitos práticos visíveis. O investimento não é reprodutivo, parece que todo se esvai no ar como o fogo de artifício das festas que cada vez mais proliferam por todos os cantos e esquinas deste País.
Afinal que maior felicidade podemos almejar que esta. O melhor do tempo é aquele que se passa a festejar, já que o resto sempre teremos que o passar a trabalhar e aí qualquer disposição serve. O trabalho é sempre um sacrifício e se podermos acusar alguém da sua dureza parece que ficamos mais aliviados.
Aquilo de que nós mais podemos acusar os políticos não é de estragarem o dinheiro, seja em festas, seja em sumptuosidades inúteis, antes é de desconhecerem o futuro ou, o que será pior, de o ignorarem deliberadamente. A economia faz o seu percurso quase autónomo e, se o Estado não nos alerta para ele, não somos nós que temos meios para o descobrir.
O homem, hoje liberto do ciclo das colheitas, não tem referências que não seja o dinheiro que possa angariar em confronto com o dinheiro dos outros e o grau de segurança que o Estado lhe possa dar.No fundo como acreditamos pouco em nós próprios, como ignoramos as subtilezas da economia, como associamos segurança a riqueza, entregamos alegremente o futuro nas mãos dos políticos e vamos à festa.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

O vinho, a última resistência na nossa economia rural

Se duas pessoas fazem negócio é pressuposto ficarem ambos a ganhar. Um porque prescinde daquilo que lhe sobra para ele próprio poder vir a adquirir aquilo que lhe falta e outro possa ficar com aquilo de que necessita. Quando esta última exerce um papel de intermediação estamos perante um profissional do comércio, um negociante.
Se duas economias fazem negócio entre si passa-se o mesmo que entre duas pessoas. Mas se duas economias se interpenetram as consequências são bem mais vastas e mercê das diferentes etapas do desenvolvimento de cada uma podem provocar alterações estruturais irremediáveis.
A nossa economia rural sempre negociou com a insípida economia industrial e quase sempre em clara desvantagem. A verdade é que os agricultores sempre se arrogaram um papel decisivo na economia, afirmando categoricamente que sem eles a restante economia não avançava. E foram mantendo um certo equilíbrio graças à política agro-industrial de Salazar, que foi adiando a catástrofe.
Só que a economia global em que agora estamos inseridos não se compadece com a falta de produtividade que temos na nossa agricultura. O sector industrial e de serviços são o expoente desta nova economia que assenta sempre em produtos agrícolas baratos. Por isso contribui a seu modo para fazer evoluir o mundo rural, até porque também precisa deles para os transformar e vender, usurpando-lhe assim os dividendos.
O papel primordial, motor, da economia rural está hoje totalmente ultrapassado por essa confluência de interesses que lhe são adversos. A abertura da economia a zonas de maior rentabilidade conjuga-se com a alteração de hábitos de consumo e leva a um contínuo declínio do sector na economia total.
Hoje a economia rural está absolutamente dependente, sem poder de negociação, sobrevivendo em muitos caos com o apoio estatal nem sempre benéfico ou sequer recebido pelos seus verdadeiros destinatários. Há muito dinheiro que se perde pelo caminho, porque o agricultor está sempre em desvantagem.
A economia rural não consegue impor quaisquer margens de lucro. Embora sujeita às contingências do tempo, das calamidades, das pragas, não lhe é permitido, como outrora, repercutir isso nos preços. Não raro a agricultura é obrigada a vender abaixo dos custos de produção. Na zona de minifúndio em muitas situações não se fazem contas aos ganhos e perdas que ocorrem nesta actividade.
A economia procura “impingir” aquilo que é na sua fabricação mais barato e dá mais lucro. A cerveja por exemplo. Como a sua margem de lucro é exorbitante, ela poda ser utilizada na sua promoção, através dos mais diferentes meios mas que visem preferencialmente a fidelização do cliente.
Como há-de o vinho lutar contra tão forte oponente, entre outros? A economia não brinca, não tem caprichos, nem sentimentos ou gostos. Tem números, exigências, resultados. Produzir pelo menor preço, impor o consumo subvertendo os gostos e os hábitos.
Nós não estávamos acostumados e não nos preparamos para este mundo. Salazar tolheu-nos as pernas, o aventureirismo pós 25 de Abril cortou-nos as asas. Mas também nós fomos culpados por ter contribuído para o desenvolvimento da economia. É neste sentido que nos temos que convencer em que não podemos atribuir todas as culpas aos outros.
Também nós, como culpados, temos de contribuir para a solução deste problema. Se procuramos outros modos de vida haveríamos de saber que as velhas maneiras estavam irremediavelmente condenadas à perdição. Não o fizemos, como noutros tempos, pela pressão demográfica e pela fome mas sim pela redução comparativa de rendimentos e pela chegada até nós dos inconvenientes e de nenhuma vantagem de uma nova civilização.
O mundo rural não mais será igual na zona do minifúndio. Zonas há que vão resistindo mais do que outras ao impacto da economia mas todas acabarão por soçobrar se não houver mudanças e apostas acertadas. A economia rural entendida só como complemento não tem futuro garantido. A economia familiar constrói-se hoje na base de outros princípios e valores.
O número daqueles que são só e exclusivamente lavradores diminuiu drasticamente. Mas nem esses têm o futuro garantido porque lhes falta capital para resistir. Até estes se terão que convencer que a vulnerabilidade do sector rural não é hoje maior ou menor que qualquer um dos subsectores industriais ou de serviços, mas os meios são diferentes, na agricultura não há deslocalização e as reconversões são difíceis e morosas.

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

O vinho verde na economia local e global

Hoje a economia pura e dura, sem barreiras, globalizada, tomou já conta de todos os sectores que lhe viviam um pouco à margem, imunes às suas consequências e influenciando-a muito pouco com os seus efeitos.
Mas a economia tem artes e a insídia bastante para que nada lhe fuja e para que faça valer as suas leis e razões. Aqueles sectores mais solidamente instalados no seu próprio território tornam-se afinal, por essa situação de aparente segurança, mais vulneráveis nos tempos de hoje.
De forma mais ou menos repentina a exclusividade vai-se perdendo, perde-se o mercado e até o auto-consumo. Quando um produto exterior se nos impõe pelo preço, prescinde-se da qualidade do nosso produto nem que se venha mais tarde a pagar por ela, mas já em relação a um produto exterior.
O vinho estava nesta categoria, tinha em tempos mercado exclusivo, era fundamental no auto-consumo por ser considerado um alimento, era, para todos os efeitos, parte integrante da economia familiar da maioria dos habitantes da região dos vinhos verdes.
Já antes vários produtos autóctones nos tinham abandonado como a galinha caseira (a sério), o porco malhado bízaro, e outros tiveram graves quebras na produção como o gado, em particular o de leite, o azeite, o milho, o feijão, o tremoço, a noz, a castanha.
A economia impõe-nos que deixemos cair o que é nosso. Se estamos demasiado agarrados a isso, depressa a economia arranja novos argumentos das áreas da ecologia, da saúde, até da ordem pública, para impor mudanças, para nos criar outros gostos e apetências.
Ao vinho verde atribuem-se alguns deméritos, como o excesso de acidez, a falta de teor alcoólico, o pouco tempo de vida. Este vinho é próprio desta zona de muita pluviosidade, muito nevoeiro, clima propício a tudo que são pragas, a muita vegetação rasteira, a muito custo com a mão-de-obra necessária para dar combate a todos os seus inimigos.
Ainda tem a desvantagem de nunca se ter imposto verdadeiramente para além da sua região, do seu mercado tradicional, dos emigrantes oriundos da região, daqueles que o consumiam por obrigação e dos seus apreciadores bem definidos.
O sector do vinho é, dentro do domínio agrícola, aquele que mais resistiu mas está hoje sujeito a sofrer o impacto violento mas esperado da economia global. Em particular o hemisfério sul aparece como um concorrente fortíssimo nesta área. O mais dramático é que em muitos lugares o vinho era o que restava na economia, mesmo que a mão-de-obra começasse a escassear.
Se no Douro essa exclusividade se foi criando de há três séculos para cá, na região dos vinhos verdes deu-se esse passo nas últimas décadas. Enquanto só existiam vinhas de bordadura a dependência do vinho era mitigada e só a extrema pulverização da propriedade permitia que tivesse um grande peso.
Tudo se desenvolvia um pouco anarquicamente, no sentido de não olhar senão aos interesses próprios de cada proprietário. A criação da vinha contínua veio alterar este estado de coisas, este equilíbrio da economia de auto-subsistência, de quem essencialmente não trabalhava para o mercado.
A luta pela qualidade e pelo mercado que já começou nessa fase vai-se acentuar agora. Por isso se vai impor aquilo que nunca foi feito senão esporadicamente: A selecção dos terrenos e das castas apropriadas em especial para o vinho tinto. Mas a um outro nível tem que se caminhar no sentido da imunização da vinha perante as pragas instaladas no ambiente.
Só assim haverá possibilidade de competir com os vinhos provenientes de outras regiões e do estrangeiro. A uma diminuição drástica da quantidade que não foi possível fazer voluntariamente, mas que agora se impôs por efeito da economia e a que o clima deu uma ajuda, tem que corresponder a melhoria substancial da qualidade.
Isto terá implicações inevitáveis no meio rural, na economia rural, na paisagem, no ecosistema. As terras fundeiras e mais planas ficarão em exclusivo para a produção de milho para ensilagem e de forragens para a produção animal.
As terras altas ficarão para o pastoreio e produção arbórea. As terras intermédias, ditas de meia encosta, ficarão para a vinha e forragens. Eventualmente poderá surgir alguma cultura destinada à produção de massa vegetal para a conversão em energia.
Já começou a haver, e haverá cada vez mais, terrenos em pousio, não se sabe para quê. Muitos sonham com a urbanização, com uma vaga de velhos que venha para cá viver os últimos dias. Que dinamizem a economia local e comprem umas ovelhas para apascentar no campo.
Formar-se-ão empresas de jardinagem que lhes tratarão do aspecto. Roçadoras, moto serras e fresadoras vão ser os instrumentos de trabalho mais vulgarizados. Este é o sonho de quem queria preservar artificialmente a paisagem, que já não os modos de vida.
Só que com o rendimento dos velhos a diminuir, ou pelo menos estagnar, só lhes restará retirarem-se para um asilo e deixarem o mato a lavrar livremente pelas suas terras. Já ninguém toma conta delas de graça, nem pelo vinho, quanto mais pagar renda!

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

As Feiras Novas em jeito de balanço

È ocasião para recordar aquela lenga-lenga de que a qualidade se distingue claramente da quantidade. Sendo a quantidade sinal de pouca qualidade pode trazer alguma. Já a qualidade se dilui e é absorvida pela quantidade. O que sobreleva é no final a quantidade em detrimento da qualidade.
As nossas Feiras Novas são cada vez mais a festa de muita festas, a festa da juventude que nada tem a ver com a tradição, a festa dos nossos conterrâneos que nos vêm rever nesta altura, a festa dos saudosistas, a festa dos curiosos, a festa dos feirantes.
Cada qual vive a festa à sua maneira, em diversas ocasiões, de manhã, à tarde ou à noite, em diferentes locais, muitas vezes sem qualquer ligação entre si, com músicas variadas, com intenções às vezes divergentes. Cada novo grupo que vem à festa vai alterando as suas características e a base rural está irremediavelmente em declínio.
Este facto tem influência directa no ritmo, na velocidade com que se vive a festa. As festas são cada vez mais céleres. A nós, habituados a outros ritmos, as festas fogem-nos. A verdade é que há hoje uma série de condicionantes a tornar tudo mais rápido, vivido de maneira mais sôfrega, apressada, que logo há outras coisas para fazer.
Mas uma coisa é o tempo real e outra, bem diferente, é o tempo vivido. Em termos de tempo real as festas têm aumentado, sem que isso implique um maior tempo vivido. Mas maugrado a diminuição deste impõe-se que se diminua a tempo real da festa ou pelo menos de alterem os dias em que ela decorre.
Haverá condicionantes que recomendariam que se diminua o tempo real até porque agora se vive tudo mais depressa. Para a maioria da juventude, que vive a sua própria festa, a sexta-feira e o sábado tanto basta para gastar a sua força e dar vida às suas emoções. Mas claro que a festa não é só dela, mas convenhamos que cada vez mais condicionada por ela, pela cerveja, pela massificação e globalização. Pela falta de qualidade.
Acresce que a antecipação do começo das aulas leva à debandada dos jovens e à preocupação dos pais, ao abandono da festa mais cedo, no domingo ao fim da tarde, que o sono reparador a todos espera e é preciso estar preparado para novo dia de trabalho e de aulas.
Este ano a organização contribui pela sua parte para que a festa acabasse mais cedo. O desfile taurófilo, novidade de domingo, teve três defeitos nítidos: A hora madrugadora, o percurso limitado, o tamanho diminuto. Salvou-se a qualidade dos carros alegóricos, a intenção, alguns quadros sugestivos.
Já o cortejo etnográfico de sábado foi manifestamente grande. Continua a repetir erros antigos e cada inovação que lhe fazem parece ter por intenção o seu desprestígio. De um desfile das nossas tradições mais genuínas, no folclore, no artesanato, nos modos de vida, nos afazeres, nos hábitos e costumes, corre-se o risco de não passar de um desfile publicitário.
Possivelmente, em muitos casos, não se poderá ultrapassar esta pecha, desligar os carros e o seu conteúdo de certas empresas, impedir de modo absoluto qualquer ligação a projectos empresariais, mas há situações que começam a raiar o absurdo.
As festas são feitas pelas pessoas, mas, o facto de a organização ter pouca influência no seu desenrolar, não quer dizer que esta não tenha que ter em conta os interesses destas em termos de horários e configuração dos vários espectáculos. Muitas vezes a organização já fará muito se não atrapalhar, mas o que fizer tem que ter por objectivo o número máximo de pessoas.
O fogo de artifício é um espectáculo paradigmático, grandioso, empolgante. A cachoeira integrou-se bem em tempo. Hoje, pela dificuldade na sua visualização, pelo seu imobilismo em relação ao restante fogo, pela falta de inovação, já é parte perfeitamente amputável e substituível por outro fogo.
São as festas que se têm que adaptar aos interesses das pessoas e já não estas àqueles. Para os feirantes, para os festeiros todos os dias são iguais. Para os compradores e para quem se diverte não é tanto assim. A organização não pode ter só em vista os interesses dos feirantes e da sua própria receita.
Há a disponibilidade para fazer da sexta-feira um dia de festa plena porque as preocupações que nessa altura possam existir são muito menores. Em compensação a segunda-feira, afora o carácter religioso, já não tem motivos de atracão justificativos da sua inclusão nas festas. Os actos religiosos podiam ser com manifesta vantagem noutra dia como o domingo.
A velha displicência deu lugar à azáfama, à correria. Também a improvisação tem os dias contados. Quem organiza tem de adequar o programa aos tempos das pessoas, às suas folgas, às suas disponibilidades. O tempo de todos nós é hoje medido, distribuído, pensado.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Como serão umas Feiras Novas genuínas e modernas?

As Feiras Novas, festas tradicionais de Ponte de Lima foram criadas em plena ligação com a feira, como seu complemento, que uma vez por ano comerciantes, artesãos e agricultores guardavam estes três dias para duas das actividades essenciais na vida e no equilíbrio emocional de todo o ser humano.
Nesta feira sempre se juntaram os limianos que vendiam os seus produtos aos conterrâneos e aos forasteiros ou comerciantes que vinham de fora mercadejar. Aqui se encontrava de quase tudo e se aproveitava o resto do dia e a noite para festejar condignamente a despedida do Verão.
Ponte de Lima sempre teve um espaço óptimo para este efeito. O amplo areal que se formou entre si e o rio, o Largo de Camões e as alamedas de S. João e dos plátanos chegavam e sobravam para o desenrolar do mercado, do arraial, para a instalação de todos os divertimentos que nesta ocasião aqui afluíam.
Não vai muito tempo que o espaço chegava para tudo e que tudo se desenvolvia em harmonia no tempo e no espaço. Sempre foram as pessoas que fizeram a festa, tendo os números que lhe foram sendo acrescentados contribuído para atrair cada vez mais gente.
Na verdade é que a apreciação geral, vendo-se pela atracção que anualmente é exercida, não depende por aí além das alterações que se vão operando, a festa tem “clientela” segura, uns amigos trazem outros e todos se deixam contagiar pela animação que por aqui se vai difundindo.
Onde pode começar a haver problemas é na dimensão das Feiras Novas. A improvisação já há uns anos que não vem satisfazendo as necessidades. Os intervenientes na festa já não conseguem gerir correctamente o espaço disponível e a organização tem que tomar opções claras.
O aumento da mobilidade levou a que as coisas tenham tomado um tamanho tão desproporcionado que a capacidade de absorção, de integração dos novos forasteiros, numa festa com esta tradição, nos moldes em que ela sempre se desenrolou, se tornou insuficiente.
Simultaneamente tem havido tentativas para dispersar o arraial, colocar certos eventos em zonas mais periféricas de maneira a desconcentrar nos períodos de maior afluência. Com certeza que este caminho tem que ser continuado, que o centro urbano não é elástico.
Mas ao mesmo tempo tem que serem dados passos no sentido de não deixar submergir tudo pelo comércio ambulante que aproveita todas as oportunidades para se instalar em qualquer lado com armas e bagagens. E se nós não podemos controlar os visitantes podemos fazê-lo em relação aos ambulantes.
A festa ganha com uma certa anarquia, mas perde se esta se tornar absoluta. A festa ganharia por um lado em separar aquilo que é feira daquilo que é festa. Mas tenderia por outro lado a perder algumas das características mais peculiares de uma feira que se não desmancha em três dias para que as festas se vão desenrolando no seu seio. E um balanço difícil de ponderar.
Mas talvez a separação venha a ser inevitável no futuro. E aí reside a grande divergência que eu tenho com os caminhos que estão a serem seguidos. Em vez de se ir separando a feira das festas, eliminando promiscuidades, criando espaços delimitados, vai-se arquitectando paliativos que só adiam e tornam cada vez mais difícil uma solução definitiva.
O comércio deve ser feito em zonas só a isso destinadas. Ao comércio alimentar em particular deve ser-lhe exigido o respeito de adequadas condições, não deixando que a coberto da tipicidade perdurem situações de manifesta falta de higiene. Neste aspecto a modernidade não é descabida.
Uma falsa originalidade não pode servir de álibi para que não sejam praticadas as normas que as novas exigências de salubridade exigem. Ao contrário do que se possa pensar não é a desordem e a imundice que são típicas. Aquilo que satisfazia as condições mínimas há cinquenta anos é evidente que não satisfaz as condições exigíveis hoje, ainda para servir uma clientela em maior número.
A ideia de que pode haver quem esteja interessado em acabar com as Feiras Novas não é defensável. Mas nada é estático e haverá possibilidade de melhorar aquilo que aos olhos de muitos não é já tradição mas um anacronismo incompatível com as normas de hoje.
Mas a questão do comércio alimentar é só um dos problemas que se nos deparam. Todo o comércio ambiciona estar perto da sua clientela, tão perto que os transeuntes sejam obrigados e entrar pela sua barraca. Nestas ocasiões ninguém vê que não é por tanta gente se ver comprimida que o comércio sai beneficiado.
Quando vamos para a festa não devemos levar preocupações destas. Sou daqueles que acredito no bom senso das pessoas e que elas tudo farão para que não surjam problemas de maior. Mas para quem não conhece as pessoas envolvidas há situações em que se lhes levantam muitas dúvidas. Além do mais sabemos que as soluções são difíceis mas com o adiamento cada vez o serão mais.
Vamos vivendo a festa no nosso cantinho, na nossa praça, na nossa alameda. É tempo de nos empenharmos em que a alegria a todos chegue na dimensão que cada um achar mais adequada para si. A alegria tem que ser tão natural como a cristalina água das nossas fontes naturais, porque não, como o saboroso vinho das nossas cepas.
As Feiras Novas merecem que se lhes olhe para os aspectos mais típicos, mais característicos, mais relevantes. A maioria dos de cá está receptiva a guardar a genuinidade promovendo a modernidade, para que a festa seja cada vez maior e todos aqui caibam.
Toda a gente é bem aceite, venha com o espírito de compartilhar connosco esta festa única.

As Feiras Novas são aquela Festa…

De repente um acontecimento que ainda havia de vir passava a condicionar o tempo. Já não era mais o tempo de praia, dos mergulhos nas límpidas águas do nosso Lima. Com o fim de Agosto a temperatura já diminuiu bastante, o Sol é já menos agressivo, o clima tornou-se mais ameno e apaziguador. Houve como que um abrandamento do ritmo da vida.
Nos campos a vivacidade das plantas foi-se perdendo e o espírito virou-se para as colheitas. Até os jovens parecem contagiados. Há sempre um tempo de sementeira e um tempo de colheita e todos nós nos viramos para recolher à nossa maneira o fruto de uma época de labuta.
Aproxima-se, não mais uma, mas a festa das festas, a suprema festa, o culminar de todas as festas que ao longo do ano se vão realizando. Quão inigualável é esta festa!
Não tardaria muito as aulas recomeçariam e era necessário encará-las com o espírito renovado pela satisfação de se ter vivido mais um ano de uma despreocupada juventude. O momento não podia ser mais oportuno para uma despedida e um até breve, que o tempo de aulas se tornaria mais leve.
Durante o resto do ano tudo se podia comemorar, sempre haverá razões para fazer uma festa. No ciclo da vida rural, da sementeira à colheita sempre há motivo para celebrar. Mas agora que os frutos vão ficando maduros, agora que se aproxima a necessária acomodação a um Inverno áspero e inclemente, celebra-se o sucesso possível de um ano de esforço e empenho.
Quaisquer que tivessem sido as vicissitudes por que passamos, algum ânimo terá sempre sobrado, algumas energias ainda teremos para dar vivacidade, emprestar uma alegria efusiva e contagiante a esta festa de louvor à vida. No final as nossas forças sairão mais renovadas.
As Feiras Novas são aquela festa que qualquer outra não consegue ser. O tempo é bem escolhido, é o momento próprio para a celebração. À festa não faltam as habituais pessoas de todas as Serras e Vales do Alto Minho e mesmo para além, algumas de bem longe. Chegada a época, espalha-se o chamamento.
Em crianças pressentíamos, como que pelo cheiro, o ar transmitia-nos a nova com maior velocidade que os ronceiros carros que transportavam os divertimentos. De súbito, como um frémito entre a criançada, todos os olhos se virassem para um só lado.
Era de lá, daquela estrada que bem se via do Largo de Camões que se esperava que tudo surgisse. Enfim chegaria a efectiva certeza de que a festa se faria. Para nós, jovens despreocupados, todos os anos se repetia a magia do nascimento. Se sabíamos que o arraial era o resultado da conjugação de muitos esforços, a nós só a ansiedade da espera nos ocupava.
A velha estrada de Viana era o caminho que tudo trazia e o Alto de S. Gonçalo era o nosso limite visual. Uma carroça, uma velha camioneta de carga e aí estávamos nós prontos a uma correria para confirmar se já se tratava mesmo das primeiras traves dos carrinhos, dos carris para o carrossel ou outro qualquer equipamento que viesse dar forma à festa.
Ou até, quem diria, as bancadas de um qualquer circo, que também eles cá vinham por vezes nesta altura. Anualmente visitavam-nos os espelhos que nos desfiguram, os comboios fantasmas, as motas que trepavam o poço da morte, os cavalos em que com alguma imaginação galopávamos, os carrinhos de choque, os aviões que subiam na vertical, as cadeirinhas, qual baloiço que arremessávamos pelo ar. Cada um teria a sua preferência mas todos eram bem vindos.
Fosse o que fosse o primeiro que pusesse as suas rodas no areal, já nos tinha à perna. Logo era assaltado pela miudagem pronta a ajudar à medida das suas forças na edificação da cidade fantástica de cor, bulício e alegria que nos três dias de festas nos faria rodopiar pelas suas ruelas sempre apinhadas de gente sorridente e atrevida.
Com sorte arranjaríamos umas fichas como paga de algum serviço mais leve, como ir buscar uma bebida ou chegar uns tacos de madeira para nivelar bem o que começava por serem estranhas armações que haveriam de levar em cima com ferros e madeira que dariam formas aos tão esperados divertimentos.
Se por acaso fora um circo a nossa persistência podia vir a ter o almejado prémio. Não só ver mas viver mesmo alguma da magia do circo. Até nos podiam dar por tarefa vender durante os espectáculos umas fotografias das trapezistas, uns bolos ou rebuçados ou os pirolitos de bolinha que matavam a sede de tanto rir.
Gostava sobretudo desta vida de bastidores em que tão brilhante era o frenesi de trás do palco como o esplendor colorido dos que actuavam à luz dos holofotes. Haveria sempre tempo para percorrer todas a festa, uma e outra vez, sempre se mostrando diferente, sempre novas caras, outro colorido, outra animação.
A festa dos jovens era fascinante, a sua recordação entusiasmava-nos o ano inteiro, ajudava-nos a aceitar melhor os horrores da disciplina e do estudo que tanto tempo nos ocupava. O tempo de festa era imenso enquanto durava e persistente depois de ter terminado. Era um tempo que não terminava nos nossos sonhos.
Só três dias de euforia, mas que únicos pela diversidade dos atractivos, pela liberdade impar que nos proporcionava, pela ausência de qualquer medo de perca ou rapto, eram sempre dos mais felizes que nesse já longínquos anos podíamos viver. E todos os aproveitávamos bem.
O desmontar do arraial era uma tristeza. Saber que só para o lado a festa se repetiria era confrangedor. Até que as aulas recomeçassem, lá deambularíamos por esta cidade fantasma, gastando o tempo nas barracas de bonecos que sempre ficavam mais uns dias. E quase sempre era a chuva que fazia o seu aparecimento para nos convencer que tudo tem o seu fim.

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

As Geminações na defesa do nosso património cultural

As geminações entre terras de diferentes países são patrocinadas pela Comunidade Europeia como forma de proporcionar o intercâmbio de actividades de natureza cultural entre povos com passados distintos e um futuro que se quer de paz, de solidariedade e harmonia, convergente nos objectivos.
Em Ponte de Lima são já vários os casos de geminação com terras de diversos países a que nos ligam laços bem anteriores à integração europeia. Mesmo assim nem todos têm tido sucesso e pelo menos um já estará esquecido.
Talvez que a ideia dos patrocinadores não tenha correspondido uma implementação correcta e eficaz, essa geminação não tenha sido assumida e vivida pelos vários extractos sociais, não tenha sido garantida uma continuidade para além do acto institucional.
É claro que para este parcial fracasso terão contribuído uma série de equívocos. Em primeiro lugar porque, sendo a geminação feita entre terras, estas são representadas por pessoas que são transitórias nos cargos políticos e associativos que dão corpo a este tipo de associação.
Se há mudanças nas direcções e não se dá continuidade a um esforço, só porque ele foi iniciado por outros que se querem menosprezar, quando as prioridades passam a ser outras, corre-se o risco de dar origem a uma rotura num processo que, quando está no começo, é ainda muito frágil.
Depois porque os promotores são no geral emigrantes que encontram na geminação uma forma de manter os laços com a sua terra de origem ou pelo menos com o seu País. E da parte dos que por cá estamos encontra-se na geminação uma forma de compartilhar uma aventura passada que não vivemos, de seguirmos de forma mais aprazível um caminho que para eles foi de sacrifícios, quando não de pesadelos.
Esta lógica é legítima, deve ser incentivada e apoiada, mas é necessário que não só estas personagens participem no processo. Todos os elementos das duas comunidades locais, seja qual for a sua origem, devem ser chamados a integrar o espírito que preside a esta associação e incentivados a partilhar esta vivência.
O facto de haver um núcleo de emigrantes bem integrados deve ser visto como um elemento facilitador da ligação e a garantia de uma maior colaboração entre as duas comunidades locais. Também na comunidade de origem é necessário que haja um grupo de pessoas que viva esta associação mas também a divulgue e a abra a outros sectores sociais.
Uma geminação para ser de sucesso tem que ser capaz de criar múltiplos elos de ligação. O pior que pode acontecer é isolar-se numa só ligação exercida em regime de exclusividade. Sem prejuízo de uma coordenação e de haver certos domínios privilegiados, se não houver vivacidade e dinamismo, a associação, se se tornar repetitiva, esmorecerá com o tempo.
Os contactos entre duas comunidades não se pode restringir àqueles que por natureza já são semelhantes, nem sequer a uma só geração. A segunda geração de emigrantes é importantíssima porque já tem outras possibilidades de ter um melhor conhecimento e integração no espírito do novo lugar e ainda mantém alguma ligação ao lugar de seus pais.
Maugrado o diferente estado de desenvolvimento que forçosamente existe entre duas comunidades desta natureza, maugrado as diferentes características que adquiriram num passado com frequentes divergências, é possível haver uma aceitação dessas diferenças, uma vivência e uma apreço mútuo.
Uma das razões de interesse é mesmo haver manifestações culturais variadas que criam o gosto pelo seu intercâmbio. Se não fora os emigrantes quem poderia dar início a este processo? São eles que nas terras de acolhimento ganham gosto pelos seus habitantes e mais gosto sentem em que estes também tomem contacto com a comunidade que os viu nascer.
As geminações podem dar um grande contributo para que os locais compreendam melhor os seus recentes conterrâneos. Afinal há muitas mais afinidades e convergências do que pode parecer à primeira vista entre quem, com mais ou menos atropelos, foi criado a respeitar os mesmos princípios civilizacionais.
Integrado neste espírito, devem ser ultrapassadas as barreiras de certo artificio que sempre existem, desenvolvendo esforços a nível do ensino e da formação para dar a todos as mesmas possibilidades de realização pessoal. Cabe às associações de geminação reforçar pelo intercâmbio juvenil a cooperação prática, no sentido da integração e partilha de valores.
Não haverá pois grandes problemas se as novas gerações foram colocadas em contacto de modo a desenvolverem laços que dêem continuidade ao trabalho desenvolvido pelos seus pais. È importante que se promovam contactos a nível de folclore, da música, do desporto, do artesanato, da gastronomia mas é a sensibilização das famílias para acolher alunos e permitir que os seus filhos tenham períodos de estudo noutras comunidades que pode alicerçar uma geminação que perdure.
Uma forma de defender o nosso património também passa por dar apoio aos nossos emigrantes para que, à medida que vão criando as suas famílias nos países de acolhimento, não vão perdendo os laços que os ligavam à sua terra e antes os alargam à comunidade em que agora se integram. Todos os elos que se possam criar são bons para manter essa ligação e esse amor pela terra mãe.

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Os Heróis versus malfeitores no movimento associativo

A nossa intervenção cívica pode ter um carácter individual ou associativo. Com este último nós cingimo-nos ao âmbito da intervenção que os estatutos da associação em que nos inserimos expressamente determinam.
Numa associação podemos dar tudo por poucos objectivos mas sermos mais eficazes. Individualmente nós podemos fazer uma intervenção mais ampla nos objectivos, menos dirigida, porém possivelmente mais dispersa, menos eficaz.
As associações, se nos podem ajudar a ter uma intervenção mais consistente, impõem-nos várias limitações. Primeiro temos que conciliar a nossa intervenção com a dos outros associados e agir colectivamente o que nem sempre é fácil. Depois dificilmente o seu âmbito e o seu estatuto são coincidentes com aqueles em que e com que gostaríamos de actuar.
Mas há associações de naturezas diversas, exigências diferentes. Umas, com responsabilidades mais viradas para os próprios membros, satisfazem interesses mais particulares e de grupo, outras, mais viradas para a sociedade em geral, satisfazem interesses mais colectivos e gerais.
Eventualmente nós podemos pertencer a mais do que uma associações que se complementam. Em qualquer uma devemos contribuir para que elas não existam só no papel, para que elas exerçam os deveres estatutários que tenham assumido e para que os seus membros participem activamente nas suas decisões e na sua concretização.
Mas todas as associações têm a sua direcção que, com maior ou menor elasticidade, define as tarefas que está na disposição de levar a cabo, dentro dos condicionalismos existentes. E a maioria delas não se abre à participação dos seus associados, fora dos actos eleitorais.
Quando por natureza são associações defensoras dos interesses dos seus membros, às suas direcções é atribuída uma maior responsabilidade porque se as outras fazem o que podem e a mais não são obrigadas, como sói dizer-se, estas são responsáveis por acção e omissão e as tarefas que podem executar são muitas vezes imprescindíveis para os associados.
São associações que muitas vezes constituem a única forma de os seus membros se fazerem ouvir. Portanto deve ser-lhes dada a possibilidade de ter uma intervenção mais directa na formulação das propostas que as direcções devem ter em consideração na sua actividade futura. Assim se deve passar em sindicatos e grémios patronais.
Mas a vontade da generalidade das direcções é que os seus associados se limitem a dar cumprimento às suas orientações sem cuidarem da sua justeza, nem sequer da sua legitimidade. Escudando-se na legitimidade do voto e relegando para futuras eleições a avaliação da sua actuação, só solicitam a participação dos associados para a execução do que a direcção determina.
Mas, se aqui estão em jogo, ou podem estar, interesses próprios cuja cautela é o próprio motivo pelo qual os associados se agrupam, em qualquer altura a intervenção destes é legítima. Se não impuserem a si mesmos uma assídua atenção aos actos directivos, estão a ser ingénuos e a demitir-se da sua função fiscalizadora.
Infelizmente quando as direcções não fomentam, nem são receptivas a um tipo de intervenção mais imediata, esta vai emagrecendo e diluindo e vai mesmo definhando a capacidade de ela mesma se fazer. Os estatutos rapidamente se esquecem, o costume prevalece.
Nas associações mais viradas para interesses colectivos e gerais a participação ainda é menor, por desinteresse de direcções e associados. Quanto menos interesseira ela for, mais protagonismo as direcções alcançam e menos intervenção têm os simples membros.
Com a demissão geral, em todas as associações podemos chegar ao ponto de só termos razões morais do nosso lado para brandirmos contra as direcções que se esquivam de qualquer modo a executar o que achamos deverem ser as suas obrigações. Mas também é com facilidade que concluímos que a direcção é a única culpada de não agir correctamente.
Mas se não nos ficarmos só por aqui, pelas razões morais, ainda poderemos concluir que as pessoas que constituem a direcção de uma associação se desviaram nitidamente de um rumo conforme às suas obrigações estatutárias e então caem no domínio do logro, do embuste. Mas coisa diferente é pormos em causa a honestidade das outras pessoas.
No entanto as associações são, pela sua natureza de organizações de difícil controlo, uma tentação para pessoas de baixo carácter. Não só baixo carácter dos que lá estão mas de muitos dos que entram depois a porem de rastos aqueles que os antecederam. E aqui baixo carácter e ganância não tem só a ver com dinheiro.A fase de mudança de direcção é sempre a mais problemática porque aí vem tudo ao de cima, com a intenção de tornar ilegítimo o que foi legítimo, errado o que foi certo, confuso o que foi linear, nebuloso o que foi claro. È muito difícil reconhecer o bem, quando este existe e às vezes são os maus que passam por heróis.