sexta-feira, 10 de junho de 2011

É realista não abandonar o sonho

A alteração do discurso ocorre sempre por imperativo da realidade. O discurso tenta acompanhar, pretende adequar ou simplesmente justificar as novas realidades nos enquadramentos em que nos movemos, em que vivemos. Quando são necessários novos balizamentos para compreender a realidade emergente dizemos tão-somente que começou novo ciclo ou que o ciclo político tem que acompanhar o ciclo económico. Então impõe-se um discurso novo. Nem sempre um discurso positivo numa situação degradada merece ser apoiado.
A situação de dependência do País em relação ao exterior vinha sendo denunciada há muito pelas pessoas que se não deixavam iludir pela aparente calma do mar em que nós navegamos. Porém tal situação só se tornaria visível aos olhos de muitos na Primavera de 2010. Tornou-se então irreversível o aprofundamento da crise, isto é, adquiriu-se a consciência quase generalizada de que não tínhamos meios para enfrentar tal estado de coisas. Já não era possível esconder o pessimismo.
Hoje temos ainda menos meios, a pressão exterior é maior, já quase se institucionalizou uma situação de dependência quase absoluta de decisões externas. Só é problemático saber o grau dessa dependência. Se a soberania se define pelo facto de o seu grau de abrangência ser imensamente superior ao grau do nosso contributo para ela, então a soberania que transferimos para a Europa deixa-nos a uma distância enorme dos centros de decisão.
Houve uma redução imensa do nosso poder, até mesmo da nossa capacidade de influência sobre os centros de decisão nos quais se baliza o nosso futuro. Viver neste enquadramento é difícil, gerir um País nestas condições é extremamente doloroso, cansativo, inglório mesmo. Não faltará porém gente a querer a vã glória de ter o poder, já só algum do poder que outrora tivemos, mas suficiente para levar a ambicionar e competir pela sua conquista. Sempre temos de agradecer por isso, por haver tanta gente a querer ocupar cargo tão ingrato.
Hoje é fácil demitirmo-nos das nossas poucas responsabilidades. É fácil dizermos que quem criou os problemas que os resolva, pese embora se vá generalizando a convicção que todos contribuímos, em pouco que fosse, para eles. Mas há sempre uns mais responsáveis do que outros e ninguém quer estar na primeira linha porque é lá onde em primeiro lugar chegam os ataques. Há sempre alguma cobardia em quem diz nada ter com isto. E não haverá qualquer dúvida que é necessária alguma valentia para que quem está preparado para tal se propunha assumir essa primeira linha.
Será por via da nossa impotência que descobriremos a gravidade dos problemas que nos afligem. Desde logo porque mais difícil do que pagar a dívida é pagar os juros usurários que nos impuseram. Desde logo porque veremos a discrepância entre algumas das medidas que nos são impostas e os problemas que pretensamente elas visariam resolver. Entregar mais sectores da nossa economia ao capital sem rosto e sem misericórdia é caminhar na via de um suicídio colectivo.
Quando não estamos em condições de poder exigir grandes comiserações, grandes condescendências com a nossa forma simplória de resolver as questões, acabamos por ter de aceitar pacotes que, se trazem muitas medidas acertadas, também incluem bombas a explodir programadamente e de efeito nefasto. Se é verdade que o problema tem muitas vertentes, se há muitas causas a contribuir para o desequilíbrio das finanças do Estado e das contas exteriores, não é menos verdade que a causa principal é o declínio da nossa produção.
Será pela vertente produtiva que a nossa contribuição individual e associativa mais poderá ter um efeito benéfico. Teremos que vencer a nossa apatia com inovação, empreendorismo e com o reforço da nossa disponibilidade para trabalhar em conjunto, facto que não está nos nossos hábitos pela nossa desconfiança e manhosice crónicas. O problema é que o Estado só consegue suavizar as dificuldades que se deparam á entrada, já não tem qualquer intervenção a jusante, na criação de mercados para a nossa eventual produção.
Pede-se também ao Estado que facilite a instalação de investidores estrangeiros. Essa seria mesmo essencial para podermos aumentar a produção. Se muitas pessoas já estão por tudo, não haverá dúvidas que necessitamos de defender a dignidade dos nossos trabalhadores que muitos estarão na disposição de a atingir. Não podemos esquecer que nos dias de hoje o capital não tem rosto. Se há humanidade em muitas empresas, noutras impera o desrespeito mais sórdido e rapace.
Ninguém apoiará quem não for capaz de manifestar alguma capacidade de inverter a actual situação. Muito menos terá apoio quem à partida se manifeste impotente. Todos queremos o realismo, mas não prescindimos de algum sonho. Haverá formas diferentes de sonhar, porém vence sempre a forma mais acessível, digamos mais simples e directa. Não será por este motivo que nos podemos eximir a participar neste sonho de nos vermos livres desta situação ingrata. Será bom para todos que o sonho consiga sobreviver o mais possível sem que se pretenda que é necessário prescindir doutros. para que esse sonho seja possível.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Tenhamos esperança no futuro!

Um assunto incontornável nos dias de hoje é a política e no seu contexto a economia e a finança. Se a toda a hora é necessário assumir decisões definitivas e algumas irreversíveis, estamos num momento particularmente sobrecarregado de decisões importantes. Umas já estão tomadas, tornaram-se inadiáveis antes que fossemos chamados a votar. Agora uns dizem que temos pouco a decidir, outros, em clara minoria, dirão que ainda há muito a decidir, muita responsabilidade que nos cabe a nós suportar sobre os ombros. Assumamo-la!
Há algo de dramático na situação actual. A maioria de nós desconhecia até há pouco a quantidade de soberania que nós já tínhamos transferido para instâncias exteriores, supranacionais, sobre as quais o nosso controle é diminuto, quando muito corresponde à nossa muito pequena dimensão relativa. Em especial desde que aderimos ao Euro perdemos a nossa capacidade de ter uma política cambial que possamos conciliar com o estado da nossa economia. E se a soberania pertence a outros vemo-los a uma distância, com uma sobranceria que nos exaspera e revolta. É uma soberania pouco participada.
Achamo-nos com direito a uma solidariedade que nos não é dada. Se nos emprestam dinheiro é a um juro excessivo. Também os outros países têm de ir ao mercado financiar-se para nos ceder liquidez e ainda por cima querem ter lucro. Parece que esta Europa que está à nossa frente é uma construção amadora, feita ao sabor de interesses mesquinhos e não com a elevação da solidariedade, com o desprendimento dos interesses egoístas e usurários. Somos demasiado pequenos para fazer vencer regras que não sejam o prolongamento da rapina de que há séculos somos vitimas.
Se a constatação das falhas da construção europeia já não é suficiente para arrepiarmos caminhos na fase em que nos encontramos, deve servir para nossa orientação futura, mas não como desresponsabilizante das decisões que ainda somos chamados a tomar. Não podemos começar tudo do nada. O futuro começa já hoje e inevitavelmente vai ter muito do passado. Aliás no passado, em particular no mais próximo, há decerto bastante coisa de bom. Perante a incógnita do futuro temos mesmo que assumir resoluções mais de carácter defensivo do que de carácter construtivo. Porém tal não nos deve coibir de tomarmos parte na definição e implementação de todas as medidas que a governação impõe.
Muitas das estruturas que julgávamos sólidas, mercê da especulação do capital, começaram a derrocar. Porém elas ainda têm muitos defensores e pessoas empenhadas em colmatar as brechas abertas. A extrema-esquerda, que terá sonhado ver o fim do capitalismo a propósito deste gravíssimo percalço, terá perdido já a esperança em que tal aconteça. A extrema-direita que em Portugal está incrustada nos dois partidos da direita tradicional ainda não terá abandonado as suas expectativas de utilizar este percalço como oportunidade para destruir o que resta do sonho socialista.
A perca de soberania para o domínio dos Estados fortes da Europa tem sido aproveitada para nos quererem impor soluções pretensamente consensuais, mas que não são mais do que um descarado favorecimento do capital, do caseiro, mas também por arrastamento do clandestino e apátrida. Já muito nos têm incutido no nosso modo de viver e de nos relacionarmos. Porém a muito mais nos querem obrigar. Neste caso até se pode dizer (sem confusões pela forma de expressão) que existem cá mais papistas que o Papa. Muitos até querem dar à Europa lições da forma como se deve governar à direita.
Há quem diga que a direita tem hoje um líder inexperiente e pouco perspicaz. Porém há quem pense que esta estratégia de lançamento de propostas desgarradas, de balões de ensaio, se enquadra num propósito de testar o estado de espírito da população em geral. Estaremos nós dispostos a pôr em causa praticamente tudo aquilo que se construiu ou faremos uma barragem capaz de suster a saga destruidora das extremas do nosso espectro político? Também é isto que vai estar em causa nas próximas eleições.
Muitos dirão que o que há a defender é pouco e temos a extrema-esquerda, outros dirão que o que existe é demais e pouco sustentável e temos a extrema-direita. Decerto que alguma razão residual poderá ser atribuída a estas posições extremas. Porém não é este tipo de argumentos marginais que devem sobressair no nosso raciocínio quando nos debruçamos sobre este estado de crise em que quase permanentemente caímos. Ainda temos muito a defender e muita margem para corrigir anomalias e alicerçar uma base capaz de assegurar a construção de um futuro mais solidário.
No fundo o grande argumento da direita nacional é a falta de sustentabilidade do actual modelo social. A solução que a direita defende passa por haver um sector social constituído pelos economicamente dependentes, sobre os quais cairia uma regulamentação pormenorizada e limitativa, e por haver um outro sector social constituído pelos economicamente livres, a quem seria dada a faculdade de definirem a sua própria forma de se inserirem na sociedade e de contribuírem para o equilíbrio e coesão social. Regressaríamos aos tempos em que era impossível ascender socialmente.
A direita sempre utilizou os inimigos externos para justificar a sua política de subjugação dos sectores mais fracos da população. Hoje os inimigos externos, chamemos assim por facilidade de linguagem, estão do lado dessa direita. Ou pelo menos a direita nacional utiliza-os como aliados. Para a direita os melhores amigos são aqueles que nos fazem exigências desmesuradas, sem olhar à génese e à evolução dos problemas. A direita fez tudo no últimos anos para que viéssemos a soçobrar às dificuldades trazidas pelas crises internacionais, pelo desregulamento europeu, pela ganância capitalista. Vamos premiar uma direita que bateu palmas ao naufrágio de que fomos vítimas e que foi causado pelos nossos inimigos?

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Calem–se as vozes que morreu um Poeta

Recordo dele o seu riso estridente, o seu sarcasmo penetrante que não feria, antes estremecia com a consciência de quem o ouvia. Não visava agredir, humilhar ou sequer apoquentar quem era o alvo da sua fina ironia. Com a idade e a progressão académica, em que sempre se empenhou, foi burilando essa sua característica que era um hino à vida e que foi sacrificando a uma imagem menos controversa, quiçá mais rica.
O Luís Dantas encarnava de modo quase perfeito a figura do ser solidário, do poeta desinteressado de bens materiais, mas que tinha com a vida uma cumplicidade própria, inimitável e pouco acessível a quem não tenha acompanhado o seu percurso de vida. O seu riso não visava repelir, antes era seu intuito atrair, chamar ao convívio, integrar.
Elevou-se a pulso, sem deixar de viver os aspectos da vida que mais agradam ao ser homem e porque não ao ser homem português. Sem esquecer a irreverência da sua juventude, fazendo-a conviver no seu espírito com a maior ponderação da sua fase mais madura, que aliás cedo começou, o Luís Dantas manteve-se fiel aos traços mais vincados da sua personalidade moldados por um começo difícil e que ele venceu com o seu imenso valor.
Aproveitou os horizontes que essa Lisboa, outrora longínqua, proporciona a quem a quiser descobrir e explorar naquilo que ela tem de mais encantador. Viveu intensamente no meio no qual melhor se integrava, pese embora nas suas curtas arremetidas à Ponte de Lima natal e inesquecível, encontrasse sempre forma de encontrar o enquadramento apropriado à sua vivência singular.
Terá o Luís Dantas morrido como seria seu desejo? Decerto que não quereria avançar tão rapidamente e inesperadamente, mas há algo de poético na sua morte, que remete para outras vivências de poetas para quem a tragédia nunca andou muito longe. Calem-se as vozes que morreu um Poeta.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

A linguagem é um engodo para a juventude

A imagem do nosso pensamento é transmitida seja qual for a forma de nos exprimirmos. Quando somos observadores exteriores tentamos descodificar a expressão para chegarmos ao pensamento mais genuíno porque não temos nada mais adequado para esse efeito. A expressão e o pensamento não são realidades semelhantes. A expressão não consegue corresponder à riqueza do pensamento, à sua complexidade. Mesmo assim não podemos relativizar a gravidade que pode estar na escolha da forma de nos exprimirmos.
A forma de nos exprimirmos tem condicionamentos externos e internos que nos podem levar a escolher ou a ceder a uma forma de expressão diferente daquela que nos seria mais própria. Também temos que reconhecer que haverá casos em que muitas vezes nos exprimimos duma maneira porque não encontramos, não dispomos de outra mais adequada. Neste caso até se pode falar com mais propriedade de uma escolha da forma de expressão.
O ambiente externo local e nacional, o tipo de interlocutores, são sempre tidos em conta quando nos expressamos. Escolhemos a expressão mais adequada aos nossos fins, atendendo ao nosso estado de espírito, seja quando o fazemos para nos entendermos, seja quando o fazemos para marcar a nossa posição. Para um estranho descobrir os fins que nos movem e a verdadeira imagem do nosso pensamento pode ser um esforço inglório e até sem sentido.
Muitas vezes surgem equívocos, mal-entendidos, enganos derivados desta tentativa de adequar o nosso discurso àqueles que nos ouvem ou lêem. Muitos acharão isso depreciativo porque sabem que há diferentes níveis de linguagem e não aceitam que alguém se coloque num nível acima do seu. Porém reconhecer-se-á que há níveis que, pelo menos, têm o ver com a simplicidade e que a linguagem mais simples é aquela que é capaz de ser entendida pelo maior número de pessoas. Haverá conhecimentos que não serão transmissíveis com essa linguagem, mas já o serão com outra de mais elevado nível.
Aqueles que pretendem atingir a audiência mais numerosa são os políticos. Vai daí eles escolhem o nível de linguagem mais capaz de chegar a todo o tipo de pessoas. E estas, mesmo aqueles que seriam capazes de utilizar um registo mais elevado, habituam-se à utilização desse baixo nível de linguagem outrora só usado em conversas mais restritas e a um nível de anedota e de má-língua. O espaço público está hoje pejado de uma terminologia hardcore de que já ninguém se sente envergonhado.
Mesmo certas personagens, outrora sacralizadas, são hoje alvo da mesma fraseologia assassina. Esta despreocupação com o nível de linguagem não é de todo maléfica já que ninguém parece estar excluído de ser o alvo dela e podemos assim apostar em que, ou nos elevamos todos, ou continuamos a vegetar todos nesta imundice verbal. Uma questão que nos deve preocupar é a situação das novas gerações apanhadas no meio deste fogo verboso.
Os velhos, incluindo os partidos dos velhos, têm feitos tentativas de integração dos jovens nas suas estruturas organizativas e linguísticas, o que pode parecer positivo, não tivessem elas um intuito de incutir às novas gerações a sua própria metodologia de pensamento, de promover a assimilação da sua própria linguagem. Os partidos revelam assim uma vontade de se não deixarem ultrapassar e a verdade é que vão conseguindo alguns abandonos desse espírito inovador que se esperaria da juventude.
Estará tudo perdido neste enrascadela que criaram à juventude? Do ensino esperar-se-ia que se preocupasse com a construção verbal de que os jovens devem ser capazes. Estes têm hoje uma liberdade quase absoluta para experimentarem emoções e sensações outrora interditas nas suas idades e também têm a mesma liberdade para os excessos de linguagem. Como se reconhece resolver o problema da linguagem no aspecto intelectual não é o mesmo que o resolver no aspecto emotivo e podemos usar na prática termos a que intelectualmente não aderimos. No entanto a consciência intelectual dá uma boa ajuda no sentido de melhorar a linguagem do dia a dia.
Ninguém usa uma linguagem se não sentir gozo nisso, se não a associar a uma determinada postura emocional. O preferível seria o inverso, que usássemos uma linguagem que antecipadamente passasse pelo crivo intelectual. Porém não será a esta situação que nós atribuímos a importância de ser o nosso maior espaço de liberdade? O preferível também seria que os jovens colocassem nesta questão um esforço especial de aprendizagem. No entanto uma alteração de postura só é possível se o sentido lúdico levar à adopção de uma postura mais comedida com a forma de expressão e a linguagem correspondentes.
A imprudência das gerações anteriores terá arrastado a nova para terrenos pantanosos. Acresce que as pessoas mais velhas se movem num mundo de interesses instalados para o qual também são arrastados os jovens à medida que vão perdendo o seu mundo de expectativas. Os jovens caminham assim dum mundo mais aberto, em que todos cabem e tudo é possível, para um mundo real em que os conflitos são intestinos e cruéis e a linguagem é mais desabrida.
Precisamos dos jovens a colaborar na solução dos problemas actuais, a tratar das feridas que criamos, tendo assim que abandonar algumas das suas expectativas, pois muitas serão hoje irrealistas. Com o pretexto de não alterarem as suas expectativas levaríamos a acabar com o idealismo juvenil ou ao seu descambo para interesses mesquinhos. Porém os jovens não devem perder todas as suas próprias expectativas. Podem cultivar expectativas sãs, não inquinadas pelas nossas perspectivas egoístas. Nesta realidade escorregadia, lamacenta o que pior lhes poderia acontecer seria deslizarem para a linguagem dos velhos.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

O papel dos debates e do voto em democracia

No geral gostamos de um bom debate. Isto é, que contenha os ingredientes que nos entusiasmam, um assunto actual, os chistes apropriados, as respostas prontas. A maior crítica que se lhes faz é só tratarem dos assuntos que já estão na onda e pouco acrescentarem às opiniões dos verdadeiros protagonistas da luta política. Afinal são esses assuntos que a maioria das pessoas anseia por esclarecer, mas pela voz dos referidos protagonistas. Os debates quando estes intervêm são ocasiões únicas, irrepetíveis, mesmo que se juntem os mesmos intervenientes num outro debate subsequente. Com outros são uma sensaboria.
Debates entre segundas figuras pouco acrescentam. Quando os debates se tornam repetitivos, quando se perde a noção do que está em causa e daquilo que não pode estar em causa, aborrecemo-nos e provavelmente desligamo-nos. Afinal os assuntos são limitados e os que protagonizam esses debates são sempre as mesmas pessoas já profissionalizadas nessa função. E o que é pior é que normalmente as opções já estão cristalizadas antes que o debate comece e as que surgem já estão gastas por demais divulgadas na comunicação social.
Além de ser difícil obter um debate inovador, acresce que todo o debate está depressa desactualizado. Se é verdade que os nossos interesses, o nosso futuro, estão todos os dias em jogo, também é verdade que se torna fastidioso andar a malhar todos os dias no mesmo. Pelos visto o mesmo fastio não ataca os participantes, quais tagarelas que nunca enchem o saco, permanentemente prontos a repisar o que está por demais pisado.
Os participantes defendem sempre que há novas decisões merecedores de comentários, fazem sugestões para manter cheia a agenda mediática, recauchutam de novas as velhas recriminações, usam novos termos e novas expressões que algum criativo lhes tenha transmitido nos bastidores. Há sempre uma maneira nova de enroupar um velho discurso. Os profissionais do debate já não nos surpreendem e nesse sentido enfastiam-nos e podem causar-nos mesmo aversão.
A nossa reacção mais benévola é o desconforto. Afinal mesmo sem poder intervir envolvemo-nos emocionalmente, normalmente mais do que devíamos quando em tudo o resto estamos numa situação demasiado passiva. Já é mais grave se sentimos repugnância pelo uso da insídia, da hipocrisia, do descaramento. Já abominamos os sentenciadores, aqueles que estão prenhes de juízos morais e afinal destilam ódio por todos os poros. Muitos não se coíbem de fazer ataques soezes aos interlocutores, muito menos poupam os correligionários destes, em especial os que detém mais poder.
No geral até são mais perigosas as pessoas que navegam na área do poder, sem um lugar definido, simples aspirantes ao poder. Criticam-se os que detém o poder e deixa-se à sua sorte estes “salafrários”. Uns dizem falar por muita gente, mas não têm mandato expresso, outros são mandatados para falar por um partido, mas falam à sua maneira, fazem descer o nível dos debates. No geral quem tem poder efectivo é mais responsável.
No entanto muitos participantes dos debates conseguem ser atractivos para muita gente. Muitos ambicionam ser como eles, ter umas tiradas idênticas, ser capazes daquela verbosidade escorregadia que os caracteriza. Claro que a sua ambição maior seria o poder, mas, já que o não alcançam, dar-se-iam por satisfeitos se atingissem a mesma capacidade oral. A política, por tratar do domínio social mais abrangente, é o campo de eleição para aplicar os ódios de estimação. Para muitos conseguir emergir um pouco no meio e manifestar a sua animosidade é uma grande vitória.
Nós sabemos que o nosso destino se determina noutros fóruns, noutros gabinetes e não em palcos com actores de segunda. Por isso ao ouvir estes, e ao perder algum tempo com eles, estamos tão só a tentar antever o futuro. Eles sempre estarão mais próximos dos tais locais onde o mais importante se decide. O problema são aqueles que, em vez de contribuírem para excomungar profecias malévolas, para desanuviar o ambiente de pessimismo, fazem tudo para enegrecer a nossa vida. Começa-se sempre por pintar tudo de negro para que pareça que esses debates servem para colocar alguma luz.
Nos debates as surpresas são poucas. Novidades daquelas que nos fazem reforçar ou inflectir nos nossos argumentos rareiam. Fazer depender a qualidade da democracia da existência de debates parece uma falácia. Já a ordem social beneficiará bastante com eles. Os participantes nos debates descarregam energias, sublimam outros instintos mais agressivos e nos espectadores o efeito pode ser o mesmo. Claro que o resultado mais imediato não deixa de ser um mau espectáculo, uma lástima para quem pretenderia chegar a um conhecimento mais profundo.
Os debates podem acrescentar razões para justificar atitudes já tomadas anteriormente por razões mais sérias e fundamentadas. Em poucos casos trarão aquilo que falta para se decidir por um dos lados em confronto. O vencedor do espectáculo não arrastará atrás de si multidões subitamente convencidas. O derrotado não fará diminuir o empenho de quem os apoia. Porém como as eleições são muitas vezes decididas por pequenas diferenças, a vitória pode depender daqueles elementos das margens que deixam tudo para a última hora por sentirem o peso de uma decisão difícil.
Este é um grande paradoxo da democracia. Além de o apoio decisivo ser circunstancial, ele não é perdurável para que se cumpra uma legislatura sem grande contestação. Porém este facto também dá a nós mesmos uma enorme importância derivada da nossa obrigação de marcar a nossa posição, seja ela ganhadora ou não. Se, além de eventualmente não votarmos, ainda tivermos a consciência que são os votos mais voláteis que decidem, mais nos sentimos na obrigação de participar na definição da nossa vontade colectiva. Os debates são importantes, mas mais a sua lógica consequência, o voto.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Ainda é possível um governo de esquerda?

O socialismo pode não estar na onda, mas mantém-se uma forte corrente de opinião. Uma parte significativa do eleitorado apoia-a, uma parcela ainda expressiva defende-a. No entanto, se virmos a questão somente pelo prisma da ocupação do poder, é inglória esta luta de pôr e repor o socialismo na onda quando se vê que há vendavais que põem tudo em questão e levam quase tudo por água abaixo. Quase tudo, porque alguma coisa fica e se vai acumulando como património que já não dispensamos. Infelizmente até pessoas ditas socialista põe em cauda o exercício do poder socialista Não haverá fortes raízes no terreno que perdurem, uma linha de pensamento esclarecido que se transmita, haverá muita desilusão, mas as alternativas são piores.
Iludimo-nos com a tempestade que assolou o capitalismo nos últimos três anos. As primeiras borrascas desacreditaram o sistema, este tremeu. Subitamente o dinheiro pelava nas mãos de quem o detinha. No entanto os que saíram imunes deste afundanço redobraram energias e tudo fazem para rentabilizar ainda mais as suas economias. O capitalismo parece ter recuperado o domínio do mundo com juros a pagar por quem ousou pô-lo em causa. Por seu lado o socialismo não soube aproveitar esta desavergonhada rapina e está a ser vítima disso.
Se quiséssemos aferir da vitalidade do socialismo chegávamos a conclusões contraditórias conforme os países analisados. Ondas de esquerda varrem territórios há pouco tempo indefectivelmente de direita. Noutros lados, infelizmente na maioria dos casos, ocorre o contrário. Estaremos nós sujeitos a este saltitar ao sabor da onda, sem um objectivo que não seja somente defensivo, firmando-nos apenas na força de uma corrente de opinião que ora é maioritária e logo minoritária?
Ao nos deixarmos arrastar pela procura de soluções pontuais ou mesmo pela busca do aproveitamento de oportunidades que a direita vai proporcionando pela sua ineficiência, a esquerda descura o aspecto ideológico e age mesmo, por força das circunstâncias, em contradição com princípios que diz advogar. Falta à esquerda uma linha de pensamento capaz de se demarcar do caduco marxismo e de fazer frente ao radicalismo dito de esquerda e ao liberalismo dito ”neo”, mas que não é mais que o refinamento do velho capitalismo de sempre.
Não é suficiente à esquerda haver uma corrente de opinião favorável aos governos socialistas, haver capacidade para promover ou pelo menos aproveitar ondas favoráveis a esses governos. Além de não haver uma clara noção do objectivo mais importante a atingir, não há uma linha de rumo que permita ponderar os desvios sofridos e os avanços alcançados. Terminada a época dos muros, das barreiras dentro das quais se construía uma fortaleza, afinal expugnável, o combate é agora frontal. A esquerda monolítica, irredutível em posições já ultrapassadas, tem que repensar estratégias. Mas também a esquerda tem que ser capaz de se orientar no meio da confusão que se lança entre projectos pessoais e políticos.
Terminada a época em que se lutava para que o Estado garantisse tudo a todos, é tempo de resistir à sedução do dinheiro e ao seu carácter corruptivo porque vamos ter que continuar a lidar com ele até ao fim dos tempos. A esquerda já não pode apostar no Estado como distribuidor dos bens e recursos, mas com a função essencial de criar e fazer cumprir as regras que permitam o acesso de todos ao maior número de benefícios. É imperioso garantir a todos alguma fonte de rendimentos, sendo que só o trabalho faz acrescer valor a tudo que existe, inclusive ao dinheiro. O Estado não pode repartir dinheiro a troco de nada.
Já hoje, mercê do avanço científico e tecnológico, não é possível garantir trabalho a todos. Com o aumento da produtividade e uma aparente abundância de alguns bens, inclusive de trabalhadores, o trabalho é cada vez mais desvalorizado a nível de retribuição. Neste contexto o papel da esquerda é a defesa dos trabalhadores e do Estado do saque a que estão sujeitos por aqueles que detém o poder que a posse dos meios de produção confere. Essa defesa também passa pela defesa do dinheiro sujeito a depreciação devido às actividades especulativas. Porém não é possível separar o dinheiro bom, bem aplicado, do mau, mal aplicado.
À esquerda já se impõe entretanto uma nova tarefa derivada dos conflitos entre trabalhadores Efectivamente já existe, e tenderá a existir cada vez mais, uma competição entre trabalhadores com a criação de feudos em que a especialização favorece certos grupos profissionais. A distinção entre trabalhadores é cada vez maior e, se hoje ainda só leva a invejas mal disfarçadas, levará no futuro a conflitos abertos e bem mais graves. A esquerda já não pode definir o seu espaço à velha maneira da luta de classes. A linha de separação está cada vez mais diluída.
Se em tempos o leque de rendimentos do trabalho era no máximo de um para três, hoje já quintuplicou e tem tendência para se agravar, criando assim uma desigualdade social insustentável. A esquerda tem que se manifestar sobre se quer uma sociedade assente de novo em classes sociais rebaptizadas ou se quer cumprir a sua disposição mais elementar de combater a diferenciação social. A certeza de que a maioria de nós terá que ser empregada de alguém ou do Estado deve impor um tratamento igual para todos.
Impõe-se a refundação do pensamento de esquerda em que não caibam oportunismos e facilitismos. O Estado não pode ser sobrevalorizado, mas também não pode ser descurado o seu papel na condução da sociedade. Também não é de maneira alguma a simples criação teórica de igualdades como a de oportunidades, também cada vez mais posta em causa, que chega de programa de esquerda. Sem apostar em igualdade inatingíveis pode apostar-se em equilíbrios felizes. Só a formação de uma corrente de pensamento articulado e consistente pode ajudar a que se defina um caminho, um objectivo, uma força perdurável a que a humanidade possa recorrer mesmo em tempos tão instáveis como os de hoje.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

É isto que eu não quero!

Estes tempos de exacerbada turbulência política são caracterizados por um mau uso da língua portuguesa que corrompe cérebros, uns atrás dos outros. Os problemas são sempre colocados na mesma forma simplista. Passa-se por cima das verdadeiras causas como gato sobre brasas. Vai-se imediatamente para as conclusões que, regra geral, se reduzem a um ataque com o máximo de agressividade verbal ao outro contendor político. Em vez de argumentos aduzem-se uns tantos termos de conteúdo abstracto como verdade, coerência, frontalidade, lealdade em contraponto com mentira, inconstância, hipocrisia, traição. Tudo conceitos distorcidos e fora de contexto com que se pretende uma pretensa elevação do discurso.
Usam-se termos que por si representam uma grande agressividade mas também se empregam alguns mais subtis que agridem mais que outros já muito gastos. Mas a agressividade também tem a ver com a construção verbal, com a forma como nos expressarmos. Até usando as mesmas palavras é possível construir frases distintas. Contam a ordem das palavras, a entoação e a veemência que lhes damos especialmente se usamos o modo oral, mas que são aspectos também transmissíveis na expressão escrita. Além disso pode tornar-se acintosa uma forma de dizer mais branda quando a repetimos até à exaustão. Uma das estratégias do combate político é conseguir o máximo possível de repetidores.
A forma faz parte integrante da agressividade. Por exemplo as expressões “Não é isto que eu quero” e “É isto que eu não quero”, aparentemente iguais, pressupõem uma continuidade do discurso diferente e, mesmo que o discurso acabe aqui, pressupõem significados diferentes. Se as usarmos na política optaremos decerto a segunda frase por mais gravosa. Efectivamente quando eu digo “É isto que eu não quero” estou a ser peremptório, a afirmar expressamente que “isto”, seja o que for de que se trate, é coisa que está fora do meu pensamento aceitar, comprar, sujeitar-me a. As hipóteses podem ser muitas, mas aquela que passa por aceitar “isto” está colocada fora de questão.
Já se eu disser “Não é isto que eu quero” não sou suficientemente veemente, não afasto em absoluto a aceitação “disto”. Só digo que, não sendo “isto” que coloco como primeira escolha, pode vir a ser a opção viável e aceitável. Pois com este sentido de tolerância e versatilidade nunca seria adoptada no nosso discurso político. Quem a usasse neste sentido seria tido por titubeante, cheio de incertezas, quando não de receio ou medo. No nosso discurso de homens decididos e cheios de certezas, não entram frases tão pouco assertivas. Temos que ser duros, agressivos, impiedosos. O “não” tem que estar bem junto ao “quero” para que seja clara a sua anulação. O “não” é em política o termo mais usado.
Além do curto-circuito argumentativo esta construção verbal visa os mesmos objectivos. Escolhem-se as expressões mais fortes, mais contundentes, pelo que hoje já se não conversa com quem tenha ideias diferentes. A palavra está hoje prenhe de ódio, por mais doces que nos mostremos. Estamos repletos de esquemas mentais perversos que transportam tudo para a zona negra do nosso espírito. O apelo a valores abstractos, o acinte posto nas palavras, a repetição são a parte mais visível do mau uso das possibilidades da linguagem. Mas afinal cada qual só responde como pode porque a não resposta é a morte imediata.
Há preguiça em quem aceita estes esquemas, há astúcia em quem os constrói. Muitos são esquemas anacrónicos, foram incutidos no nosso pensamento pelo salazarismo. São de fácil reprodução. Transmitem-se de geração para geração. Os radicais propuseram lavagens ao cérebro e todas falharam. Limparam-se os dados, mas não se limpou o modo de pensar. A assimilação dos esquemas mentais já testados é mais imediata. Não se construíram os instrumentos intelectuais que possibilitariam outra forma de pensar.
Não nos devemos conformar, mas a realidade é que o pensamento dominante é o pensar “pequeno”. Somos dominados pelas expectativas e pelos interesses e, para este efeito, até é irrelevante distinguirmos entre estas duas categorias mentais. Para simplificar referimo-nos normalmente a interesses como aqueles factores que condicionam o nosso comportamento. È na convenção do respeito pelos interesses de todos que assenta a democracia. Quem não respeita esta convenção que tem como consequência o facto de um homem valer um voto, também está pronta a patrocinar as tais lavagens ao cérebro e a fracassar.
Porém aceitar a defesa dos interesses de todos não é aceitar a forma de pensar dominante. Felizmente que é cada vez menor a fobia em relação a quem pensa diferente. Há uns tempos quem pensasse diferente era logo acusado de pretender pôr em causa os interesses alheios. Se as expectativas e interesses pessoais, grupais ou de qualquer ordem menor do que a comunidade no seu todo, podem ser postos em cheque pela alteração da forma de pensar, o objectivo principal é levar as pessoas a aceitar ver para além do seu mundo restrito e possam contribuir para a formação de uma nova e solidária vontade colectiva.
Em parte os políticos são vítimas do imediatismo, da necessidade de ter respostas prontas para adversários contumazes. No entanto não é caso para serem desculpabilizados. Nem nos devemos iludir por aqueles que aparecem com discursos aparentemente limpos e que chamam a atenção para o pensamento mais titubeante doutros. A destreza no discurso político pode ser importante mas não é decisiva. O mais importante é o interesse em jogo, a compatibilidade entre os nossos próprios valores, os que são embandeirados pelos políticos e aqueles que na verdade estão por detrás da sua actuação

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Uma alternativa que se esvaneceu

Em determinados momentos históricos surgiu uma ideia benévola de que tudo devíamos fazer para que o Partido Comunista (PC) evoluísse e abandonasse o estalinismo ou em alternativa se criasse um partido novo capaz de ser o depositário daquele repositório de bons princípios que ainda há quem julgue que o marxismo poderá ser. O PC sempre se riu desses propósitos, mas sempre levou a sério os opositores internos e externos da sua direcção. Sempre manteve os seus oponentes à distância, conseguindo o controle do aparelho e da ideologia. Porém as munições usadas para atacar os velhos partidos e grupos radicais que tentaram ocupar o seu lugar já não têm sido tão eficazes contra o Bloco de Esquerda (BE). A ideia de muitos que procuraram uma alternativa ao PC passava pela sua própria mudança ou pela ocupação do seu lugar, tornando esse lugar mais radical e menos conciliador com os preceitos democráticos. Tal ideia sempre foi partilhada por muitos dos dirigentes actuais do BE que passaram a sua juventude no próprio PC ou em grupos concorrentes que o PC apelidava de grupelhos por não seguirem a ortodoxia soviética. Perante a forte resistência do PC eles cederam. Mesmo acabado o País dos Sovietes o PC aguentou a sua própria ortodoxia, sem grandes referentes externos, mas paradoxalmente tal facto também retirou aos opositores muitos dos argumentos que usavam. Diferente da ideia desses dirigentes era o pensamento do eleitorado. Permaneceu neste a ideia benévola de um partido de esquerda, verdadeiramente socialista. Porém numa atitude suicida o Bloco está cada vez mais longe desse objectivo e quer-se parecer cada vez mais com o PC. O radicalismo do Bloco, a sua política de terra queimada, a tenacidade com que pretende obter o apoio duma classe média egoísta, com a sua pretensa elevação intelectual, já não corresponde ao perfil de um partido não sectário, capaz de contribuir para que, no quadro de uma esquerda não monolítica, vençam as ideias mais inovadoras e solidárias. O Bloco distancia-se cada vez mais do humanismo e cada vez menos do PC. Desencadeou-se uma guerra permanente e uma constante manifestação das diferenças, com o uso de uma linguagem depreciativa e mesmo ofensiva em relação a quem não comungue das suas ideias terroristas. Seguiu-se a prática habitual dos partidos ditos mais à esquerda destinada a manter inviolável o seu espaço político. Porém, à medida que os discursos se aproximam entre o Bloco e o PC, vai-se verificando que a sua convergência faz com que o seu peso total diminua, necessariamente à custa do elemento mais fraco, o Bloco. Confirmam-se os receios de absorção que sempre existiram ao tentar criar uma alternativa não alinhada entre a esquerda monolítica e a esquerda reformista. Muitos recordarão que em política quando se mete uma ideia na gaveta, nunca de lá sairá pelas mesmas mãos. A ideia de um partido “verdadeiramente socialista”, dum partido devidamente estruturado para não ceder ao radicalismo, mas igualmente estruturado para não colocar o socialismo na gaveta mantém-se no imaginário social. O PS desiludiu, o Bloco só iludiu incautos. Continua a existir um lugar vago, sente-se ainda a necessidade dum partido bem definido à esquerda. Esse lugar só pode ser aquele que está a ser indevidamente ocupado pelo Bloco. Este partido ocupou temporariamente no imaginário popular aquele lugar ideal, mas enquistou-se e bloqueou as hipóteses de um governo à esquerda. O Bloco é mesmo uma rocha pesada e sem alma. À medida que cresceu, este BE mais se tem tornado um partido truculento, sempre pronto a adoptar como suas todas as lutas, sempre dispostos a não deixar ao PC a iniciativa em termos de contestação e oposição. O BE só não consegue roubar ao PC os métodos, a ideologia tornou-se supletiva ou mesmo dispensável, só em termos de radicalidade se nota alguma diferença. No entanto a originalidade inicial do BE foi-se diluindo perante a agressividade com que se tem disposto a lutar pelo lugar do PC no panorama político. O BE cedeu ao tacticismo, ou praticismo imediatista, de curto prazo. Como pode um partido de esquerda deixar-se envolver na mesma luta política da direita, utilizar os mesmos sentimentos da direita, defender os mesmos estratos sociais, utilizando os mesmos argumentos economicistas? Não se vêem ideias sobre a forma de construir uma alternativa a uma forma de governar típica da direita. Vemos dois partidos, o PC e o BE, que se combatem pelo mesmo espaço político, não se distinguem diferenças nos seus propósitos, têm linguagens similares, caminham para o mesmo modelo de centralismo organizativo. O que os distingue é a sua implantação, tanto a nível de imaginário popular, como a nível de organizações sociais, em particular no sindicalismo. Neste aspecto o Bloco não é alternativa ao PC, nem ajuda a criar uma alternativa à direita. O facto do BE ser um partido novo, sem uma passado pelo qual se responsabilize, mas também sem passado que o credibilize, parece levá-lo a querer disputar a respeitabilidade alheia sem curar de fazer o seu próprio percurso. O BE nasceu da diferença e deixou-se arrastar pela similitude de discurso. Um dos motivos desta colagem é não ter, nem de perto nem de longe, a mesma capacidade mobilizadora do PC. O Bloco não lançou ancoras para o futuro. As poucas iniciativas nesse sentido não são suficientes para abrir um percurso alternativo, para cimentar um conjunto de ideias próprias, para constituir uma alternativa mesmo que contra o PS, mas mais apelativa do que o velho comunismo. A simpatia com que algum eleitorado viu o BE derivava do surgimento de uma esquerda sem as maleitas, os vícios e trejeitos de uma esquerda facciosa e rancorosa, que não desculpava as ideias alheias. Não se via no BE um concorrente directo ao PC a utilizar as mesmas armas e as mesmas pessoas. Via-se no BE uma esquerda sem mácula, sem utilizar as velhas ideias da inveja e do ódio sociais. Esperava-se um partido construtivo. No entanto os genes dessas ideias velhas e corrosivas estava lá, no seu núcleo duro, nos fantasmas do passado, reminiscências reavivadas de lutas ultrapassadas, fora do tempo. Afinal a alternativa secou. Esta alternativa era falaciosa, só nos resta a esquerda reformista.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Ideias, ondas, correntes

Sempre se deu um grande importância a ter ideias. Conseguir ter ideias originais nunca foi fácil. Porém tudo mudou nas últimas décadas. As ideias circulam agora por aí em todos os meios possíveis e imaginários e à distância de uma mão. Repentinamente ideias já velhas são enroupadas doutro modo e já parecem nascidas há pouco. A comunicabilidade aumentou exponencialmente. Hoje é tão fácil obter uma ideia como encontrar e meter no carrinho o objecto que se procura num supermercado numa qualquer esquina perto de si. Os meios de comunicação já não se preocupam em dar notícias, mas sim em espalhar ideias. As notícias também utilizam ideias, como é evidente, mas estas não são usadas com imparcialidade de modo a que nos transmitam uma imagem real. Há hoje um modo de descrever factos que tende sempre para o reforço de uma ideia pré-existente, o que não revela qualquer criatividade. Colocam-se na notícia ideias que circulam por aí, venham ou não a propósito, e dá-se assim uma interpretação e uma justificação dos factos que dispensam qualquer esforço intelectual adicional. O que interessa é ter umas ideias para despejar à mesa do café, da secretária ou nos encontros fortuitos que se nos deparam. Atrevemo-nos a pesar ideias só porque elas aparecem referidas na notícia. Atrevemo-nos a determinar o seu valor sem que no nosso mapeamento mental existam as noções básicas que enformam o problema em questão. Temos direito a pronunciarmo-nos sobre tudo aquilo que nos diz respeito é verdade. Não temos tempo para tirar todos os cursos do mundo que, teoricamente, nos possam habilitar a ter um pronunciamento acertado e assertivo sobre qualquer assunto que nos diga respeito. Mesmo com o perigo de errarmos, mesmo utilizando apenas as tais ideias que por aí se difundem, temos todo o direito de nos pronunciarmos. Essa forma de agir até tem uma vantagem. A realidade muda, novos acontecimentos ocorrem, novas opiniões se formam e desse modo estamos sempre prontos a recolher novas ideias sem curar de saber da sua compatibilidade com aquelas que antes tínhamos. Dispensamo-nos de qualquer esforço intelectual de elaboração dum discurso próprio e de assimilação coerente dessas ideias. Assim nunca chegamos a definir conceitos que nos possam ajudar a compreender a realidade e quaisquer ideias anteriores são facilmente descartáveis. Se necessário recorremos ao velho truque do “enganaram-nos”. Tal justifica o deitar fora todas as ideias que tínhamos coladas no nosso mapa mental para fazer parte do nosso argumentário do dia-a-dia e recolher aí outras. Hoje todo o candidato a manipulador e demagogo sabe que assim é e tenta utilizar os meios técnicos disponíveis para difundir as “suas” ideias. Estar em maioria nos orgãos de informação, conseguir dominar a agenda política, isto é, colocar lá os assuntos mais favoráveis e a sua visão mesmo que distorcida deles, ter os repetidores bastantes para levar as suas ideias a todos as camadas sociais, é o grande passo para aquela difusão de ideias elaboradas à medida. Para este efeito há regras próprias, porque o discurso não é imutável, é necessário começar de um modo e ir abrindo espaço à introdução daquelas ideias mais duras que realmente interessam à agenda escondida. Não interessam minimamente que as ideias sejam esclarecedoras, interessa sim que sejam colocadas num enquadramento sugestivo, de modo a encadeá-las, se possível, com outras já antes difundidas. A manipulação tem a ver com a lenta reorientação do sentido dessas ideias, com o seu lento reenquadramento, com uma subtil introdução num contexto adequado. A este fenómeno de uma sucessão de ideias concordantes e concomitantes designa-se por onda. Nós, os que nos submetemos às ondas, já não conseguimos ter o domínio total do nosso mapeamento mental. Do mesmo modo quem formou a onda e quem contribui para ela perde muitas vezes a capacidade de a reverter ou redireccionar. Normalmente só um embate brusco da realidade consegue destruir uma onda bem montada. Numa onda os conceitos adquirem uma configuração própria, no extremo a verdade pode ser a mentira. Desmontar a onda por via intelectual pode ser um esforço inglório porque implica um trabalho longo de análise de conceitos, da sua articulação, um desmontar da dinâmica social que lhe está subjacente. Montar uma onda contrária, capaz de vir a suplantar a que prevalecia anteriormente pode também não garantir o sucesso. Normalmente é a ocorrência de factos anómalos, imprevistos e negados por quem alimenta a onda em voga que pode levar a um revigoramento súbito de uma outra onda até aí inerte que pode inverter a relação de forças. Uma pequena onda que se forma em tempos mais desfavoráveis em oposição a uma outra maior tem possibilidades de marcar presença quando as condições se tornarem melhores. Quando tal não acontece, quando não aparece uma onda pronta a substituir a anterior, dizemos que ocorre o vazio. Como até quem beneficia com a grande onda dominante tem horror ao vazio incentiva sempre o nascimento de algum movimento de ideias contrário, alguma onda alternativa. No entanto não são as ondas que nos deviam interessar, mas sim as correntes de opinião e de pensamento necessárias para que uma comunidade projecte o seu futuro. As ondas são fenómenos passageiros, pouco estruturados e degenerativos. As correntes de opinião são fenómenos mais sólidos a que as pessoas se sentem vinculadas, em que as ideias têm um sentido preciso, que criam elos sociais. As correntes de pensamento são fenómenos mais vastos que permitem uma linha prolongada de actuação. Certas correntes podem-se tornar a prazo travões por desactualizadas, outras vezes remetem para aventureirismos despropositados. No entanto são as correntes de pensamento que permitem que se lute por ideais bem estruturados. Sem essa linha de actuação que possibilite o esforço colectivo não há progresso humano. A ansiedade actual deriva de estarmos sujeitos ao efeito das ondas e a não haver fortes correntes de pensamento.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

O que podemos esperar da educação?

A educação mais antiga de que temos algum conhecimento, se de educação a podemos apelidar, passava por nos convencermos que nem todos tínhamos o direito de exercer todos os nossos instintos. Cada grupo da hierarquia social tinha os seus direitos, alguns partilhados com outros grupos, mas também alguns que lhe eram outorgados com certa exclusividade. A educação servia o poder e à sua consolidação. Os Estados com alguma estrutura preocupavam-se com a educação dum número restrito dos seus habitantes e os outros ficavam limitados à educação religiosa, mais preocupada com deveres do que com direitos e a sua partilha. A educação moderna também se não preocupou directamente com a partilha de direitos, somente se ocupou da sublimação daqueles instintos por parte de sectores mais vastos ou da generalidade da população como forma de atenuar a conflitualidade social. Partindo do princípio de que o homem é intrinsecamente mau, o progresso basear-se-ia em substituir os piores instintos, os mais agressivos, por instintos cada vez mais moderados. As reacções ofensivas teriam assim uma forma de controlo da sua intensidade. Dessa forma, sempre que houvessem conflitos, eles seriam resolvidos a um nível de agressividade mais reduzida. A educação moderna é um esforço intelectual meritório que o poder nem sempre acompanhou. Em especial no século vinte surgiram mesmo regimes totalitários que promoveram uma acção inversa de partilha de instintos agressivos, confiantes em que seriam capazes de os satisfazer e de consolidar por essa via o seu poder. Felizmente os regimes totalitários foram derrotados, tanto na Alemanha como na Rússia. A modernidade foi entretanto fazendo o seu caminho em países como a Inglaterra e a França, cuja base cultural, embora com muito custo, foi sendo suficiente para suster as tentativas regressivas. Em várias épocas da história se pode falar de um tipo de educação moderna que soçobrou perante o reavivar de fundamentalismos ancestrais, muitas vezes trazidos por invasores ou imigrantes que acabaram glorificados. Com base nessas experiências históricas os teóricos de direita defendem que a educação de tipo moderno traz atrás de si inevitavelmente a decadência. Na realidade essas experiências provam que a nível global temos de estar preparados para nos defendermos dos perigos que possam ocorrer e a sublimação dos instintos, que por essa razão existem, nem sempre é a melhor solução. Mas se cedermos aos instintos na sua forma primária estaremos a pôr em perigo os sistemas de valores que o homem foi construindo. A maioria dos Estados faz hoje sérias tentativas para conciliar a necessidade de defesa com a manutenção de direitos já quase dados por adquiridos, como a eliminação da violência nas relações sociais. Porém a dificuldade dessa conciliação, mais a dificuldade de identificar com precisão todos os perigos que podem ocorrer, criam nos Estados mais débeis a impressão de que está em causa a sua sobrevivência e a própria estabilidade social. Esta questão leva a direita a pôr em causa a continuação da educação moderna sustentada naquele princípio de sublimação dos instintos, o que criaria um homem fraco. Não seremos nós capazes de, por via intelectual, com a compreensão da natureza e modo de actuação dos nossos instintos, tratar directamente deles, sem necessidade da sua sublimação? Não podemos nós ter o domínio absoluto de nós mesmos e podermos utilizar as armas ancestrais de que dispomos por via daqueles instintos quando houver necessidade disso? Decerto que é um caminho difícil, mas capaz de levar a um novo tipo de educação a que podemos chamar de pós-moderna. Tratar-se-ia de alterar o imperativo de dar satisfação a um instinto sublimado por uma de duas vias possíveis. Uma via longa de conseguir o domínio absoluto sobre o surgimento dos instintos, na linha de uma mudança radical do homem. Haveria por essa via uma eliminação de um certo tipo de reacções de que somos portadores por terem assumido um carácter genético. Uma via mais curta e mais viável de tornar selectiva a resposta ao despoletar dum instinto. Uma inibição de natureza intelectual exercer-se-ia sobre a própria resposta, o que teria a vantagem de permitir que o processo inverso pudesse ser adoptado no caso de necessidade absoluta. Durante a nossa longa evolução fomos capazes de ir retardando as nossas respostas instintivas. O espírito de sobrevivência que nos levou a adoptar procedimentos rápidos em situações graves ter-nos-ia levado à sua ponderação até limites razoáveis. Porque não seremos capazes de uma inibição absoluta? Efectivamente em princípio fomos levados a adoptar, gravar e a despoletar de uma forma automática alguns procedimentos rápidos essenciais à nossa defesa e sobrevivência. A organização social impôs-nos restrições a esta forma de agir através da competição, da luta e da subjugação. A melhoria da organização social levou-nos a uma avaliação mais consciente dos pós e contras dessas atitudes espontâneas e à supressão prática de atitudes automáticas, pelo menos por parte dos que estão inibidos de exercer o poder. Este modo de agir baseia-se no princípio de que é necessário o apoio de alguma forma de coacção para levar à assumpção de uma qualquer forma de avaliação “consciente”. Assim, dissimulada embora a coacção, a sociedade vai incutindo na sua juventude uma ponderação atempada, o que não evita outras coacções pela vida fora. Nem todos aceitam participar numa sublimação de instintos agressivos, alguns até os cultivam. Não estaremos já suficientemente evoluídos a nível de capacidades intelectuais para substituir todos os processos mais ou menos coercivos e agir numa liberdade que assente na ponderação adequada num tempo de resposta que a situação justifique? Hoje a situação social é esquizofrénica. Homens teoricamente preparados para adoptar e agir segundo princípios de uma educação pós-moderna fazem tudo para manipular outros homens, a maioria dos quais é decerto prisioneira dos seus pequenos circuitos comportamentais que não conhecem paragem ou retrocesso por via dos processos intelectuais de que estão imbuídos. Toda a educação só é efectivamente eficaz se for suficientemente abrangente para não permitir movimentos contrários ao progresso da humanidade.

sexta-feira, 25 de março de 2011

O que esperar da juventude?

Quando a juventude que resultou do Baby Boom do pós-guerra, que viria a ser estudante nos anos 60, se começou a manifestar no México, em Paris, um pouco por todo o lado, as gerações anteriores temeram o pior. A violência era natural, fazia parte do material genético, psicológico, familiar, social e político. Esta geração não tinha achado outra forma de se exprimir. A violência era temida, mas também apelativa. Tudo estava bloqueado por temores antigos, mas não faltavam ideias simples, altruístas, temas fracturantes para incorporar nessa rebeldia pronta a estilhaçar barreiras. Fazer alterar coisas muito simples como a sexualidade foi para essa geração um objectivo grandioso que justificava grandes meios.
Essa juventude manifestou-se com alguma violência. E dessa forma conseguiu colocar na agenda política muitas questões até então interditas. Na sequência dessa movimentação social viria mesmo a dar-se uma alteração significativa do modus vivendi. A sociedade viria a incorporar muitas das reivindicações então colocadas. No entanto a desigualdade económica agravou-se, só não foi levada a sério enquanto as melhorias iam chegando para todos. Os problemas financeiros vieram terminar com este estado de letargia. Novas questões ajudaram a criar um clima de insegurança que esta geração pensava já ter ultrapassado.
Esta geração, uniformemente apelidada de geração de Maio/68, está, passados mais de quarenta anos, na sua fase mais madura. Já não é capaz de colocar as questões com o mesmo idealismo da sua juventude. Quando na generalidade já tem no seu curriculum vivências que garantem que os seus objectivos de vida foram em grande parte realizados, esta geração sente-se cansada e paradoxalmente insatisfeita. Mas, se a insatisfação que a geração de 60 transporta remete para a fadiga, remete também para a incapacidade de lidar intelectualmente com instintos sublimados. A geração de 60 nunca levou a violência a estados de excesso.
Paradoxalmente esta geração de 60 está possuída duma verborreia inenarrável. Foi capaz de saber aquilo que faltava à anterior, mas agora não é capaz de deixar uma herança que livre os seus filhos das inquietações que julgava extintas. Terá enfim constatado que a sua contribuição enquanto geração para o progresso da humanidade não foi suficientemente significativa. Fez progressos grandiosos, mas que, como qualquer construção humana, ameaçam ruir. Tornou-se irritável e insegura com a responsabilidade do poder. O risco de atingir a senilidade sem deixar uma herança sólida tornou-se uma obsessão para muitos.
Os progenitores desta geração de 60 temeram a sua irreverência, mas cedo ela foi capaz de ganhar respeitabilidade em detrimento da autoridade que até aí prevalecia. A geração de 60 era portadora de ideias novas, de novos paradigmas que afrontavam velhas ideias, esquemas ancilosados. Se a geração de 60 pôs em causa o poder, rapidamente se apercebeu que necessitava dele para implementar essas novas ideias e instituir paradigmas mais estruturantes. Hoje não sabe que fazer com o poder que detém. Como foi possível perder assim a sensatez quando dizem que a idade a traria?
A geração de 60 chegou ao século XXI sem incutir nos seus filhos aquele temor reverencial com que ela via os seus ascendentes. As ideias que enformam a actual juventude são já bastante diferentes daquelas que eram vulgares então. Surpreendentemente é a geração mais velha a querer que a geração mais nova tenha um impulso semelhante ao dela para avançar com ideias e paradigmas sobre os quais se pudesse construir o futuro para as próximas décadas, como em certa medida eles construíram o seu nas décadas passadas. As suas próprias ideias estão esgotadas. Os seus paradigmas estilhaçaram-se.
A geração de 60 foi capaz de avançar contra a família e a sociedade de forma frontal, sem subterfúgios. Abriu numa mentalidade arcaica e inconsistente uma abertura promissora. Quase acabou com os problemas de mentalidade, tornou todos livres, estabeleceu um padrão de modernidade que se difundiu largamente. Porém não terá resolvido muitas das questões então colocadas, principalmente aquelas que sempre foram tidas por cruciais para resolver o problema humano e social. Efectivamente mantém-se por resolver o problema do dinheiro e de tudo o que lhe está correlacionado.
Chegamos a um tempo em que tudo se parece resumir à economia, tema que a geração actual vê com displicência. A desigualdade, sendo maior, não é vivida de forma tão afrontosa como o era em tempos idos. O discurso da geração de 60 era integracionista e referia aquilo que era calado, silenciado e condenado. A geração actual tem dificuldade em formular um discurso assim porque a sociedade já não assume ser segregacionista e ter temas tabus. Falta à actual geração um discurso mínimo para uma situação complexa em que convergem dados, opiniões de origem variada, mas baseadas nos mesmos esquemas mentais
A geração de 60 juntava-se na rua, discutia na rua, agia na rua. A rua era para ela vital, como o espaço em que fazia sentido ter liberdade. Na rua colhia ideias e daí se partia para casa, para os grupos, para a sociedade. A actual geração descobre a rua, só que esta já mudou de natureza. A rua é agora a antecâmara de um estúdio de televisão, um espaço que incute algum receio e para o qual todos se preparam nessa perspectiva. A actual geração distraída em casa, no bar, na festa, parece querer voltar à rua. Porém, querendo ter um discurso novo, esbarra na hipocrisia, no cinismo, na mistificação que campeiam no discurso público, dominado pela transfigurada geração de 60. Não se é rebelde em casa. A actual juventude quer ser rebelde, mas encontra a rua dominada pela verborreia ordinária dos mais velhos.

sexta-feira, 18 de março de 2011

A pirâmide que todos temos que subir

A pirâmide social é um facto, um dado sociológico, uma inevitabilidade que toma a forma de lei que se aplica a todos os organismos hierarquizados. Uma pirâmide pode ser mais chata ou mais aguçada, mas nos dois casos, quando o é exageradamente, é porque a realidade que ela representa enferma de alguma deficiência. Pois quando toma a forma de lei, de modelo a seguir, a pirâmide é a forma ideal para cada grupo particular de casos.
Uma pirâmide demasiado chata representa um organismo pouco funcional em que há demasiados iguais a cada nível e uma concentração exagerada de poder de decisão em grupos inorgânicos. Uma pirâmide demasiado aguçada representa um organismo em que o poder de decisão está demasiado disperso por vários níveis, tornando morosa a chegada de uma decisão a quem tem que a executar e tornando difícil a identificação de quem tomou a decisão ou falhou na sua transmissão quando se trata de assumir responsabilidades.
Uma pirâmide funcional será aquela em que o número de elementos dum nível inferior seja o adequado ao trabalho de coordenação do elemento do nível imediatamente superior e este se encontra acessível em tempo útil a cada elemento de nível inferior. As organizações sociais e as laborais, as informais e as formais, apresentam diferentes solicitações, diferentes gruas de exigência, são-lhe inerentes diferentes graus de responsabilidades, dando origem a uma variabilidade na sua eficiência prática. Dentro dum número limitado de opções, impõem-se o encontro do tipo de pirâmide mais adequado a cada caso.
Numa sociedade em que as pessoas individualmente se desconhecem, a estrutura das pirâmides e a posição em que cada um participa já é um indicativo das suas características, muitas vezes é o único de que dispomos. Como o indivíduo participa simultaneamente em várias organizações, desenvolvem-se contradições entre essas suas participações, sempre reforçadas pelos inimigos e disfarçadas pelos amigos. Um desenvolvimento homogéneo de cada um pressuporia que não houvesse equívocos e as várias participações remetessem todas para uma única e unívoca posição na pirâmide social mais abrangente.
Um indivíduo pode estar numa pirâmide a um nível bastante inferior e pode estar noutras a um nível mais relevante. Porém à medida que as posições sociais deixaram de ser herdadas, mesmo que essa herança continue a desempenhar um papel importante, já teve que prestar outras provas, passar por outros crivos para garantir idêntica posição àquela que noutros tempos receberia por herança. Individualmente há agora uma mobilidade social maior, mas essa mobilidade continua a ser bastante condicionada por muitos outros factores que o poder consegue controlar.
A estratégia pessoal para a ascensão de posição na pirâmide social pode passar por diferentes formas de investimento que se repercutem em diferentes pirâmides de valor social. Sendo umas mais valiosas que outras a média ponderada resultante poderá representar a característica básica do indivíduo por constituir a sua inserção no panorama social. Este entendimento leva o indivíduo a investir o máximo nas organizações ao seu alcance de forma equilibrada. No entanto há quem pense que assim nunca sairá de uma mediania confrangedora e faça por investir tudo numa das organizações com maior visibilidade social e funcione assim como alavanca para outras.
Só que uma boa participação numa organização pode não alterar significativamente a média das nossas intervenções, incluindo aquelas que ocorrem independentemente da nossa vontade. Quando se trata de criar imagens com segundas intenções utiliza-se essa boa participação para criar um simulacro de muitas outras participações que não correspondem à realidade. A nossa sociedade está cheia destes métodos para criar ídolos com pés de barro. Uma boa contribuição num domínio especifico mão é sinal doutras contribuições igualmente meritórias. Os casos comprometedores são mais do que evidentes.
A modéstia recomendaria que não desistíssemos de vermos reconhecidos os nossos méritos, mas reconhecêssemos também os nossos fracassos. Essencialmente que mantivéssemos uma posição de equilíbrio no desequilíbrio social. Cada vez é mais difícil a uma pessoa dominar um grande panorama do saber já disponível. Mesmo assim poderemos e deveremos ter uma visão de conjunto, suficientemente versátil para assimilar aquilo que se vai adquirindo e suficientemente segura para nos dar estabilidade.
Cada vez mais as pessoas se integram em mais organizações em cada uma das quais desempenham um papel diferente doutro. Cada vez mais cresce o número de pessoas inconformadas com a sua posição na pirâmide social. Mesmo a sua subida raramente lhes trás estabilidade. Cada vez mais a pirâmide de rendimento é a única referência para todas as comparações. Cada vez mais se quer vender o mérito como resultado do valor económico da pessoa em detrimento de procurar que seja dado o respectivo valor económico a quem demonstrou mérito dentro de uma organização.
Não nos podemos furtar a pertencer a organizações, não nos podemos subtrair a integrar a pirâmide social. Cada vez mais difícil será livrar-nos da insatisfação e do desencanto por não podermos usufruir em plena das suas possibilidades. Cada vez há uma maior preocupação com o que nos falta do que há usufruto do que se tem. Sentimo-nos aprisionados num edifício a que falta o nosso empenho. Sem uma filosofia de vida, sem um olhar abrangente, sem uma postura em que a modéstia não conflitue com a afirmação, estamos a construir um edifício oco e sem sentido.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Aspirações diferentes para um futuro diferente

O futuro é uma aspiração a que todos nos julgamos e bem com direito. Porém que futuro? Entre o futuro que ambicionamos e aquele que viremos a viver vai decerto haver uma grande diferença. Como é raro sermos surpreendidos para melhor o mais normal será virmos a ter um futuro pior do que o que antevemos. Como não ganhamos nada em sermos surpreendidos, seja viver na ilusão dum futuro melhor ou viver numa amargura que se não justifica, o melhor é vermos a evolução mais provável mediante aquilo de que dispomos e que melhor conhecemos, a nossa mente.
Mediante aquilo que temos tido e o que não tivemos, vamos construindo um futuro de desejos com pouca lógica interna. Não é saudável abandonar muitas das nossas aspirações e às vezes fazemo-lo por economia de recursos. Por outro lado esquecemos mais depressa aquilo que tivemos do que aquilo que não tivemos e na altura desejávamos ter tido. Recuperar as aspirações que tiveram sucesso pode ser bom para avaliar as aspirações de hoje. Aspirações há que são mesmo de abandonar, mas é bom que compreendamos as razões de as ter tido.
Porque muitos de nós fomos comunistas ou, pelo menos, complacentes com eles? Não foi pela falta de informação que Salazar impôs, pela sua propaganda sem qualquer crédito intelectual. Sabíamos da perseguição aos escritores e intelectuais de Leste, da invasão da Hungria e Checoslováquia, da forma como os comunistas haviam ocupado o poder no Leste da Europa, e no entanto relativizávamos tudo, atribuíamos os erros cometidos ao facto de o comunismo ter despontado num país pobre e rural como a Rússia que era Imperial, mas atrasada no seu imenso território. O comunismo foi pensado para um país evoluído.
Portugal era também um país atrasado, constituía uma máquina pesada, apática, difícil de deslocar para novos voos. Porém nos anos cinquenta o país estava exausto e Salazar prestes a cair. Só que paradoxalmente três factores haveriam de mudar o rumo dos acontecimentos. Primeiro a entrada na EFTA permitiu uma abertura ao comércio e a possibilidade de instalação de novas indústrias para aproveitar a mão-de-obra barata. Depois as guerras coloniais permitiram um reagrupamento, uma unidade à volta de um objectivo, porque então quase ninguém aceitava a perca das colónias e poucos políticos eram favoráveis à independência colonial. Em terceiro a emigração para a Europa Central foi o factor que descomprimiu a tensão social, permitiu mascarar a miséria dos campos, possibilitou a entrada de divisas preciosas para a manutenção do regime.
Criou-se na década de sessenta um clima de condescendência com o carácter musculado do salazarismo, tendo este por seu lado suavizado o controlo sobre a população. A perseguição tornou-se mais selectiva. Dado o considerável apoio implícito dado às teses de Salazar, devido à ocorrência daqueles três factores atrás descritos, as organizações que podiam pôr em causa as suas teses tinham dificuldade de implantação na população em geral. As vozes incómodas que surgiram do lado da Igreja Católica foram colocadas de quarentena de forma fácil. Os velhos republicanos já tinham perdido o folgo.
A adesão às teses de uma revolução democrática e nacional de Cunhal era ao tempo um desfecho plausível para quem queria fazer alguma coisa pela mudança de um estado de coisas moribundo, doentio, que, de qualquer modo e à força dos factores exteriores, daquilo que Salazar chamava de ventos da história, haveria de terminar mais dias menos dia, mas cuja espera nos desesperava. Já que assim haveria de ser, a maioria limitou-se a esperar mesmo que até lá tivesse que ir cumprindo os serviços mínimos que o salazarismo imponha. Os rebeldes eram poucos e na enxurrada em que se transforma a história deles não resta valor.
Com Marcelo houve uma continuidade pouco evolutiva. O tempo encarregou-se dos estragos e Marcelo não conseguiria obviar ao estado de saturação dos envolvidos nas guerras coloniais. Ele subestimou o papel da motivação pessoal na moral das tropas e não conseguiu travar a avalancha exterior que cada vez mais ia ameaçando precipitar-se sobre o país. Portugal já estava num beco sem saída há muito, mas na realidade parece que ninguém se preocupava muito com isso, somente ninguém queria bater com o nariz na parede do fundo.
Aqueles que tinham instituído o regime e tinham sido o seu sustentáculo durante uns cinquenta anos, o exército, sentiram a responsabilidade. Muitos levaram à letra os ensinamentos de Salazar, que atrás dele viria o comunismo, outros sobrestimaram a força deste e puseram-se ao seu serviço antes que fosse tarde. Outros ainda se reservaram até que fosse aplicada a decisão mais dolorosa que era a descolonização. Os 19 meses de PREC que ocorreram entre 25 de Abril de 1974 e 25 de Novembro de 1975 foram o período de descoberta para muitos, de aventura para outros, de realinhamento de pensamento e acção para aqueles para quem as dúvidas eram maiores que as certezas.
Porque razão terão alguns abandonado o lado dos que no processo advogaram a aplicação do teoria comunista, cujo modelo já era conhecido? Em primeiro lugar porque a informação mudou, não só em quantidade, mas também de forma qualitativa. Havia agora a possibilidade de aferir da veracidade de toda a informação através de várias fontes. Depois, porque os comunistas começaram a aplicar métodos que se julgava abandonados e com uma ferocidade desconhecida. Os comunistas desrespeitaram os compromissos antes assumidos ao escolheram o lado errado da democracia. Houve quem gostasse, é certo, tenha esses tempos por gloriosos.
Muitas pessoas passaram incólumes por este período e só acordaram com a queda do muro de Berlim em 1989. Outros ainda não acordaram. Cada um vive os seus próprios problemas pessoais e não é justo especular sobre eles. O que espanta é que parece que nada se passou e deparamos com um esgrimir de ideias sem correspondência com a realidade. Toda a subjectividade é aproveitada pelos comunistas para emitir as suas mensagens, constituída afinal apenas por ideias desgarradas retiradas de uma visão desfocada da realidade e que se destinam a provocar no receptor uma colagem pela repetição insistente. Os amanhãs que cantam emudeceram, mas há quem sonhe com passadeiras vermelhas.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Méritos e deméritos da meritocracia

Um conceito que tem tido o aplauso da direita e da esquerda sociais e políticas, não há nisto qualquer divergência, é a meritocracia. É um conceito especialmente apreciado, o que já não acontece com outros como partilha, lealdade, solidariedade, igualdade e muitos mais com mérito social indiscutível. No entanto há quem dê à meritocracia a qualidade de poder eliminar muitos dos males sociais. Segundo tais opiniões se a meritocracia presidisse à gestão da sociedade haveria maior satisfação e uma felicidade mais efectiva. Se uns acreditam por ingenuidade haverá outros que o fazem por nítido interesse.
É incontestável que é da realidade que os teóricos extraem ideias como esta da meritocracia para com elas, purificadas na sua imaginação, construírem um mundo ideal. O senão é que essa realidade só tem em conta a ponta da pirâmide social. A realidade tem-se encarregado de desmentir o valor da aplicação prática de muitas destas ideias que se supõem puras, porque o universo todo a que elas se aplicariam é disforme. Ao mesmo tempo ter-se-iam de muitos outros valores e não aplicar somente alguns. A aplicação de um só conceito tem levado a resultados desastrosos. As ditas ideias puras deixam-se contagiar por aquelas que subestimamos como a lascívia ou a inveja.
A meritocracia tem mérito, não a depreciemos, porém, tal como qualquer outro conceito, nele incluímos ideias que se podem analisar pelo mérito da sua contribuição para esse mesmo conceito, mas que também se analisam pelo seu próprio mérito. Ora os defensores da meritocracia, para dar crédito ao seu conceito, mas também para justificar a pirâmide social, colocam a igualdade de oportunidades como premissa. A igualdade de oportunidades é assim uma ideia igualmente meritória, que se conceptualiza deste modo como só fazendo sentido se na sua sequência se verificarem processos em que a meritocracia é o princípio aplicável, como se a pirâmide fosse toda assim construída.
Sendo a sociedade um edifício necessariamente diversificado e com uma hierarquia, mesmo que só funcional, seria a igualdade de oportunidades a tornar legítima toda a divergência posterior. Assim, se colocarmos ou retirarmos mérito ao conceito de igualdade de oportunidades, estamos a fazer o mesmo ao conceito de meritocracia. Na realidade todos os teóricos da meritocracia sustentam que a igualdade de oportunidades é suficiente para que sobre ela se construa todo o edifício social, podendo assim fazer com que toda a restante evolução pessoal e social se desligue de qualquer outra preocupação, em especial da de igualdade.
Podermos partir de uma igualdade de oportunidades teórica sem garantia de qualquer convergência ou sequer solidariedade em relação à chegada? A única sustentação teórica para a igualdade de oportunidades assim definida é o facto de nenhum lugar de chegada no topo da hierarquia social está vedado a quem parte de qualquer um dos lugares da base social. Assim a necessidade da meritocracia para garantir que um lugar de topo seja ocupado por quem merece é evidente, o que, no entanto não dá a garantia do respeito doutros valores.
Os teóricos da meritocracia sustentam a pouca relevância social da perca doutras igualdades para justificar a ênfase dado à sua igualdade de oportunidades. Será esta suficientemente importante para valer por si e por si sustentar a meritocracia? Mesmo dando de barato a questão do que é relevante, a igualdade de oportunidades não resiste a uma análise dos próprios méritos. São muitas as razões aduzíveis para retirar à igualdade de oportunidades o carácter duma base absoluta que permita relativizar todas as desigualdades a que está sujeito o percurso pessoal e social de cada indivíduo e da sociedade.
Em primeiro lugar porque não é possível fixar em qualquer ocasião da vida um momento que possa assemelhar-se ao lançamento em igualdade de circunstâncias de uma corrida de atletismo. Pelo nascimento já temos um passado genético, neurológico, psicossomático que nos diferencia e nos coloca em diferentes blocos dum hipotético ponto de partida. Em segundo porque os ambientes familiares são profundamente diferentes, as tradições culturais são diversificadas e o ambiente e a cultura familiar são determinantes na construção do indivíduo e dos ambientes sociais.
É verdade que a frequência de creches, jardins e escolas contribuem para uma certa convergência na uniformidade, para uma socialização em circunstâncias mais iguais, mas tal não garante que surjam crianças igualmente dotadas e preparadas. Mesmo as tentativas feitas em regimes totalitários, retirando as crianças do seu ambiente familiar para as desvincular de uma cultura ancestral que toda a família transporta, não tiveram qualquer sucesso. A igualdade de oportunidades é pois um esforço meritório que a sociedade deve promover com bom senso e sem extremismos no sentido de proporcionar a todas as famílias um mínimo de condições para criar, desenvolver e socializar os seus filhos.
Mesmo que se conseguissem condições que trouxessem vantagens para todos e se fizesse dessa igualdade um ponto de honra, tal não desresponsabilizaria a sociedade de promover outras medidas que garantam durante a vida outras igualdades. A igualdade de partida tem que ser vista com a mesma relatividade doutras igualdades. Todas as igualdades são importantes e não se compensam mutuamente. A meritocracia, perdida esta base teórica, sustentar-se-á por si? Claro que não. Mas teoricamente será o melhor princípio para justificar a selecção de pessoas, se com ele não quisermos justificar todas as desigualdades abissais existentes hoje na sociedade.
De qualquer forma a meritocracia tem os seus defeitos intrínsecos. Os instrumentos de que se serve para medir, a forma de avaliar e os elementos escolhidos para aferir do mérito são sempre controversos. Depois é impossível destrinçar o mérito doutros factores. Num percurso individual há sempre uma mão que é dada por alguém, um empurrão providencial que projecta os dotados de “mérito” para um sucesso meritório. A meritocracia não pode justificar tudo, mas também não pode ignorar os males que pode provocar. Hoje acusa-se a comunicação social de criar falsos ídolos. Porém a solução não é calar a comunicação, é preparar as pessoas para essa exposição.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Há problemas sociais que são profundos

Há problemas sociais profundos, isto é, que se lhes não vê solução a curto prazo. Basicamente são o desemprego e a crescente desvalorização do trabalho dependente e pouco qualificado que constituem as principais questões à volta dos quais se desenvolve todos os problemas sociais. Lateralmente haverá uma questão de indigência, de exclusão social, de indiferença suficientemente genérica para que muitos a classifiquem erradamente de endógena. São problemas que realmente se podem transmitir de pais para filhos por via de uma inculturação profunda, mas que não são de todo irreversíveis.
Cinjamo-nos no entanto às questões principais que hoje atormentam muitas pessoas e contribuem para revelar uma sociedade falsa, individualista, em que o egoísmo impera. Porém tal não deriva de um carácter maléfico das pessoas. O desemprego ocorre essencialmente entre aqueles que há anos foram retirados da sua actividade tradicionais, essencialmente a agricultura, e cujo novo trabalho não exige grandes qualificações, quando muito uma formação muita específica. Como se então já previa e foi um risco assumido por quem aceitou implantar esse tipo de indústria de trabalho intensivo, este novo trabalho só perdurou uma ou duas décadas. Mesmo assim durante demasiado tempo as pessoas foram ocupadas em trabalhos que exigiam pouco qualificação.
Numa sociedade capitalista o desemprego não é um drama para os dirigentes, mas tornou-se uma arma política poderosa para todos os quadrantes políticos. A direita aproveita para desvalorizar o trabalho, incentivando a precariedade como forma de criar mais emprego. A esquerda usa a arma da indignação para acusar o grande capital de só ver o problema económico pelo prisma da rentabilidade e da racionalidade. Todos porém têm grande dificuldade de apresentar soluções perante a inevitabilidade do avanço tecnológico, a eficiência de novas formas de organização do trabalho e a concorrência exterior. Os dirigentes económicos exploraram até à exaustão o trabalho barato e agora querem continuar a pagar mal ao trabalho qualificado.
No entanto aqueles factores são tão fortes e inelutáveis que até os sectores políticos mais extremistas cedem perante eles, não querem é dar a impressão de que o fazem e protestam com mais ou menos veemência, com mais ou menos sinceridade ou hipocrisia. No entanto, a não ser revelar-se em manifestações, a esquerda não encontra formas organizativas e linhas de acção por que possa lutar. A sua propaganda destina-se a chamar a atenção de quem possa estar para cair proximamente na mesma situação, no sentido um pouco ingénuo de que é possível prevenir. Mas será mais para alertar do que para impedir que isso aconteça.
O centro nevrálgico da luta promovida pelos partidos militantes deslocou-se para a antiga classe média, onde está agora a capacidade reivindicativa e o poder monetário capaz de sustentar a sua própria luta. É uma classe média que engloba muitos sectores, mas quase na totalidade directa ou indirectamente dependentes do Estado e que reservam para si uma massa salarial muito relevante se compararmos com outros sectores laborais. Destaca-se a área do ensino e da saúde que envolve muitos profissionais bem remunerados que outrora, eram pior remunerados, mas estavam do outro lado da luta de classes.
A focalização em classes sociais já bem instaladas e com qualidade de vida descredibiliza a luta contra o desemprego. Nem os empregadores podem dar essas condições a toda a gente, nem os pretendentes a poderem usufruir dos benefícios do trabalho podem ambicionar à partida atingir esses patamares. Se a realidade determinou o fim dos velhos sectores de trabalho intensivo que davam a maioria do trabalho, na verdade estes não deixam saudades. Mas temos de avaliar se o futuro poderá ser melhor.
De futuro haverá decerto uma muito maior diversidade profissional, que, contrariamente àquilo que se pensaria há uns tempos, não vai acarretar a dispersão empresarial e uma maior pressão no sentido do aumento dos salários. Os sectores do pequeno empresariado entraram em decadência num processo de continua concentração do trabalho em unidades empresariais mais vastas, melhor organizadas e com economias de escala, mas necessitando de menos trabalhadores. As expectativas de vir a integrar o sector empresarial tornam-se cada vez mais ténues e os postos disponíveis para as mesmas funções é menor.
As perspectivas que hoje se abrem já não são nos sectores tradicionais, mas noutros domínios com uma exigência de mais conhecimento e mais capital. Não estando estas perspectivas à disposição da maioria da população jovem de hoje podemos concluir que a expectativa geral é para os jovens a de virem a ser empregados de outrem, de organizações essencialmente com fins lucrativos. Perante o falhanço da esquerda extremista, a inoperância da esquerda moderada e a sofreguidão impaciente da direita, os jovens têm que pensar em novas formas organizativas que possam representar os seus interesses.
Nos primórdios da industrialização houve quem pensasse que, destruindo máquinas se criava trabalho. Noutra fase pensou-se que, acabando com os detentores do capital, se criava trabalho e se dividia melhor o rendimento. Acabada a miragem comunista, caiu-se na exploração desenfreada do trabalho a pretexto da racionalidade, da eficiência, da adaptabilidade, da flexibilidade, da concorrência e de todos os outros factores que se lançam como inelutáveis aos olhos de todos. Na verdade não se podem criar postos de trabalho artificialmente, mas haverá outras soluções, como uma melhor partilha do trabalho disponível
Com a liberdade dada aos manipuladores do capital para gerirem as imensas massas monetárias que estão concentradas em centros de decisão inacessíveis, criou-se uma dicotomia insanável entre a riqueza e a indigência. Para que a indigência se não torne um modo de vida aceite pela sociedade é necessário que a riqueza não faça o seu caminho cego e indiferente aos sentimentos solidários que devem constituir o fundamento da sociedade humana. Para que a nossa imaginação não deambule entre a riqueza e a indigência impõe-se uma participação mais generalizada dos jovens na política, não cristalizando nas ideias feitas, mas abrindo continuamente a mente ao futuro.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

O Estado, as Leis, as Estruturas, as Pessoas

O Estado é uma entidade de tal forma variada e complexa que temos muitas vezes dificuldades em lidar com ela. Quando necessitamos de interagir com o Estado é normal que ele se nos torne pesado, quando somos nós os solicitados, e seja demasiado leve e impreciso, se dele necessitamos. Nem sempre é fácil sabermos qual a estrutura dentro do Estado a que nos havemos de dirigir. Dificilmente temos uma noção de tanto departamento e gabinete que nos permita a navegação sem orientação.
Se o assunto é complexo para nós, que muitas vezes fazemos de complexo o que é bem simples, somos levados a tentar saber quem é quem na máquina estatal para corresponder à nossa solicitação imediata. E como de velhos e maus tempos nos ficou a ideia de que o melhor é saber quem é a pessoa que mexe os cordelinhos da coisa, tentamo-lo, ou na sua impossibilidade ou inacessibilidade dirigimo-nos a alguém que pensamos ter ligações apropriadas ou relações que possam lá levar. Antigamente fazíamo-lo porque éramos néscios, hoje nem tanto. Um amigo, mesmo que falso e interesseiro, é a melhor âncora.
A velha sabedoria diz-nos que há sempre um melhor caminho, por mais enviesados que sejam os troços que nos obriguem a percorrer. Ou porque queremos pressa ou porque nos queremos subtrair à acção de algumas disposições legais ou porque estamos mesmo saturados da burocracia, há sempre uma razão que nos leva à escolha destes caminhos ínvios que fazem as delícias dos mediadores da nossa praça. Há porém quem use tais vias com má-fé e desde logo para que quem facilite ganhe com isso e quem é facilitado pague menos ao Estado do que aquilo que está estipulado que todos paguem.
Não há qualquer desculpa para fugir a este pagamento nomeadamente o facto do dinheiro posto à disposição do Estado ser por este muito mal gasto. E os políticos têm por obrigação expressa não fugir a um cêntimo com aquilo com que todos estamos obrigados a contribuir. Os políticos são pessoas iguais aos outros, até lhes podemos perdoar alguns destes crimes menores, no entanto é de lhes exigir que peçam o devido perdão por não terem resistido à tentação de fugir às suas obrigações legais. Afinal não os vejo a pedir esse perdão e crimes de alguns estão à vista.
Tendo há já largos anos estado num serviço de atendimento ao público, colocou-se-me muitas vezes o dilema se seriam ou não legítimos e justos certos esclarecimentos dados aos utentes e que podiam fazer a diferença entre o deferimento ou não de um processo. Seria minha função omitir qualquer informação que pudesse beneficiar o utente ou teria a obrigação de ceder todo o conhecimento de que dispunha? Os próprios dispositivos legais eram e continuam a ser por vezes suficientemente ambíguos para permitir interpretações contraditórias. Como podemos estabelecer a diferença entre a promoção de um caminho mais benéfico em relação a um mais usual e natural?
O dilema maior surgia quando a prestação ou a omissão de uma informação sobre uma situação específica relativa ao utente era colocada como uma questão de dever. Sendo servidores do Estado devíamos estar do lado deste e ser insensíveis a questões de justiça ou estar do lado do utente? Todos nós somos muito sensíveis a esta questão de justiça relativa, à diferença entre aqueles que não usufruem de certas facilidades porque são sinceros e humildes e aqueles que beneficiem de todos os apoios porque não são honestos, são arrogantes.
A maioria de nós concordará sem pestanejar em que os humildes devem ser ajudados. Mas aqueles que são favoráveis ao rigor asséptico e sem contemplações acabam normalmente por vencer e, por incrível que pareça, isso só favorece os desonestos. Deambulamos muitas vezes entre a permissividade e esta moral farisaica de não fechar os olhos a nada a não ser em privado. Torna-se muitas vezes muito difícil encontrar o meio-termo, aquele que o legislador pretenderia atingir ao fixar o mais grave como o legal para que o mais humano e compreensivo pudesse ter algum campo de acção.
Eu nunca teria dúvidas sobre o lado em que me haveria de pôr. Porque há imensa gente que não domina a burocracia e até desconhece certas prerrogativas que possui. Os defensores do Estado acéfalo dirão que se não deve ensinar qualquer particular a atingir certos benefícios que o Estado nos pode facultar. Para esses o servidor do Estado presta um mau serviço a este se estiver a elucidar os privados sobre a forma de atingir objectivos a que outros acedem por direito.
Sempre entendi, mesmo quando não havia orientações expressas nesse sentido, que tudo devia ser claro e todos os esclarecimentos deviam ser prestados mesmo quando não expressamente solicitados. Há aqueles que sabem de tudo mesmo antes que as questões sejam colocadas no papel. Mas também há aqueles que, mesmo sabendo de alguma coisa, não fazem as perguntas que se imponham. São estes que devem ser ajudados, no pressuposto de que quem não está habituado a viver à custa do Estado não perde por isso direitos a vir a usufruir algum dia de um qualquer tipo de ajuda ou apoio.
A nossa relação com o Estado é na prática a nossa relação com os seus agentes e servidores. Porém nem só estes são os responsáveis, nem só os actuais legisladores, nem só a herança do passado. Mas temos que presumir que quem dá a sua visão da Lei e dum direito consuetudinário, não reconhecido, mas aplicado, tem que ser capaz da melhor interpretação. A face do Estado são os seus agentes e servidores. São os juízes, são os fiscais, são imensa gente a quem é dado o direito, ou se arvora do direito de intervir na organização da vida em sociedade. A dúvida persiste sempre entre se o Estado está mal dotado de estruturas e leis ou se está mal servido de pessoas.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Nós, a sociedade e os grupos

“O Pertencer A” é um sentimento que nos faz falta, que nos afasta da solidão e nos dá algum ânimo nos momentos de maior desesperança. Fazem-nos falta muitos dos grupos que encontramos na sociedade. É verdade que muitos também seriam dispensáveis, ao passo que sentimos a necessidade de novos grupos de cuja criação nos sentimos incapazes. Os grupos fornecem-nos a sua consistência própria e devem ter uma grande plasticidade que nos permita a pertença a vários grupos. Mesmo que não possamos falar por um dado grupo de que reivindicamos pertencer, sentimos um certo aconchego por nos acompanhar esse sentimento de proximidade com alguém.
Nesta questão de grupos nem sempre a veracidade vence. Podemos viver de modo diferente, plenamente imbuídos do seu espírito ou com uma alheamento indisfarçável. Sentimo-nos por vezes desprezados, abandonados, porque a pertença a um grupo pode ser um conforto que nos alivia e anima. Sentimos um especial desconforto quando temos a sensação de que um grupo pertence a alguém. Situação mais grave é aquela que se pode viver ao sermos ou nos sentirmos excluídos de um grupo em que depositamos expectativas exageradas, seja ele da família, de amigos ou de outra natureza.
Investir demasiado num grupo pode ter efeitos perversos, principalmente quando sobrevalorizamos o nosso contributo para ele. Vale pois a pena ser realista, pensar nos aspectos em que o nosso contributo será menor e não compensado pelos contributos noutras áreas que possam ser maiores. Atribuir todos os problemas ao egoísmo alheio não compensa o nosso desencanto com muitos grupos a que não desdenhávamos pertencer. O nosso contributo pode ser mesmo irrelevante para o grupo e nós vangloriarmo-nos daquilo que não damos. “Pertencer a” é dar e receber. Não pode haver equívocos.
Um político quando se sente desligado ou ligado de modo deficiente a certos grupos sociais preponderantes remete normalmente para o povo, essa outra entidade grupal, aleatória, indefinida e inexpressiva a que todos pertencemos e a que ninguém, pelo menos nos momentos de aflição, desdenha pertencer. Os simples mortais como nós, quando se sentem demasiado “acossados pelos cães”, têm muita dificuldade em saber para que lado se há-de virar. Remetermos para o povo é um pretensiosismo que nos fica mal.
Tal ausência de grupos a que possamos ter o sentimento de pertença pode levar a uma situação dramática. Em um ou mais momentos do nosso passado, de modo diferente na juventude ou posteriormente, podemos ter sentido que os grupos que existem não fazem sentido para nós. Pode ocorrer uma ausência de viabilidade de relacionamento, assim como uma descrença em relação à proximidade em que nos sentimos dos grupos em relação aos quais seria pressuposto haver uma razoável aproximação. Por vezes parece que a sociedade nos impõe a pertença a determinados grupos e isso pode ser insuportável.
O suicídio é mesmo a solução encontrada por muitas pessoas que se vêm confrontadas perante estes aparentes becos sem saída. A impreparação e a falta de perseverança fazem com que muita gente venha a cair nos cadafalsos que lhes surgem no caminho. Para muitas pessoas este tipo de preocupações é irrelevante, em especial para aqueles que têm no “Ter” o centro do seu projecto de vida. Claro que se fizermos uma avaliação social este “Ter” leva nítida vantagem, não por estar numa situação de exclusividade, mas por ter uma preponderância que muitos, em situações menos favoráveis, pretendem escamotear para melhorar a imagem.
O “Ter” tem importância, à volta dele se discute o contributo de cada um para a sociedade, e reconheça-se que procurar o “Ter” licitamente é procurar nessa medida contribuir para o todo social. Por nos ocupar a maioria do tempo, por ter um carácter primordial em muito desse tempo, o “Ter” assume hoje a nível social um carácter absorvente, pois para ele remetem todas as questões sociais relevantes, a justiça, a educação, a saúde, etc. Além do papel abrangente do dinheiro, o destaque dado pelo “Ter” é intransponível.
Pelo “Ter” ter a importância que tem, por não poder ser ignorado, haverá pessoas que já o absolutizaram, ignoraram outros valores, sentem-se bem a partilhar a pertença a qualquer grupo formado na base da posse. É débil o cimento que agrega em si tais grupos. Não é na sua lógica que se deve deixar absorver todo o relacionamento social. Este deve existir muito para além do seu domínio. Infelizmente a maioria das pessoas, não se sentindo com cabedal para integrar a sua lógica, deixa-se enredar na lógica contrária de contestação permanente do “Ter”, o que não tem qualquer valor moral ou prático e em última instância remete para a mesma lógica do “Ter”.
Pertencer a grupos do “Não Ter” ainda é no entanto uma atitude que parece fornecer dividendos sociais. O espírito humano está cheio de contradições que só se deslindam, descobrem e se desfazem ao atingir um estado apropriado de maturação. O “Ter” é a solução mais lógica e imediata para o “Não Ter”, mas o caminho de cada um tem complexidade diferente. O nosso dilema é que os jovens têm ainda pouco tempo de pensamento das questões sociais e aceitam muitos estereótipos e os velhos estão presos a parâmetros que não lhes permitem ver para além do umbigo. Se deixarmos que os jovens esperem pelas suas próprias contradições, a humanidade não avança.
Pertencer a grupos sociais do “Ter” não é crime, desde que não o seja em exclusividade. Também não é obrigatória uma diversidade absoluta, cada um de nós tem uma idiossincrasia que nos faz ter “inclinações”. Tentar não ceder em demasia e dar o valor àqueles que cultivam valores diferentes é um exercício de cidadania saudável e eficaz. Pertencer a grupos cujo objectivo seja a partilha e não a exploração intensiva de um sentimento redutor, não se deixar reduzir à pertença de grupos do “Ter”, é o caminho que nos ilumina, mesmo que tais grupos sejam apenas virtuais por muitos anos.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Se calados alguém falará por nós

Todos nós já tivemos esta impressão, estou convicto. Esta impressão é mais suave se derivar da ideia de que não nos deram tempo para expressarmos a nossa opinião, espaço para falar, atenção para ouvir. Mas esta impressão é mais acentuada se, permitindo-nos tempo, espaço e atenção, há mesmo assim a humilhação, desprezo ou simples usurpação da nossa voz. Então três atitudes básicas podemos tomar, conforme a circunstância.
Mesmo considerando que não devemos prescindir da nossa voz, podemos, sendo isso bem claro, dar o assentimento em que alguém fale por nós. Se pertencemos a um grupo mesmo informal e alguém expressa o consenso que nele se obtém ou se presume que nele aja, não vale a pena estarmos a acrescentar nada. No entanto há sempre alguém que queira acrescer algo, que nem tudo foi dito. Muitas vezes é puro preciosismo, porque, se o porta-voz é bom, terá dito o suficiente e possivelmente até terá acertado na essência da questão. Com essa atitude por vezes baralha-se ao querer acrescentar uma vírgula.
Não se coloca aqui a questão do reforço da voz que nos representa. Essa é outra questão que tem a ver com o poder de intervenção social da pessoa ou do grupo social em que nos integramos. Porque, se não for assim, teremos que analisar também em que medida esse reforço de intervenção corresponderá ao abafar de outras vozes, à omissão de outras opiniões. E esta análise é feita no pressuposto de que queremos que todos tenham voz.
Uma outra atitude será de dúvida. Num inquérito podemos pôr sempre a dúvida se a nossa opinião está lá expressa. Ou porque não fomos ouvidos, mas também porque nem todos o podíamos ser, ou porque, se o fomos, entendemos que, propositadamente ou não, ouviram mais pessoas com opiniões contrárias à nossa do que com opinião igual. Ou ainda estes últimos se revelaram menos motivados para ir votar, para responder ou para clicar em qualquer botão de uma qualquer janela da Internet. Ganham os mais activos.
Em última instância podemos dizer que o inquérito estava mal feito e não permitia expressar convenientemente as várias opiniões possíveis, confundia as pessoas, seria até despropositado na ocasião em que foi feito. A escolha das questões tem que ser criteriosa, feita de modo a obter uma resposta para a pergunta essencial que o inquérito consubstancia. Em simultâneo as questões têm que ser colocadas de forma clara e acessível ao máximo das pessoas e no momento adequado.
Num inquérito a maneira como é feita uma pergunta é uma condicionante não desprezível. Se um inquérito se não destina ao universo das pessoas, isso tem que ser salientado na sua divulgação. Também num inquérito não podem surgir perguntas que já têm resposta objectiva, a não ser que se queira saber o nível de conhecimento das pessoas e não a sua opinião, como é pressuposto. Num inquérito nunca pode estar em causa a inteligência, a cultura, a actualização das pessoas, a não ser que esse seja o objectivo expresso.
Outra atitude que podemos tomar perante a circulação das opiniões é a rejeição do seu aspecto, é a negação de que a nossa opinião esteja de algum modo expressa, como que se alguém se negasse também a ouvir-nos. No caso extremo é o surgimento do vazio, dum espaço em que as nossas ondas se não propagam, duma opacidade às nossas imagens, aos nossos argumentos, aos nossos alertas. Essa barreira por omissão de meio de divulgação é a mais comum. Não é por respondermos a muitos inquérito que somos mais ouvidos.
Quem está do lado de lá dirá que o nosso som é pouco audível, que há uma expressão mínima da nossa opinião e que se ela não é mais avantajada é porque não “calha” no meio social em que se insere. Esta explicação satisfará algumas pessoas que até se comprazem em ser vincadamente diferentes e estar isoladas. Mas muitas mais pessoas pressentirão que essa omissão é propositada e não é dada expressão suficiente às ideias com que mais se identificam.
Num inquérito muitas vezes as perguntas são escolhidas conforme as respostas que se querem obter e quando muito deixar-se-á um escape para as outras respostas que não cabem nos seus propósitos e podem portanto estar misturadas, agrupadas, indefinidas. As outras opiniões são aquela escapadela que permite que se diga que todo o universo se pode ver reflectido num inquérito, mas, se isso serve para uns propósitos generalistas, não serve para propósitos mais minuciosos.
Mas, em termos de opinião pública, todas as opiniões são válidas e devem ver reflectido o seu peso relativo. O que quererá dizer que todas as opiniões devem ser tidas em conta sem que necessariamente qualquer delas tenha que ser seguida. A opinião pública é um espelho em que nos devemos reconhecer. Sem termos a pretensão de traçar uma bissectriz que defina o sentido da acção, podemos mesmo assim concluir que nem todas as correntes têm na opinião pública a repercussão correspondente ao seu volume, já para não falar do seu valor.
Quando alguém verifica que pertence a uma corrente que não está a passar em lado nenhum, será normal ficar apreensivo. O pior que pode acontecer é ela nem oposição suscitar, porque isso é mesmo sinal de que está a ser escondida. No fundo todos nós desejamos ter voz para que ela também influencie os outros, mas se estamos à espera de uma repercussão directa positiva ou negativa, podemos ter que esperar sem sucesso.
Podemos fazer alguma coisa para que ao menos ninguém fale por nós, deturpe a nossa voz? Podemos falar claro e evitar opiniões intriguistas. De resto toda a influência que nós possamos exercer na sociedade é de longo prazo, mas para todos, para aqueles que da Lei da Morte se vão libertando e para aqueles que nunca constarão de compêndios e extractos. A inteligência passa pelo mundo e deixará sempre algum efeito no seu rasto, desanuviará o ambiente, mas as dificuldades são o hábito e a apatia.