sexta-feira, 29 de outubro de 2010

O virtuosismo e a perfeição do número

O número é uma evidência que se nos impõe na tradução da realidade. A palavra é uma construção muito mais livre que nos permite descrever com mais ou menos subjectividade essa realidade. O número e a palavra derivam pois de um acto de criação de diferente natureza. O número tem a sua utilização mais básica na distinção entre quantidades, mas todos os fenómenos se podem traduzir em números. O número em si não é uma criação humana, porém essa tradução da realidade em números é um trabalho humano. Podemos dizer que o número é anterior à palavra, porém o seu uso levantou problemas que só a palavra permitiria colocar e resolver.
Sobre o número criaram-se palavras numa dupla linguagem simbólica com uma só tradução fonética. As sequências 1, 2, 3, … e Um, Dois, Três, … são símbolos diferentes mas que têm a mesma tradução. Números mais complicados podem porém levantar problemas. A notação constituída pelos algarismos e outros símbolos matemáticos é a mais expressiva para os estudiosos mas é perfeitamente inelegível para muitas pessoas. As palavras que remetem para números podem ser dispensáveis para os estudiosos, mas são indispensáveis para os outros.
A palavra e o número ajudam-nos a interpretar a realidade e a chegar ao que nela é mais verdadeiro. O número e a palavra completam-se nesse trabalho. No entanto há um domínio que só o número consegue traduzir no qual a palavra é perfeitamente acessória. Tal porém não retira a magia que a palavra adquiriu no imaginário das pessoas, algumas das quais reservam boa parte da magia da palavra para o domínio da revelação. Só que a complexidade adquirida pelo número com grande rapidez remete a sua magia para domínios mais dificilmente acessíveis.
Como todas as linguagens a dos números também tem as suas regras sem as quais seria impossível transcrever a realidade. Porém a linguagem das palavras permite a sua utilização com regras básicas simples e que as pessoas assumem empiricamente até um nível razoável para a vida prática. A linguagem do número é desde o início de uma grande complexidade. Só chegamos de um dado número a outro através de complexas operações que permitem simplificar a realidade e só são possíveis de executar por iniciados.
Em primeiro lugar há necessidade de escolher um sistema de numeração porque seria impossível obter um carácter, dito algarismo, para um volume de números que é por natureza infinito. O sistema mais simples é o binário em que só são utilizados dois caracteres, o 0 (Zero) e o 1 (Um). Neste sistema o número significativo começa sempre por um 1 (Um) e este numa dada posição tem sempre o valor duplo do que o mesmo 1 (Um) tem na posição à sua direita. O sistema binário adquiriu uma grande projecção com a informática que inverteu a relação entre números e palavras ao atribuir um número a cada letra.
O sistema mais conhecido é o decimal que usa os caracteres de 0 a 9. Neste sistema cada carácter numa dada posição tem sempre o valor dez vezes superior ao que o mesmo carácter tem na posição imediatamente à sua direita. São possíveis sistemas com mais de dez caracteres usando-se neles letras a quem se atribui um valor. Assumem assim o papel de novos algarismos numéricos. Quanto mais algarismos usar um sistema de numeração mais curto será o número de algarismos que ele precisa para designar uma dada quantidade. No sistema binário o número 1000 corresponde no sistema decimal ao número 8.
O sistema decimal é o que tem uma transcrição imediata para a linguagem das palavras. Em qualquer sistema o número designa uma quantidade, porém necessitamos de uma conversão para o sistema decimal para que a nossa mente tenha um entendimento apropriado, em especial se a quantidade for demasiado grande ou demasiado pequena. No entanto uma quantidade é uma quantidade precisa e neste caso a palavra assume todo o seu rigor ao designarmos essa quantidade.
O número tem como principal característica a precisão. Se existe aleatoriedade ou imprecisão na realidade também esses factos podem ser traduzíveis em números. Com o número o homem pretende quantificar todos os possíveis domínios em que a realidade se pode distinguir. É essa quantificação que lhe permite actuar sobre a realidade. As grandes vantagens do uso do número são a relação entre fenómenos simultâneos ou sucessivos e a comparação entre acontecimentos da mesma natureza que ocorrem em tempos diferentes.
O virtuosismo do número fascina a mente humana, de tal modo que esta acredita poder construir com o número um mundo perfeito. Na verdade o número é capaz de traduzir tudo o que a realidade comporta e não faz a distinção entre o que será eventualmente maléfico ou benéfico para o homem. A palavra permite definir outras categorias não facilmente quantificadas com influência na nossa vida. O número é perfeito, a palavra está contaminada por alguma imperfeição humana.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

O republicanismo como princípio válido

Temos tanta vontade de comemorar algo que quando não temos nada para o efeito somos levados a fazê-lo do irrelevante. Precisamos de modo premente de ter algo a celebrar, algum momento que, tendo sido decisivo e favorável, pelo menos tenha ajudado a que o nosso percurso não tenha sido pior do que tem sido. Sendo assim custa-nos distinguir entre aquilo que é significativo e aquilo que se destina apenas a encher número.
O caso das comemorações do Dia da Implantação da Republica, o 5 de Outubro pode-se incluir entre aqueles que tinham perdido quase todo o significado por ter entrado numa rotina incaracterística. Subitamente este ano o 5 de Outubro reapareceu, foi um relativo êxito, chamou a atenção, despertou a curiosidade para o momento em que ocorreu a mudança e para que se clarifique o que distingue dois regimes assentes em pressupostos claramente divergentes.
Na nossa história o 5 de Outubro não tem comparação com as Descobertas, o nosso maior feito. Tendo sido uma rotura, não foi no entanto um avanço imediato e significativo. Foi tão só um começo, um momento dado já muito antes por inevitável, mas de que o seguimento foi sempre uma incógnita. A esta afirmação de republicanismo viriam a faltar muitas outras condições para que a nossa caminhada pudesse ter sido mais auspiciosa. Na verdade quase tudo falhou ou foi reversível.
O Marquês de Pombal e o Liberalismo Monárquico haviam feito muito mais pelo País que os 16 anos de Republica foram capazes de fazer. A Primeira Guerra Mundial foi um desassossego para nós. Salazar haveria de eliminar quase tudo o que a I Republica fez, mas não eliminou as transformações operadas nos séculos anteriores. Para Salazar o primordial era eliminar tudo o que cheirasse a I Republica. Essa obsessão haveria de condicionar toda a sua acção.
Noutros 5 de Outubro já tínhamos sentido o vazio, um sentimento de tempo perdido, sem outra repercussão que não fosse a de mais um dia feriado. Felizmente que neste ano do centenário o 5 de Outubro readquiriu algum sentido mercê da visibilidade que lhe foi dada. Subitamente conseguimos vislumbrar para além da noite salazarista uma luz que resplandeceu e nos iluminou um pouco mais os dias de hoje. A campanha salazarista contra o republicanismo, em todas as suas implicações parece ter-se desvanecido, enfim.
O republicanismo é um princípio solidamente arreigado, que nem Salazar conseguiu desrespeitar em alguns dos seus aspectos, mas que merece mais aperfeiçoamento e difusão. Porém nenhum princípio se pode afirmar pela negação de um qualquer outro. Também o republicanismo se afirma por ser aquele que mais se coaduna com a condição humana, na sua diversidade e na sua luta contra a degenerescência.
A comemoração do derrube da monarquia seria pouco porque quando outras condições são propícias, e a monarquia nem sempre é nefasta, a sociedade é capaz de se desenvolver e de grandes conquistas civilizacionais. Mas o facto de a monarquia ter alguns momentos positivos é muito pouco para a defender. A mobilidade social tem que ter plena expressão pela possibilidade de acesso de qualquer um a qualquer cargo ou função na sociedade. Não é legitimo que se imponha um lugar à nascença seja qual for esse lugar e seja qual for a estirpe de quem o ocupa.
O republicanismo já se impôs à consciência universal de modo que mesmo onde há reinados ficou o Rei mas morreu a função que tradicionalmente lhe estava associada. Só que tal situação é ainda mais negativa porque impede outro tipo de soluções do tipo presidencialista que se adaptaria melhor às características de alguns países. Melhor que um Rei fraco seria melhor um Presidente forte.
A verdade é que no mundo ocidental em geral as situações de monarquia que resistem e sobrevivem o fazem mercê de uma escolha implícita feita pela população. Esta entende que o Presidente do País não necessita de mais poder do que genericamente é outorgado aos Reis. Mas tal resulta num equilíbrio instável de todo improvável que se mantivesse sem rotura neste País. Nós adaptaríamos de bom grado uma forma presidencial, mesmo imperial, mas não toleraríamos um Rei de pacotilha a fazer figuras caricatas e a navegar entre o trágico e o ridículo.
Como quando ocorreu a implantação da República tínhamos um Império que havíamos segurado a custo com o beneplácito inglês há quem pense em que estaríamos bem. Na verdade não tínhamos arcaboiço para desenvolver tão vastas terras nem com Monarquia, nem com Republica, nem com a ditadura de Salazar. Depois do segregacionismo de Salazar só nos restou sair do Império pela porta pequena.
A ideia sebastianina de um Rei forte ou de um Presidente forte surge periodicamente na consciência nacional. No entanto é hoje evidente que nos colocamos numa situação de dependência do exterior que não permite tais soluções. São muitos os poderes que se cruzam e o político tem sido o poder que mais tem perdido com esta evolução. A situação parece propícia para um demagogo qualquer aparecer a reclamar para si a solução de todos os problemas pátrios. Felizmente o republicanismo contribui para que venha ao de cima o bom senso imprescindível para ultrapassar este difícil momento de modo democrático e participado.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

A busca incessante da palavra

A palavra é a mais fantástica realização do homem. Ela permitiu a fixação do significado da “coisa” e o avanço para a definição de “coisas” cada vez mais complexas. Isto, na sua aparente simplicidade, não é nada de banal. Conseguir intelectualizar a realidade, mesmo que com o apoio da imagem, do som e da memória doutras sensações proporcionadas pelos outros orgãos humanos, é uma tarefa só possível com a palavra. Traduzir tudo pela palavra tem sido um trabalho árduo a que o homem se tem dedicado com perseverança há séculos.
O homem normal, se assim podemos dizer, e o intelectual, pressupondo que este é o homem que adquiriu a capacidade de trabalhar mais facilmente com a palavra, preocupam-se em que a sua palavra tenha uma correspondência inteligível com a realidade. No entanto o homem não tem, mesmo no seu delírio, a necessidade de criar palavras que não tenham correspondência na realidade. Os estados de espírito que pressupõem algum devaneio dão uma imagem distorcida da realidade, mas não se afastam dela. Só mesmo a palavra permitirá um reacerto, algum recentrar do homem nessa realidade.
Dominar a palavra é dominar a realidade, é conseguir a imagem intelectual mais aproximada, menos equívoca desta realidade. Sem dominar a palavra podemos ter a noção da tendência, o efeito da onda, a premunição do impacto, mas não compreendemos os fenómenos, nem conseguimos agir sobre eles. Com o domínio da palavra nós podemos chegar aonde nem a imaginação nos levaria, ficar aonde a sensatez não nos aconselharia parar sequer. Só a palavra nos permite uma visão da realidade imune à influência das próprias forças que a constituem. Só a palavra nos permite um caminhar sem sobressaltos e uma paragem num tempo que nos agrade mais.
Sem o domínio da palavra, o homem dá imensos saltos no seu pensamento, até se poderá tornar mais destemido, porém é um ser menos consistente. Ninguém terá conseguido preencher os interstícios existentes no domínio universal da palavra, nem sequer as lacunas existentes no seu próprio pensamento de modo a poder ter a garantia de que segue o seu caminho com segurança. Porém, na vida prática, poucos se podem estar a preocupar em cimentar intelectualmente esse caminho, é mais prático cimentá-lo financeiramente. Daí as falhas que podemos detectar no esforço discursivo da maioria.
Haverá muitas outras formas de realização, parecendo mesmo despiciendo, ou pelo menos excessiva para muitos, esta preocupação com a palavra. Ser médico, engenheiro, advogado, informático, humorista, cantor, empresário é para muitos de maior importância, embora seja cada vez mais evidente a preocupação com o domínio da linguagem apropriada à sua função, com o domínio das palavras que remetem para o seu universo, o que já revela alguma preocupação com a palavra na sua utilização mais genérica e participada. No entanto é sempre possível distinguir entre o uso mais interesseiro ou mais participativo da palavra.
A palavra permite o discurso que é uma forma de navegar sem remos, sem velas, sem correntes de qualquer espécie. Porém o discurso também se pode desenvolver sobre correntes e necessita então de descodificação. Podemos construir múltiplos discursos sobre a palavra. De certo modo podemos dizer que a palavra perdeu ou nunca chegou a ganhar precisão porque ela se não impõe por si só. Assim o discurso sofrerá sempre de um grau de imprecisão razoável. Põe-se o problema a quem caberá garantir a uniformidade significante da palavra.
O formalismo empregue na criação das palavras, tanto quanto o formalismo usado na criação do discurso permitem-nos alguma segurança com uma interpretação uniforme. No entanto a intenção é parte integrante do significado atribuído à palavra, pelo que estar de sobreaviso é a atitude mais acertada. Criam-se linguagens próprias para que com as palavras se atinjam efeitos determinados. Esta possibilidade de uma mesma palavra ser usada em diferentes linguagens reduz em muito a credibilidade dessa palavra, e por extensão da palavra em geral. Teremos que compreender, mas não aceitar que a diversidade dos caminhos crie interpretações diferentes.
A palavra adquiriu a capacidade de produzir em nós um efeito psicológico que nos prende à interpretação mais autêntica que lhe atribuímos. Porém não produz em todos e a todo o momento o mesmo efeito. A inteligibilidade da palavra pode exigir que se lhe retire a roupagem que lhe tenha sido posta. O rasto, a impressão que nós associamos a uma palavra é uma faca de dois gumes. Esta impressão pode mesmo ser vincada, causar uma sensação de alívio ou pelo contrário, constituir um elemento de pressão, uma carga psicológica que se vai acumulando.
A palavra não nos incomoda se conseguirmos que outrem a não aprisione. Porém, quando retida para uso em contextos pré-definidos e tendenciosos, a palavra pode mesmo dilacerar-nos. Isso pode acontecer se for manipulada por quem está no poder ou por quem o ambiciona e pensa estar perto de o atingir. Mas também quando as intenções de quem a profere são ingénuas, isto é, já não traduzem uma intenção declarada. Só que o uso inadequado da palavra também ajuda a revelar as lacunas da personalidade. Doutra forma não lhes teríamos acesso, pelo que é pela boca que “morre” o peixe. A palavra é a fonte e está no centro da nossa civilização.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

É Bom Ser Português... ... ... Lá fora

Esta afirmação tem sido expendida por vários e eminentes portugueses que as vicissitudes da vida levaram a outras paragens onde passaram parte significativa do seu tempo. Disse-o recentemente Luís Figo no seguimento de outros de quem em Portugal é posta em causa a honorabilidade a propósito de casos de contornos que não são da sua responsabilidade. Quem não terá acreditado foi Carlos Queiroz que, depois de vários sucessos lá fora, que lhe trouxeram admiração e notoriedade, acabou por vir para cá para sucumbir sem glória nas praias lusitanas.
Prometo não continuar no mundo do futebol, não porque tenha contra ele qualquer aversão, mas porque tão só é um mundo em que as ideias se trucidam umas às outras. As opiniões são limitadas, como em tudo que é tão fugaz, e os opinadores são mais do que muitos. O futebol é um mundo em que só os génios conseguem ser originais, tanto dentro do campo, como na teorização do jogo, e aí teríamos que nos vergar todos àquelas personagens que nos vão dando algum estímulo para continuar a pensar que há sempre algo em que podemos ser os melhores do mundo.
Do futebol podíamos passar para a política, até porque não faltará quem diga que este problema da nossa frustração por estarmos cá dentro e não fugirmos todos lá para fora é mesmo político. Concordamos que também aqui neste domínio acontece o mesmo fenómeno que no futebol. Pessoas cá vilipendiadas são lá fora enaltecidas. Se no futebol a culpa é nossa, também terá sido pelo nosso mau humor que personagens com o sucesso externo de Guterres e Barroso não foram cá aproveitadas e o foram lá fora após terem cá tido desempenhos a nosso ver medíocres ou mesmo maus.
Como no futebol o que cá se joga seria péssimo, não fora a contribuição dada por tantos estrangeiros que cá estão, também na política se pode presumir, para nossa desgraça, que os piores terão cá ficado, quando já tinham experiência e idade para se lançarem noutros voos. O problema é que ninguém os quis. Lá vamos nós ter de escolher entre aqueles que não nos largam porque, infelizmente, acham que este é o lugar deles, seja o Cavaco Silva, seja o Manuel Alegre.
Claro que na política as opiniões são mais do que no futebol e o produto posto à discussão do público é muito mais trabalhado, com maior complexidade. Mas lá estão José Sócrates, com a sua persistência razoável para nos acalmar sobre os desafios que nos esperam e Passos Coelho, com a sua truculência light para nos sossegar sobre as tragédias que Ferreira Leite nos havia prometido aleivosamente, mas que também ninguém pode negar de modo absoluto. Sucesso evidente, insofismável nenhum vai tendo, restando talvez esperar que algum falhe para que se lhes dê valor lá fora.
Esqueçamos também a política enquanto não aparece outro político que cá seja ultrajado e louvado lá fora. Vamos para o domínio do trivial em que a culpa não deixará de ser igualmente nossa. Muitos têm sucesso lá fora quando dizemos que para nada serviriam aqui. Infelizmente a maioria pode ser referida mas apenas esporadicamente na imprensa nacional. Mesmo assim todos sabemos que cá medra o bom e o ruim, mas temos de recorrer ao estrangeiro para criar os nossos Ídolos.
Só passando a fronteira se vê a qualidade da colheita que cada um dos cá nascidos pode proporcionar. Na nossa boca não deixamos passar nada, mas também não estamos muito convencidos da nossa razão. Estamos na disposição de condenar todos, mas também de os perdoar a seguir, convencidos que parecemos estar de que, com a nossa palavra o mal está feito e se não vai esvair. Ou será que o mal feito é o húmus da nossa vida?
Andamos todos sobre terreno minado no qual é impossível definir um rumo. Se não nos tivessem criado tantas dificuldades talvez fossemos mais ousados. Porém não nos deixaram rasto de uma caminho a seguir, capacidade para discernir. Deixaram-nos no mar alto, temos visões ondulantes que se não deixam fixar em objectivos tangíveis e visíveis para todos. Não nos afastamos do mais seguro e rotineiro, com receio de nos perdermos.
Quando estamos no estrangeiro trabalhamos para aquilo que esperam de nós. Cá trabalhamos para aquilo que de nós esperamos. Como não sabemos aquilo que podemos exigir a nós próprios, também não o sabemos definir para os outros. Lá fora queremos agradar a quem nos paga. Cá dentro queremos agradar a todos aqueles a quem não definimos como inimigos, o que é o caminho garantido para não agradar a ninguém.
Por fora o mundo abre-se-nos gracioso, brilhante, atractivo. Por cá o mundo tem sempre uma sombria nebulosa de maledicência, de inveja, de desfaçatez. Avançamos para o mar alto com decisão, audácia, destemor, para longe dos olhos que nos tolhem. Conformamo-nos a construir castelos na areia quando antevemos o mar bravo e o nosso ânimo esmorece. Mesmo sem serem grandes, entretemo-nos a destruir à socapa os castelos dos outros. Até nas brincadeiras privilegiamos o jogo sujo.