sexta-feira, 25 de abril de 2008

25 de Abril, a primeira referência do Portugal Democrático

Muitos perguntarão porque nos esquecemos tanto do 25 de Abril, se ele foi tão importante para nós, gostemos ou não, sejam quais as reticências que coloquemos à maneira como se desenrolou e aos resultados que implicou.
A falta de acordo acerca desta questão, que de modo tão amplo pode ser posta, deriva em primeiro lugar da falta de unanimidade acerca da própria natureza do acontecimento. Mas se as divergências podem contribuir para o esquecimento deliberado, há outros factores que vão ajudando ao mesmo efeito.
Alguns até dirão para quê tanta referência a um facto que pouco significado teve na evolução pouco inovadora que a partir daí se processaria. Na realidade as referências são cada vez menores porque, por mais fulcral que tenha sido um episódio histórico, quanto maior for a distância temporal mais se dilui numa tendência geral que nós sempre atribuímos a um largo período histórico.
O tempo sara as feridas, diminui as divergências, dilui as contradições. Pessoas rotundamente contra passaram a aceitar aspectos outrora controversos, evoluções consideradas então perigosas. Pessoas a favor verificaram que nem tudo caminhou no sentido esperado e que houve aspectos negativos que suplantaram os positivos.
O serem conclusões à distância não quer dizer que não resultem de análises rápidas e demasiado simplistas que confundem factores, misturem causas e desnivelem as razões. Mas, se quem viveu os acontecimentos deveria ter uma noção mais precisa, a verdade é que são as razões afectivas que prevalecem.
Já aqueles que não viveram o 25 de Abril normalmente partilham as opiniões do seu meio circundante, mas tem uma tendência natural a ver a história como decorrendo sobre uma linha mais ou menos recta. Depois, estando ainda em acção a maioria das forças políticas que intervieram nessa ocasião, em especial no pós-25 de Abril, é-lhes difícil destrinçar os seus diferentes modos de agir.
O 25 de Abril foi uma verdadeira revolução no sentido em que decapitou o sistema político-militar, instituiu uma orgânica nova na super-estrutura, terminou a fase imperialista do País, tornou irreversível o discurso político. O 25 de Abril não foi uma verdadeira revolução porque optou por manter o regime cooperativo de Salazar, que depois de uma fase fracassada de comissariado político acabou por resultar uma autogestão sustentada pelo Estado.
Instituições e sectores foram sendo remendados, alguns, poucos, reformulados e alguns outros foram caindo de podres pela sua própria natureza. As nacionalizações corresponderam à necessidade de uma reorganização do aparelho produtivo. Ao condicionamento industrial instituído por Salazar e à política de alvará para a maioria das actividades significativas quis o poder que sucedesse um sistema de monopólio integral que asfixiaria a sociedade e levaria ao seu progressivo abandono ainda não totalmente consumado.
Os fortes lobbies e grupos de pressão que ainda hoje existem são resquícios bem vigorosos daquele sistema corporativo. Neste aspecto o 25 de Abril não é uma revolução porque se limitou a permitir o acesso a certas profissões e actividades às pessoas provenientes das mais diversas camadas da população. Esta reforma teve mais ou menos efeito imediato na maioria dos sectores, mas encontrou forte resistência em alguns, como o da medicina.
Além disso passados mais de trinta anos continuamos a correr atrás de reformas que eram imprescindíveis há muito mas que o poder político não consegue impor ou distorce claramente em favor dos seus próprios lobbies dominantes. Veja-se a saúde, o ensino, a fiscalidade. Salva-se a segurança social.
O 25 de Abril prescindiu de ser uma revolução porque não construiu qualquer novo sistema de raiz, não foi um golpe de Estado porque não houve uma clara demarcação entre vencedores e vencidos, não pode mas quase se resignou a passar despercebido, tanto se limitou a dar continuidade às instituições existentes, não fosse o poder cair na rua.
O 25 de Abril é tão só o despoletar da mais longa reforma, de tão longa que possivelmente daqui a uns outros trinta anos os nonagenários dessa altura ainda dirão que está por cumprir. No entanto isso é tão só erro nosso e não retira o mérito de um acontecimento muito mais inevitável nos efeitos do que na forma. Isto é, sabia-se há muito que haveria de acontecer, não se sabia como. Os que estivemos do lado de lá desse dia queríamos inovar mas não sabíamos como.
O 25 de Abril assumiu uma forma casual, pacífica, dadas as desigualdades e os condicionalismos existentes é o mais consensual possível. Podemos acusá-lo de agravar desigualdades e de não resolver certas questões tão aceleradamente como queríamos, mas não lhe podemos atribuir a degradação da vida nas colónias, os efeitos da mercantilização e da globalização na economia e em particular na economia rural. Decerto a adesão à CE e ao Euro foram mais decisivas.
Só podemos culpar o 25 de Abril por ter sido tardio, porque o País não se preparou mais cedo para evoluções já em curso ou que se adivinhavam. Mas esta é uma culpa para os homens que foram o sustentáculo do antigo regime e que, como é evidente, não tinham preparação democrática.
Para nós que nascemos na ditadura mas que nunca a aceitamos, que tínhamos umas noções de democracia mas nunca as experimentamos, que subscrevemos desde a juventude uma visão humanista do mundo, o 25 de Abril foi o dia de festa maior e que, mesmo maugrado os dissabores consequentes, deve permanecer como a primeira referência do Portugal Democrático.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Crónica Política - A inserção social de jovens é problema de hoje e de amanhã

Explorar politicamente um assunto não é o mesmo que o explorar partidariamente. Se há assuntos cuja exploração partidária é abusiva não podemos cair no erro contrário de não abordar determinados temas porque com a sua discussão se favorece a posição do Partido A ou do Partido B ou C. Além do mais há assuntos que levantam controvérsia dentro de um mesmo Partido.
O problema complica-se quando um aspecto da realidade é arrastado para a discussão através de uma abordagem que o queria ignorar. O tema da pequena delinquência foi abordado na Assembleia Municipal de Ponte de Lima pela CDU com o objectivo de remeter as responsabilidades para alguém. Mas se os olhos se não podem fechar à realidade, faltou analisar todas as implicações da questão.
Claro que Daniel Campelo, que se defende da grande delinquência porque diz que ela vem pela auto-estrada, não podia utilizar o mesmo argumento e vá de dizer que já tinha reunido a propósito com a Mesa da Santa Casa, como responsável pelo único grupo institucional de jovens, ignorando que há outros grupos que se formam e nem todos movidos pela cultura de rua.
A bomba estava no ar e não duvidamos que noutros tempos Abel Batista seria o primeiro a deitar água para a fogueira, ilibando Daniel Campelo de quaisquer propósitos xenófobos e discriminatórios. E se esqueceu outras atitudes tomadas no passado com idênticos objectivos não poderá duvidar que as suas palavras tiveram um efeito aglutinador.
A maioria das pessoas concordará que a nossa solidariedade deve ser nacional, até porque também nós enviamos jovens com problemas idênticos para outras paragens. Não podemos dizer que hoje estão nas Oficinas de S. José jovens que lá não deviam estar por terem nascido noutra região. Podemos é dizer que a Santa Casa não terá condições, instalações, técnicos, vigilantes, se virmos ás coisas só pelo resultado. Cabe à Santa Casa justificar-se.
A verdade é que Daniel Campelo não podia dar ar oficial a um sentimento de rejeição que se propaga na sombra. Um dia, numa entrevista ao canal de TV Porto Canal, disse que era altura de dar uma imagem mais humanista, mas afinal o ambiente político não parece favorável a esse propósito. Será que o bairrismo exacerbado baseado em visões estreitas da realidade ainda dá votos?

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Um plano estratégico incoerente e inconsequente

A Valimar apresentou um estranho plano estratégico de desenvolvimento, que de desenvolvimento pouco tem, seja qual for o prisma por que se queira ver. Idealiza uma combinação da escala amigável dos seus principais centros urbanos com a valia da sustentabilidade e da excelência ambiental do território, beneficiando este último dos níveis mais baixos de densidade demográfica e industrial. Quer dizer que, quando se quer sol na eira e chuva no nabal não se tem uma coisa nem outra.
O que de positivo este plano tem é que no estudo que lhe serve de base se identificaram alguns pontos negros e limitações, embora alguns sejam interpretados em sentido contrário ao correcto. Reconhece ser uma forte limitação a pequenez da base urbana que organiza o território na emergência de atmosferas propícias ao desenvolvimento. O plano faz de Porto, Vivo e Braga-Guimarães os locais com forte potencial de crescimento e atractividade e só nos atribui condições privilegiadas para o lazer e actividades marginais.
O plano resigna-se a repetir velhos axiomas propondo a sustentabilidade ambiental como critério de regulação e factor de promoção de serviços e de novas actividades no sentido da manutenção da “galinha dos ovos de ouro”, afinal ovos que de tão guardados parece já estarem por demais chocos, sem fruto. Afinal aponta como principal debilidade endógena do território a incapacidade de empreendimento e iniciativa privada e colectiva.
Mesmo quanto às políticas de intervenção de iniciativa municipal ou inter-municipal as propostas apresentadas não saem do já tentado. Quanto à iniciativa privada diz-se que o défice actual da sua iniciativa não subsidiada constitui uma importante limitação. Nesta perspectiva este plano parece não ter validade sequer para o período até 2013, em que ainda haverá subsídios, porque os subestima. E deixa a obscuridade para além dessa data.
Na sua pequenez este plano privilegia nitidamente a orla marítima Esposende-Viana-Caminha, sendo mesmo contra uma forte ligação Braga-Ponte da Barca-Arcos-Monção reforçada com a melhoria dessa acessibilidade. A configuração transversal do território da Valimar leva-os a cair no erro de privilegiar uma penetração no mesmo sentido em Espanha até Orense, como a querer que esta cidade transfira o seu contacto marítimo de Vigo para Viana, o que é de mais.
Sem deixar de ser aconselhável reforçar essa ligação será sempre muita secundária para a centralidade de Orense e o nosso território tem que continuar a privilegiar as ligações Norte-Sul e fazer com que, na sua limitação geográfica, não seja somente um local de passagem. Nesta perspectiva o plano aponta e bem que as nossas balizas são constituídas pela dotação logística e infraestrutural e o potencial de crescimento do triângulo Porto, Vigo e Braga-Guimarães.
Este estudo, perante a incapacidade estrutural de fixar serviços avançados e instituições com potencial de produção de conhecimento para a valorização de recursos locais, aponta como solução um projecto de envergadura com instituições universitárias e potencialmente produtores de serviços e de conhecimento relevante que envolvesse um Centro de Formação Contínua e Workshops científicos. Parece envergadura de mais para a estreiteza do nosso território.
Ninguém duvidará que o desenvolvimento rural, além de corresponder às características de ruralidade predominantes, seria um instrumento de coesão territorial. Alguma importância do sector agro-florestal, principalmente como fonte de rendimentos complementares, e o peso dos agregados familiares agrícolas não escondem o declínio e são uma resistência à mudança.
A solução apontada para o privilégio por uma visão multifuncional do espaço rural parece corresponder somente à tentativa frustrada que todos fazemos para não perdermos de todo a imagem tradicional que transportamos desde a infância. Neste, como noutros aspectos, a tradição é um entrave ao progresso.
O plano bate certo ao propor a destradicionalização dos discursos e das práticas consistindo em sujeitar anteriores valores, significados e acções a uma nova lógica interpretativa e de intervenção. E aponta para a não instrumentalização da arte e da cultura, para a necessidade de inovação e abertura à modernidade com o abandono do discurso nostálgico e práticas folclóricas do passado.
Inesperadamente, perante o assumir de um conjunto de insuficiências que bloqueiam o salto qualitativo, cai-se no discurso super-optimista para um desempenho de excelência na elevação da atractividade da região. Mas, não fora apelar este plano às intervenções de reabilitação e recuperação para a actividade de lazer e convívio urbano das suas frentes ribeirinhas, e deixaria tudo para os outros fazerem, os que de fora deste território o vejam de modo diferente de uma reserva integral.
Este estranho plano foi conjecturado de modo a satisfazer interesses bem alicerçados. O eixo litoral é claramente o foco principal do plano, o turismo de casas particulares, apático e irrelevante para a grande maioria dos habitantes, é manifestamente favorecido. Deixa alguns dados para não tirar conclusões coerentes. Perante apostas já perdidas à muito, oportunidades não aproveitadas, insiste em velhos slogans e superficialidades.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Como preparar a escola do futuro

O debate não se abre quando se decreta, generaliza-se e motiva as pessoas quando há acontecimentos centrais, colaterais ou simplesmente laterais, mas à volta de uma questão cuja gravidade é capaz de desencadear o mesmo.
Andava tudo de certo modo sossegado, discutindo academicamente se os professores deviam ser avaliados ou não, se os alunos deviam ser recuperados ou não, se a gestão devia ser unipessoal ou colectiva, essas coisas bonitas de que sindicatos e partidos se fazem propriedade para dizerem que têm alguma coisa para discutir, quando o governo tem ideias e mandato para as pôr em prática.
Eis que uma simples amarradela numa escola em pleno centro urbano do Porto e que não teria consequências absolutamente nenhumas, não fora um outro aluno mais atrevido ter tido a imprudência de não defender e proteger a escola pública, expondo-a de modo que não interessa nem convém a nenhum agente educativo, dá origem a uma confusão tremenda entre indisciplina e violência.
Afinal a comunicação social não aceitou informar somente o excelente trabalho que se faz nas escolas e aproveitou para denegrir ainda mais a já fraca imagem da escola pública, no que se refere em especial ao ensino obrigatório. Mas não foram os defeitos que os jornalistas possam ter que determinaram que houvesse uma clara implosão de comentários e preocupações
Também várias personagens, indevidamente talvez, procuraram tirar aproveitamento desta ocorrência, tentando isolá-la neste momento preciso, empolando as envolventes circunstanciais, remetendo este caso para o palco do debate político. É uma visão limitada que só diz da qualidade desses políticos.
O assunto que nos preocupa já não é este caso em particular, mas o alargado, de âmbito genérico, o do ensino na sua plenitude. É do interesse geral que seja bem discutido, bem analisado, sendo que se esteja a pensar previamente nas consequências de quaisquer conclusões a nível de processos de gestão, recuperação de alunos e avaliação de professores.
Ideias feitas todos vamos tendo, rejeições assumidas também, no geral sabemos mais daquilo que não queremos do que daquilo que queremos efectivamente. Caminhamos normalmente entre a rejeição ou aceitação do real, do que existe e a atractividade ou repulsão por modelos idealizados e utópicos.
Uma discussão sobre o valor actual da escola, daquilo que a tenha beneficiado ou prejudicado nos últimos tempos é a preocupação dos políticos de vistas curtas que querem tirar partido de uma análise próxima feita com ideias preconcebidas. A escola tem muito valor porque sem ela seria o caos mas não tem o valor que podia, todos reconhecem.
A escola tem que ser um organismo mais versátil, mais adaptável às exigências, mais atento à evolução, mais disposta a viver a contingência, mais perto da vida. Mas o drama é que a nossa escola tem atrasos que têm de ser vencidos de uma só vez, há desenquadramentos com o meio que têm que ser removidos, tem estruturas internas que têm que ser mexidas para que, entrando num certo caminho evolutivo, se possa repensar e reposicionar continuamente.
A escola tem os olhos bem abertos para a sociedade, mas da maneira como está informada, tem muito mais propensão para captar os aspectos caricatos vistos directamente ou captados pelos meios de comunicação que agora absorvem a quase totalidade do tempo dos alunos. Claro que os adultos, mesmo os da escola não se deixam envolver com a mesma simplicidade dos jovens.
A sociedade também tem que ter os olhos bem abertos para a escola, convencendo-se que esta já não vê só aquilo que a sociedade lhe quer transmitir. A sociedade tem que ser esclarecida sobre o que se passa na escola, os pais sobre o que podem fazer para a escola não constituir tão grande factor de desigualdade como é hoje, para que seja qual for o sucesso dos seus filhos não seja a escola a passar-lhes um atestado de marginalização e para que encontrem um lugar digno na sociedade.
Hoje exige-se mais do que a ausência de violência através de medidas de repressão externas à escola, a solução dos problemas de indisciplina lançando um cobertor para cima deles e deixando que eles se resolvam só na escola. Se não tivéssemos consciência do que tanta coisa está mal, um problema como o que surgiu não mereceria a repercussão que teve.
Os professores sozinhos não resolverão os seus problemas de ganhar a atenção dos alunos, os pais sozinhos não motivarão com benesses os seus filhos, os alunos por si sós não encontrarão motivos para se interessarem por assuntos insípidos. Há professores preparados, famílias estáveis, alunos atenciosos, mas a melhoria só se consegue com várias outras forças a convergir nesse objectivo.
Assim não chegam manifestações de solidariedade com professores, alunos, pais, com todos para resolver o fundo da questão, não chega isolar a escola para a tratar de hipotética peste, não chega dizer que somos os melhores. È necessário dar conforto a quem está no caminho certo, inserir a escola na vida prática, não nos iludirmos com elogios só por virem de quem vem

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Sede de justiça, um sentimento largamente partilhado

Vivemos num mundo em que talvez o sentimento mais partilhado, mais difundido e que mais ocupa os espíritos, é a sede de justiça. Toda a gente se sentiu alguma vez injustiçada, muitos já fizeram por esquecer esses desagradáveis momentos, mas alguma coisa fica, pronta a ser reassumida, pelo que podemos dizer que está sempre imanente uma sede maior ou menor de justiça.
Aceitemos porém que haja alguém que não tenha razões próprias para a ter, que possa até ter vergonha de se considerar alguma vez injustiçado. No entanto, ao menos pelos outros estamos sempre prontos a condoermo-nos, a manifestar a nossa compaixão, a lutarmos mesmo, ou que mais não seja, a apoiarmos moralmente as suas lutas. A sede de justiça exerce-se pelo menos pelo lado social.
Mas, independentemente do artifício social, da nossa participação ou não no “choradinho” institucional, a ausência de justiça nota-se a vários níveis e estamos sempre prontos a assinalar mais algum ponto em que a justiça falha. Falha a justiça onde era pressuposto haver agentes prontos a fazê-la cumprir, mas falha também onde a existência ou não de justiça é o resultado de uma avaliação subjectiva mas, se sem artificio, legítima.
Isto é, a justiça está muito dependente da objectividade que podemos emprestar à análise de uma situação. Embora a subjectividade seja inevitável há questões que têm que ser vistas partindo de noções o mais próximas possível. Entre estas está o entendimento do que define o interesse comum, em que consiste o bom senso, como achar um ponto de equilíbrio entre interesses conflituantes, que grau de intervenção cabe ao Estado?
Dificilmente teremos uma visão correcta em termos de justiça e injustiça se só nos interessarmos pelos assuntos que têm mais visibilidade e ignoramos tudo o resto. Isto cria uma visão distorcida da realidade que nos faz emitir opiniões que, a vingarem, correriam o risco de criar mais ou outro tipo de injustiça. É o nevoeiro social que consegue suplantar as forças da nossa racionalidade.
O ambiente social está empestado de ideias feitas que favorecem os interesses deste ou daquele grupo social. É vulgar um assunto ser abordado em certas zonas de modo diferente de outras mas sempre houve um grupo social dominante que consegue que as suas posições tenham valimento mais generalizado e as suas ideias vão corroendo toda a sociedade. Cada vez mais porém se não pode estabelecer uma demarcação clara da propriedade de certas opiniões porque se formou um caldo intragável de cultura.
Por um hábito que se criou no nosso País é hoje normal atribuir o tipo de justiça que mais impera na nossa sociedade a quem detém o poder. É uma dedução simplista porque na verdade a justiça é um castelo tão complexo de ideias, com tantos contributos e satisfazendo tantos interesses que já não mais se encontrará quem assuma a suas paternidade. Inclusive os membros da corporação da justiça tudo fazem para defender os seus próprios interesses.
Todos sabendo que as coisas assim são e que o nosso modelo é favorável a muitos desvios perpetrados por quem tem a oportunidade de participar na feitura das leis, na fiscalização do seu cumprimento, na sua aplicação, todos temos a imensa ânsia de encontrar um só responsável por tudo isto, de corporizar o mal, de lhe dar uma estrutura de carne e osso, a única com que nós primariamente nos sabemos relacionar.
Quanta maior for a ansiedade, maior é a facilidade com que cedemos a identificar os problemas com quem está mais à mão. Porque assim já procederam católicos, Hitler e outros, com os resultados que se conhecem, não podemos enveredar por esse caminho. Procuremos os responsáveis dos problemas noutros lados, sem personalizações excessivas e, se lá chegarmos, primeiro em nós mesmos e muito em quem nós permitimos que fale por nós.
Na verdade a iniquidade já não está nas pessoas, mas nos sistemas que fazem uma aplicação falseada de ideias que abstractamente merecem o apoio de quase todos. A injustiça já não surge do capricho, como antigamente, mas do engenho. Quando nós estávamos secularmente preparados para nos defendermos das pessoas eis que verificamos que a nossa vulnerabilidade é sistémica.
Continuamos a defender, sem o saber, ideias erróneas. Elas entranharam-se em nós e o que é mais grave na nossa vida de relação. Continuamos a assumir a defesa de certas ideias que só com muita manha se mantém no rol das ideias defensáveis, e que fazem com que quem as assume com facilidade lhe atribuem aquele ar de respeitabilidade que se exige no relacionamento social. E isso contribui para dar razão por vezes a quem a não tem.
É igualmente inquietante que as pessoas não possam fazer justiça entre si com base em acordo porque o sistema de justiça o não permite. Também a razão raramente está toda do mesmo lado, mas não é normal não estar de lado nenhum. Em quase todos os acontecimentos que são base de litígio entre as pessoas se encontram antecedentes, condicionantes que os agentes de justiça utilizam para retirar a responsabilidade aos dois lados e a culpa morre solteira.