sexta-feira, 24 de abril de 2009

25 de Abril … Sempre!

25 de Abril … Sempre!! Esta afirmação mantém-se viva na minha memória, relembrando-me constantemente que tive o mérito de ainda ter vivido a data mais marcante no último meio século português.
No entanto não é o mérito pessoal de ninguém que garante o mérito colectivo de quem então procurou resolver problemas que já vinham há décadas sem solução. Todos nós nos atribuímos intenções cuja pureza haveria de ser posta de alguma forma em causa pelo desenrolar dos acontecimentos que tiveram múltiplas influências internas e externas.
O que hoje pensamos não coincide necessariamente com o que pensávamos à época. Então muitos de nós fomos mesmo apanhados de surpresa. Foi com indiferença, entusiasmo ou medo, sentimentos muito diversos, que vivemos esses factos que constituíram a radical mudança há tanto tempo reclamada. Foi essa forma como vivemos esses momentos únicos que determinaram o desfecho que os problemas encarados viriam a ter.
A nossa impreparação era tanta, o contexto internacional era para nós tão complexo que não restarão dúvidas que só com o tempo a maioria de nós foi afinando a sua bússola, sabendo por que caminho havia que seguir, conciliando a realidade pessoal com a realidade social, construindo uma nova identidade perante a liberdade. Seria a má consciência de tantos que por má conselheira levou a muitos aventureirismos.
A realidade social teve um peso imenso na atitude que a maioria tomou perante o 25 de Abril, apática a montante, em relação às suas causas mas decisivamente a jusante, em relação às suas consequências. Quanto a estas as divergências resultaram em muito, além doutros factores, da região em que nos inseríamos.
A maneira como genericamente os Limianos viveram o 25 de Abril foi diferente, com a expectativa própria de quem nunca se empenhou seriamente na queda do regime anterior, de quem encara a economia com tanta ou mais displicência com que encara a política e portanto não encontrou razões obvias e imediatas para se envolver.
Também, se outros já tiraram conclusões definitivas há muito, porventura muitos de nós ainda não somos capazes de assumir frontalmente o nosso apoio ou o nosso repúdio pela mudança que ocorreu. Muitos dirão que muito falta mudar, mas nem esses estão de acordo sobre a balanço a efectuar. Se as intenções de muitos ficaram sem satisfação em compensação outros aproveitaram oportunidades nunca antes pensadas.
Houve mudanças drásticas na super estrutura económica que cá não se fizeram repercutir e que se haveriam se reverter sem perca nem proveito que se vissem. Por todos os motivos falar delas é despiciendo. As mais importantes mudanças que a nossa sociedade tem sofrido derivaram da influência que outras realidades trazidas pelos meios de comunicação cá tiveram, pela influência directa da nossa entrada nas Comunidades Europeias e pela posterior adesão do nosso País ao Euro.
Estas foram mudanças para ficar, que alteraram a estrutura social, que, se nos tornaram dependentes do que vier a ocorrer noutros países, nos deram por outro lado a possibilidade de sermos actores principais, de termos um papel a desempenhar na Europa, no Mundo, enfim no futuro que temos que saber aproveitar.
O 25 de Abril impõe-se mais como o ponto inicial desta viagem pelos caminhos da civilização e pela abertura que nos permitiu sonhar, pensar, realizar e não ficarmos só por sonhos patéticos e utopias loucas que o momento proporcionou a alguns. O 25 de Abril foi a largada para esta caminhada que foi correria às vezes, se tornou passada curta em algumas ocasiões, que teve atropelos, retrocessos, falsos avanços, mas que num sempre provisório balanço se tornou vantajosa.
No cômputo geral, tirada a linha tendencial, o 25 de Abril revelou-se altamente benéfico para nós, para a nossa dignidade individual e colectiva, para a nossa afirmação como pessoas que têm direito a ser diferentes, respeitadas e com iguais oportunidades e para a nossa afirmação colectiva, como povo generoso, audaz na aventura, comedido na celebração, solidário na dificuldade e que terá vantagem em se não deixar diluir.
Pessoalmente, vendo o 25 de Abril com os sentimentos de esperança que partilhava 10 anos antes, teria que o ver agora com frustração. Na época houve uma euforia incontida que depressa se tornou entusiasmo comedido. 10 Anos depois já só restava resignação com um sentimento de alívio. E um sentimento de gratidão ao Partido Socialista por nos ter libertado de muitas dificuldades.
Colectivamente o 25 de Abril é quase unanimemente aceite como a transição possível com os condicionamentos e com as pessoas de que era possível dispor. A contestação ao 25 de Abril é hoje residual. Afinal os danos colaterais foram reduzidos perante as benfeitorias que o 25 de Abril no trouxe. A conquista da liberdade depressa se tornou sólida mediante um certo equilíbrio que se estabeleceu entre as forças políticas. Se não é a liberdade ambicionada é a liberdade possível para as nossas capacidades.
A democracia, a liberdade são hoje tão naturais que os mais jovens nunca terão a consciência perfeita do que foi necessário lutar, dos sacrifícios feitos, das humilhações e vergonhas passadas. Na política temos o handicap de nunca podermos comparar directamente, de nunca podermos voltar atrás para fazer as coisas de outra maneira, de saber os resultados que obteríamos se tivéssemos procedido a outro gosto.
A política não é o domínio da racionalidade, está condicionada pelas emoções, pelos instintos, pelas conveniências, pelas circunstâncias quando estas têm atrás de si todo o peso de uma realidade social imóvel de séculos ou influenciada pela histeria das ilusões fugazes. A história tem outras obrigações, está sujeita a outros ditames, que não o capricho ou a ignorância. E a história deu-nos razão.
O 25 de Abril já pode ser visto por esse prisma mais distante mas mais seguro. A este 25 de Abril que a história nos mostra eu direi: 25 de Abril ... Sempre! Se não nos trouxe tudo o que esperávamos, mesmo assim a este 25 de Abril que nos permite traçar uma linha com a liberdade suficiente para a irmos adaptando conforme o que o nosso juízo político mais imediato nos for sugerindo. A este 25 de Abril eu direi: 25 de Abril … Sempre!

sexta-feira, 17 de abril de 2009

O João Pereira, uma Figura Limiana ímpar

O João Pereira era uma figura ímpar em Ponte de Lima. O João da Havaneza, o João do Banco, por onde passava, o João de quem logo se falava era o João Pereira. Cedo o seu Pai, o Sr. Adélio, o Sr. Adélio da Assembleia, o Sr. Adélio do Cinema, o Sr. Adélio Tipógrafo deste Cardeal Saraiva, outra figura multifacetada e incontornável na vida social do seu tempo, o empregou na Havaneza, então a Pastelaria de referência em Ponte de Lima.
O João Pereira tornou-se conhecido de toda a gente limiana e não só, pela alegria contagiante que sempre demonstrava, passando a ser convidado de honra em casamentos e baptizados, matanças de porco e festas de anos, fosse em casa de Abades, fosse na dos Lavradores mais ou menos abastados. Animava quem com ela convivia, partilhando da sua natural exuberância e despreocupação.
Pelo conhecimento que tinha das gentes do concelho, o BPSM haveria de o vir buscar para prospector da sua agência de Viana do Castelo. Não havia comerciante ou pessoa de alguns ou poucos cobres que ele não conhecesse e a todos tratava com a mesma deferência, em pé de igualdade. Mais tarde ingressaria no Banco Borges & Irmão de Ponte de Lima, primeiro Banco além da CGD a se cá instalar, e que ele ajudou à grande projecção que viria a ter.
Era natural que não conhecesse as grandes regras do marketing, as manobras elaboradas de sedução para vender produtos financeiros, não era uma pessoa preparada propositadamente para esta ou aquela actividade comercial em particular, mas pela sua afabilidade depressa se adaptava a qualquer uma. No balcão da Pastelaria ou no do Banco a sua postura criava a confiança em todos que a ele se abeiravam.
João Pereira era amante da boa mesa, facto por alguns denegrido, mas que nele se integrava com naturalidade numa forma de viver, de estar, de conviver, enfim numa forma de cultura com cultores em todos os estratos sociais e que não deve ser isolado dos outros aspectos que podem ser utilizados para caracterizar uma pessoa. Sempre bem humorado, com uma jovialidade que a idade não deteriorou, sempre se manteve fiel às imensas amizades que foi estabelecendo ao longo da vida.
É o caso do meu Irmão António, seu grande amigo desde a infância, já anteriormente falecido e que com ele conviveu até ir para a tropa e se empregar em Lisboa e depois Abrantes. Mas sempre que cá vinha, eles reviviam os momentos passados e mantinham viva a sua velha amizade. Ambos do tempo em que muito se trabalhava, lembro-me que o meu irmão, para fazer render bem o domingo, ia à missa das sete e lá encontrava o João.
Finda a missa, iam matar o bicho ao Augusto, que a sua esposa Carminda, tia do João, já estava a fritar uns bolinhos de bacalhau para o efeito. Mas o João tinha de ir para o seu trabalho, coisa a que ele nunca virou a cara, assim como à festa, sempre que ela se justificava. Com uma bonomia quase inigualável, o seu trato impedia que mesmo a agressividade de muitos nele esbarrasse de modo desarmante e amenizador.
Sempre se manteve fiel ao ideário político que reconheceu em Sá Carneiro a quem atribuía a capacidade para interpretar o sentir nacional e gerir com harmonia e sem grandes sobressaltos uma sociedade em transição. Mas não era atreito a discutir política que saísse daquelas verdades que tinha aceite, nem a ser agressivo ou a pôr inoportunamente em causa as ideias alheias.
O João Pereira dava à política um espaço reduzido na sua vida e entregava-se ao convívio diversificado com uma sinceridade inquestionável. Quando se verifica que a vida se tornou cada vez mais um jogo de interesses, em que tudo se confunde e se compromete perante o vislumbre de uma qualquer carreira ou “ascensão” social o exemplo do João Pereira é de salientar.
O João Pereira era um livro aberto, sem subterfúgios, sem teorias rebuscadas para justificar o obvio. Assumia com naturalidade aquilo que é natural, não confundia a vida pessoal com qualquer outra vida que envolvesse interesses mesquinhos. O facto dos seus patrões terem sabido aproveitar o seu vigor e a sua vida pessoal para efeitos da sua vida profissional só são sinal do valor que ele tinha, sem necessidade de ter ido além da escolaridade obrigatória, como era normal no seu tempo.
No João Pereira tudo era claro, de tal modo que haverá detractores que salientam em tantos anos de vida um ou outro pequeno deslize ou excesso, que nunca molestaram ninguém e tinham a compreensão, a benevolência e a cumplicidade dos seus amigos.
Quem pense que um Grande Homem é um santo incolor e inexpressivo ou um nababo resplandecente e luzidio está decerto enganado. O João Pereira era um Grande Homem porque viveu a sua vida com um autenticidade difícil de igualar.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

O ascendente da política sobre a economia

Duas poderosíssimas forças se digladiam, se conluiam, se harmonizam perante a nossa clara impotência. Desde que a economia assumiu o seu papel na sociedade, libertou outras forças e as pôs a colaborar no sentido de obter novos bens que não só os naturais, que a política, até aí única força dominante na sociedade, com a fiscalização mais ou menos próxima, mais ou menos comprometida da religião, vem travando uma luta inglória pela reconquista da hegemonia.
Cedo os políticos liberais e libertários se aperceberam que era necessário que a política tivesse uma independência total da religião e um ascendente claro sobre a economia, que esta se submetesse àquela, que fosse a política o intérprete dos interesses gerais da sociedade. Na realidade, mesmo que não quisessem que houvesse promiscuidade, os políticos raramente têm capacidade para resistir à força da economia.
No caso português a economia nunca teve um papel notório nem mesmo antes de Salazar, quanto mais na ditadura deste. A política sempre foi preponderante e os agentes económicos sempre foram subservientes perante ela. No entanto não era este ascendente que os políticos democráticos pretendiam ter. Após o 25 de Abril e após um pequeno período de capitalismo de Estado mal definido, até foi a política que mais contribui para que a economia ganhasse uma nova energia, se libertasse de uma tutela castradora, obsessiva.
Cedo a economia portuguesa se integrou para o bem e para o mal na economia europeia e através desta na mundial. De forma que até podemos dizer que houve sectores da economia que aprenderam bem mais depressa os esquemas fraudulentos que os processos honestos. De tal modo que a crise financeira mundial trouxe à tona da água iguais problemas àqueles que são correntes nos países mais avançados, baseados na mesma ganância, aventureirismo e inebriamento argentário.
De repente a economia parece ter ficado de gatas perante a toda-poderosa política que agora sim, parece não ir deixar a oportunidade de a submeter, à economia, a regras que a ponham a contribuir tão só para o seu fim específico. Mas nunca o será com o beneplácito da direita, ainda a sonhar com as benesses do neo-liberalismo, e que quer deixar que a economia tome de novo as rédeas do poder, se auto governe, se auto satisfaça e se auto destrua, se for caso disso.
A direita que não é suicidária estará pronta a arrepiar caminho. Mas cabe à esquerda fazer algo mais, tomar a iniciativa de lançar princípios que não sejam os velhos princípios igualitários, sem mérito e sem credibilidade, mas novos princípios que moralizem a distribuição e o uso do dinheiro. As medidas que podem ajudar a definir esses princípios são:
Começar pelo fim dos paraísos fiscais, contra os múltiplos interesses que lutam pela sua manutenção, mesmo que já se resignam a menos benesses. Depois há necessidade de tornar claras as condições do empréstimo de dinheiro e da tomada de empréstimo do mesmo. Só pode emprestar dinheiro quem o tem e só pode pedir empréstimos quem possa pagar os encargos respectivos.
Não é admissível que se invista dinheiro na depreciação de qualquer tipo de bens, sejam mobiliários ou imobiliários. O investimento tem que ser feito pela positiva e com o conhecimento de toda a espécie de riscos que sejam plausíveis, sendo que o seu grau de probabilidade será sempre uma incógnita. A economia não necessita dos complexos produtos financeiros, criados com o único fito de mistificar a realidade.
Ser proprietário não significa ter o direito a usar discricionariamente os seus bens, nem mesmo os rendimentos que deles possam advir. É necessária a consagração do dinheiro, das empresas, das organizações como bens sociais cuja utilização e usufruto devem obedecer a regras claras. Impõe-se uma gestão providencial, que tenha em conta o interesse social e o futuro, incluindo o seu próprio ciclo de vida.
Têm que haver entidades que se interessem pela viabilidade e vitalidade de cada negócio e que tenham os poderes de autorizar e fiscalizar a sua actividade, nomeadamente dos desvios que desvirtuam o fim para que cada empresa é criada. Tem de ser encontrado uma conciliação favorável entre a livre iniciativa e o condicionamento que se impõe em sectores em que a anarquia que se instala é prejudicial.
Com a criação dos negócios especulativos permitiu-se desligar o dinheiro da sua origem no trabalho produtivo e “autorizou-se” que as pessoas fizessem dele o que mais lhes aprouvesse. Sendo de todo impossível terminar com a especulação, é de todo possível impedir que os negócios assentes numa outra actividade ponham a sua própria viabilidade em risco só por quererem entrar num negócio para o qual não têm vocação.
O marxismo pretendeu criar uma relação mecânica entre o trabalho e o dinheiro. A tentativa de a levar à prática na URSS revelar-se-ia um fiasco monumental. Mas o forrobodó neo-liberal que se seguiu à queda do muro de Berlim deu no que deu, nesta crise de contornos tenebrosos. O que esta crise veio provar é que, por mais valor que os bens que hoje se criem venham a adquirir no futuro, continuará a ser o trabalho humano a fonte primordial em que vai assentar a economia do futuro.
E quem senão a política será capaz de impor directrizes para a actividade económica de modo que ela não derive para caminhos duvidosos? Como há duzentos anos se coloca de novo a necessidade da primazia da política sobre a economia. Se não forem tomadas medias quanto antes, verificaremos que o actual ascendente corre o risco de não ser senão passageiro.

domingo, 5 de abril de 2009

A igualdade de oportunidades e a inveja social

A igualdade de oportunidades é a primeira das igualdades e talvez seja a igualdade suficiente para garantir as outras. Há no entanto quem pense que a dificuldade da efectivação de uma séria igualdade de oportunidades deve levar em que se pense como, através de outras igualdades, se pode compensar essa falha e corrigir as desigualdades assim criadas.
Outros dirão ainda que a falta de igualdade não é de agora, tem gerações, e continuamente se agrava. Terá havido um momento primeiro em que todos foram iguais. Depois agrupamo-nos, organizamo-nos em tribos e clãs, em cidades e nações e voluntariamente ou não fomos perdendo igualdade, foram-se definindo funções, foram-se herdando estatutos, foi-se criando um passado colectivo e inveja social.
O Estado Moderno é uma tentativa de repor um certa igualdade à nascença e de contribuir para a não criação de diferenças radicais. Este modelo está longe de ser globalmente seguido embora seja bastante aceite. E cada Estado tem, como as pessoas, um passado representado por sucessivos gerações que confluíram, se sedimentaram e organizaram.
Do nosso passado colectivo se vai deixando um rasto, uma linha de rumo, alguma característica que pode até já já pouco dizer no presente, mas ainda representa uma reminiscência que é levada em conta em momentos decisivos, pronta a desempenhar o seu papel de influência sobre os comportamentos individuais.
Os portugueses são tidos como um povo de conquistadores. Motivo de orgulho para um povo pequeno, vivendo num território pobre e marginal. Mas nunca o senti, nunca participei, nunca me atribui esse rótulo. E se principalmente no tempo da guerra colonial me apercebi que havia quem se sentisse como tal, quem se sentisse vestindo a pele dos velhos conquistadores que um pouco à sorte deambularam por esses mares além.
No tempo da guerra colonial eu aceitava o passado, não renegava as gerações anteriores, mas sentia-me ultrapassado pelos propósitos de então, não me reconhecia neles. Era como se eu sempre tivesse colaborado, participado nas conquistas que haviam sido feitas mas, chegado aqui, tinham feito de mim um conquistado como aqueles que em gerações passadas “eu” ajudara a submeter.
Os benefícios da conquista haviam sido só para uns que permaneceram para sempre conquistadores e não para a maioria que se dispersou misturada com os conquistados. Mas ainda por cima esse pensamento de conquistador sobreponha-se à minha solidariedade para os efectivamente conquistados, o que era a pior lástima para mim.
Esta sensação de estar cá com o coração e lá com o intelecto, de não poder deixar de estar com os meus, com o meu exército, e dar razão àqueles que estão do outro lado é dilacerador para a alma lusitana. Uma nação de conquistadores é uma nação desigual, mas quando persiste no erro para além do razoável perde identidade. Uma nação que não consegue ainda estripar da sua alma essa fonte de desigualdade que a noção de conquista transporta não consegue estar de bem consigo própria.
Estar de bem passa por compreender a razoabilidade das coisas no contexto histórico em que se desenrolaram e a sua reversibilidade natural. Por não darmos aos outros as mesmas oportunidades nossas, eles conquistaram-nas, libertando-se da ignomínia. Também individualmente não estamos prisioneiros de todos os factos que ocorreram na nossa existência. Podemos compreendê-los, ultrapassá-los na medida em que constituíram entraves à realização das boas oportunidades ou tê-los em conta quando favorecem os nossos sucessos.
Só tendo a noção do nosso próprio valor saberemos se aproveitamos bem as oportunidades que a vida nos deu ou se os obstáculos intransponíveis as tornaram impossíveis. E temos de estar permanentemente disponíveis, não obcecados, para corresponder a novas oportunidades. Aquilo que nos faz andar angustiados toda a vida é procurarmos compensar no futuro aquilo que a vida nos não deu no passado. Na nossa conta corrente temos sempre um crédito imenso a cobrar não sabemos a quem.
Atribuímos culpas ao desbarato com a ideia peregrina que alguém se poderá dispor a pagar algum dos créditos que temos à cobrança. Como esta atitude não é nada compensatória, embora nós nos não preocupemos que o justo pague pelo pecador, raramente nos livramos desta esquizofrenia colectiva de que todos somos culpados e vitimas. Porque razões não bastamos nós, as nossas dificuldades e ainda temos que suportar este passado normalmente pesado no seu deficit?
Oportunidades perdidas todos tivemos, mas oportunidades que não nos foram dados foram muito mais e para muitos mais. Oportunidades únicas, irrepetíveis são poucas e os que delas beneficiaram são normalmente egoístas e mesmo gananciosos. Mas é destas que nós pensamos quando falamos de igualdades de oportunidades.
Porquê não termos sido nós a ter uma dessas oportunidades? Porquê não a podermos ainda ter no futuro? Podemos pensar assim se não cairmos na inveja social. Efectivamente esta tem nas mesmas oportunidades o seu campo predilecto mesmo que se não fique por aí. Criadas virtualmente pela inveja social imensas oportunidades ficam por surgir e as que aparecem são avidamente procuradas.
Perante a impossibilidades de todas as oportunidades estarem ao dispor de todos, só nos resta combater a inveja social e estabelecer um limite máximo para as imensas compensações que as tais oportunidades únicas podem proporcionar. Os recursos da humanidade são escassos e só têm que ser aproveitados no proveito de todos, afastando-se o egoísmo, a ganância exacerbada e o parasitismo social.