sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

O dinheiro é fonte de relações impessoais

A maioria dos bens que sempre fascinaram as pessoas ainda são aqueles que continuam a fascinar. Esse fascínio tanto se exerce sobre aquelas pessoas que acedem a esses bens normalmente, como sobre aqueloutras que nunca imaginarão serem capazes de a eles aceder. Porém à medida do progresso alguns bens foram perdendo algum fascínio ou, por os vermos mais próximos, passaram a fascinarem-nos doutro modo. O dinheiro está entre aqueles bens que mais fascínio nos criou e persiste no nosso imaginário por si próprio ou porque é a via mais eficaz de acesso a muitos outros bens igualmente fascinantes.
Outrora víamos o dinheiro a uma outra distância, estava no domínio de alguns e a maioria de nós preocupava-se em obter um pouco dele mas para logo o gastar. Não chegava a satisfazer aquele fascínio e nesse aspecto o dinheiro era o mal que se disfarça e persiste em nos enganar. A maioria de nós ficaria pobre por toda a vida, porque só a custo obteria meios para subsistir. Vivíamos permanentemente em crise porque era difícil obter um trabalho certo e bem pago, porque havia excesso de mão-de-obra. Felizmente entretanto ocorreram algumas mudanças.
Ao capitalismo, emergente pela mão da burguesia, interessava o aumento da circulação de dinheiro, o aumento da oferta de trabalho, o aumento da procura dos bens produzidos. As remunerações do trabalho cresceram, o dinheiro circulou com mais facilidade, chegou mais próximo da vista de cada um, passou mesmo a ter um significado diferente. Surgiu outro interesse pela posse de dinheiro, pela questão do seu valor e das suas flutuações. Ao mesmo tempo surgiu a preocupação em saber quem detinha a posse do dinheiro porque tal era correspondente à detenção do poder.
Formou-se então uma corrente de pensamento, o iluminismo, que concluía que a posse do dinheiro e do poder seria mais vantajoso na mão do Rei do que na mão dos senhores feudais. Essa linha de pensamento evoluiu para o comunismo e passou a defender a posse do dinheiro pelo Estado em detrimento dos particulares e do Rei. O Estado como Entidade mais benigna que o Rei, teoricamente sem barriga e sem humores ou deslumbramentos, trataria do dinheiro, da sua distribuição sem ter que respeitar políticas de favor. Também seria um modo de impedir a acumulação do dinheiro e a sua aplicação caprichosa.
Esta corrente de pensamento defendia que o Estado era capaz de garantir um controle bastante do dinheiro. Uma das formas a que o Estado podia recorrer para ajudar a esse controle e para diminuir o fascínio do dinheiro seria a usufruição livre de bens colectivos de que o Estado se apropriaria. Porém as experiências históricas não levaram a uma boa gestão desses bens teoricamente colectivos nem conduziram a uma gestão equitativa da inovação e do desenvolvimento. Uma razoável distribuição do dinheiro não correspondeu a um bom nível de desenvolvimento social.
O Estado não é uma entidade abstracta, é uma organização específica cujo principal elemento é o homem. Ora o homem não se deixa reduzir à função que lhe caiba em sorte, corrompe-se e deixa-se corromper. Seja qual for o tipo de organização do Estado o fascínio que o dinheiro provoca é o mesmo, a atractividade que ele exerce é superior à de qualquer outro bem e não é anulável por qualquer entidade.
Por outro lado o facto de o Estado ser poder com implicações muito mais vastas do que a simples gestão do dinheiro e da riqueza levou a graves anomalias nas experiências efectuadas. Além de se ter ficado longe de uma boa gestão da economia, a vida social foi afectada ao ponto de terem sido postos em causa direitos humanos e princípios de respeito pelo mais elementar humanismo. Houveram mesmo situações extremas de indignidade, bestialidade e perversão.
Embora haja alguns resquícios dessa linha estatal de pensamento a sua evolução natural conduziu à atribuição ao Estado de um papel mais reduzido, mais limitado, mas mesmo assim com uma intervenção significativa na economia. Esta nova linha de pensamento defendida pelos socialistas renega a anterior e tem pontos de contacto com a orientação preconizada por aquele liberalismo que não assenta num individualismo radical. E em menor grau há pontos de contacto com a orientação que o dirigismo de direita preconiza num sentido idêntico ao da antiga monarquia.
A maioria das sociedades actuais encontram-se nesta situação de equilíbrio instável que tanto pode conduzir numa direcção mais socialista como noutra mais liberal. Uma das características comuns e mais importantes destas duas orientações é o monetarismo, a redução do dinheiro à moeda e da riqueza ao dinheiro. Só os extremistas de esquerda e de direita subestimam esta alteração irreversível no valor do dinheiro.
As sociedades mais primitivas eram orgânicas, satisfaziam as suas necessidades através de transferências directas entre os seus membros. O comunismo foi uma tentativa de regresso a esse passado com a ajuda da intermediação de um poder forte entregue ao Estado. A direita ainda hoje mantém esse espírito em que tem também lugar o caritativismo e outras transacções não monetárias. Há pontos de contacto entre a Esquerda do Partido e a Direita da Pátria, a que por vezes se junta Deus e a Família.
Por mais execrável que o dinheiro possa parecer, ele está incrustado hoje na nossa vida. O dinheiro tem a vantagem de tornar impessoais relações que o devem ser, sendo porém necessário sabermos onde devemos parar. Há na sociedade outras relações mais pessoais que se não devem deixar contaminar pelo dinheiro. Da parte daquela esquerda e daquela direita integralistas continua a fazer-se chantagem sobre a sociedade com princípios que estarão em perigo perante a arremetida do dinheiro. Não será porém de considerar que existe o perigo de o dinheiro conseguir dar um carácter de impessoalidade a toda a nossa vida.

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