sexta-feira, 28 de maio de 2010

Sinais para uma imagem renovada da Igreja

São vários os sinais deixados pelo Papa Bento XVI na sua recente visita a Portugal. O Papa abordou muitos dos problemas que a Igreja enfrenta e não escamoteou a sua origem, nem alijou responsabilidades. Ultrapassou o velho discurso da humildade que vise esconder qualquer espécie de prepotência, da palavra que vise atribuir-lhe um certificado de origem e reconheceu ao homem, à Igreja, mas também a todos os homens e a todas as Igrejas a função de desvendar verdades sem esperar que Deus nos las forneça de mão beijada. Bento XVI realçou a importância da revelação interior. Mas comecemos pelo princípio.
Ainda no avião o Papa terá tido a sua mais importante intervenção. Colocou a questão da pedofilia onde ela nunca tinha sido posta de uma forma inovadora. O pecado da Igreja reside nela própria, não está a Igreja imune de gerar o mal. Abandonou assim o discurso da perseguição, talvez porque vinha a um País onde essa lógica não tinha pés para andar. Não só porque se não conhecem flagrantes casos de pedofilia no nosso País envolvendo membros da Igreja, como também não há qualquer razão para dizer que a população e o Estado exercem sobre a Igreja Católica qualquer tipo de pressão para lhe retirar prestígio e poder.
O segundo acontecimento que surpreendeu, mas revela uma opção definitiva da Igreja pelo abandono das pretensões de outros tempos de natureza temporal, foi a referência que fez no discurso do Terreiro do Paço ao centenário da implantação da República e o quanto esta contribuiu para clarificar o papel de cada instância na abordagem dos problemas humanos. O Estado teve o direito de se apropriar de funções que a Igreja só desempenhava até aí pelo facto de ter um carácter mais organizado do que o próprio Estado. A Igreja ficou mais livre a partir dessa altura, reconheceu o Papa.
Depois, no encontro com intelectuais no Centro Cultural de Belém, o Papa veio reconhecer que hoje a Igreja Católica é minoritária e tem que aceitar essa situação, mesmo que em Portugal essa minoria só o seja em relação ao total e a nenhuma outra confissão religiosa. Aqui se nota uma diferença, que não se refere ao valor, entre este Papa e o anterior. João Paulo II era um voluntarista, com espírito de evangelizador, pronto a ser foco de atracção, difusor da palavra, aglutinador dos crentes. Bento XVI é mais frio, intelectualiza os problemas, acredita no pensamento humano, procura razões para o que é incompreensível. Se ainda é o guardião da verdade, já não se reconhece como o guardião da verdade inteira.
A partir deste grande momento da peregrinação do Papa por terras lusas passou a haver uma aceitação por parte da Igreja da verdade dos outros, não que aceite discutir a sua, mas não levantando obstáculos à possibilidade de outras se afirmarem. A estética, a ética também são domínios em que as verdades se podem afirmar. Longe vão os tempos em que até na ciência se procuravam demarcar fronteiras. A Igreja de Bento XVI passa a ter a sua fronteira apenas em Deus e restringe os domínios da revelação exterior.
O que se pode presumir é que a Igreja está a caminho do abandono da velha questão da superioridade moral dos católicos, tema de uma presunção de que são vitimas muitas pessoas. Até Cunhal aproveitou a sua para a atribuir uma superioridade aos seus correligionários. Restará a questão da infalibilidade do Papa, tema adoptado pela Igreja de modo extemporâneo há uns séculos e reafirmado em momentos de crise. Felizmente que este último entrave à aproximação dos cristãos não está a ser brandido agora. Bento XVI não teme o aparecimento doutras verdades e parece aceitar não tentar impor a sua.
Para além de qualquer marca divina, a grandeza deste e do Papa anterior está em que as suas personalidades se caldearam, se solidificaram e ganharam uma dimensão superior devido a um facto que os aproxima. Ambos construíram a sua personalidade nos domínios do Inferno. João Paulo XVI aguentou as agruras dos Infernos nazi e comunista na sua Polónia. Bento XVI, o Papa alemão, sofreu, foi humilhado por muitos dos seus próprios compatriotas que infernizaram a Alemanha e Países circundantes. Ambos se empenharam em não pactuar com sistemas despóticos, anti-humanos, com aspectos selvagens. Ambos estes Papas conheceram na sua exacta dimensão a baixeza e tentaram com os seus meios fazer a exaltação dos valores humanos mais nobres.
Por último o Papa abordou na sua reunião em Fátima com os elementos mais marcantes da Igreja, pastores e interventores sociais, os problemas do aborto e do casamento homossexual, com alguma diferença em face das anteriores perspectivas com que eram apresentados. Bento XVI não colocou o problema da legalidade, antes o da legitimidade com que as pessoas recorrem ao aborto, mesmo que em situações limites. Desta forma incentivou todos a evitarem esse recurso, mantendo o seu carácter de acto condenável face à moral cristã.
Também em relação ao casamento homossexual Bento XVI acha que a legalidade não afecta a falta de legitimidade que atribui às relações homossexuais. No entanto o aspecto que mais critica é a usurpação de uma designação que reportava a uma aliança entre pessoas de sexo diferente. Como muitas pessoas não religiosas e como aliás foi entendido pela maioria dos países que legislaram sobre o assunto, o Papa pensa que o problema poderia ser resolvido sem utilizar uma expressão que tem repercussões históricas, culturais e religiosas.
Sendo um teólogo, um homem de pensamento, Bento XVI apresentou-se na viagem ao nosso País sem receio de sair da tradicional postura defensiva, sem receio das suas palavras e da dos outros. Já não chega à Igreja fechar-se e defender-se. São muitas as actuais dificuldades da Igreja, dos quais o problema da pedofilia é menor e localizado. Importante é o avançar com uma postura minoritária. Bento XVI aponta para a prioridade de um reforço interior em relação a uma expectativa exterior. Depois da queda do muro de Berlim há pouco de tão grandioso a esperar. Terminou (em beleza diga-se, mas terminou) o tempo de João Paulo II.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Lamentamos, mas a violência ainda é o suporte da ordem

A violência é a fonte de todo o poder e o suporte da ordem. Ela pode “exercer-se” através da sugestão ou pela sua efectiva prática, felizmente cada vez mais em desuso. Por essa razão a maioria do tempo os exércitos estão parados. Já está ultrapassado o tempo em que quem detinha poder o usava discricionariamente como forma de o manifestar e impor. A violência era por vezes arbitrária. Porém há ocasiões em que a ausência de violência traz problemas. A violência pode ser benéfica. Seja nas relações internacionais, seja na solução das questões nacionais, seja mesmo nas relações pessoais há muitas situações em que se o mal não for cortado a tempo, o que muitas vezes só pode ser feito com violência, pode trazer dissabores maiores.
Normalmente a violência só é despoletada depois de um grande acumular de tensões entre as partes conflituantes o que faz com que, em caso dum conflito assumir carácter violento, as consequências possam ser muito mais gravosas. Em muitos casos é fácil detectar o crescimento da tensão formando-se uma bolha de violência latente que tanto pode esvanecer como rebentar. Nos conflitos é normal começar-se pela sugestão do uso da violência sendo a escolha do momento para passar à violência prática determinante no desfecho da questão. Porém a sugestão pode ser tida por provocatória e antecipar esse momento.
Também nas relações pessoais deparamos muitas vezes com essa situação ao vermos a bolha da insolência, da má educação, da estupidez, de arrogância a encher, a encher em certos indivíduos que se nos surgem como sapos intoleráveis. O problema é que, por mais argumentos racionais a que possamos recorrer, a sua compreensão do relacionamento entre as pessoas é limitada e tendenciosa. Essas pessoas partem do princípio que dessa forma, sem recurso à violência, obtém poder, mesmo que virtual, porque tal facto já lhes acarinha o ego. A própria argumentação a que recorrem pode comportar violência. O recurso à violência efectiva para dar por finda uma questão pode provocar efeitos colaterais e diferidos que podem tornar a acção contraproducente.
Um conflito só está solucionado quando se encontra um novo equilíbrio que faça cessar a vontade de o alterar. Felizmente que a humanidade abandonou a procura de vitórias absolutas. Algumas manifestações de fundamentalismo causam alarme mas espera-se que as forças democráticas consigam sobrepor-se às forças que ainda tenham essa ambição. No geral hoje todas as vitórias que se perseguem na solução de conflitos são tão só relativas, sempre melhores e humanamente mais justas. Se uma solução não extingue toda a tensão que se tinha criado resta controlá-la e remetê-la para episódios posteriores. Este, como qualquer equilíbrio, pode ter roturas inesperadas, toda a estabilidade é passageira.
Nem todos os conflitos remetem para uma luta de interesses claramente definidos, precisos. Imensas pessoas vêm-se envolvidas involuntariamente em muitas guerras sem nada ter a ver com elas. Envolvem-se nelas porque essas guerras as envolvem e, havendo uma supremacia em disputa, essas pessoas são tentadas a perfilar-se de um dos lados, pelos apelos dos seus intervenientes para a partilha de ganhos e percas dessa luta. Depois nem todas pessoas resistem da mesmo maneira a um envolvimento directo mesmo nada tendo a ver directamente com eventuais interesses em jogo.
Os conflitos nunca são gratuitos mas muitos são dificilmente decifráveis. As alianças que se formam são por vezes estranhas, as fidelidades desrespeitam muitas vezes o que parecia assente. Conjugam-se poderes de atracção e repulsa com proveniências diversas e muitas vezes sem relação entre si. Confundem-se poderes, sugestões, influências, insinuações e ameaças. E o que é bem pior, às tantas não se sabe quem é o responsável, quem despoletou o conflito, quem o alimenta e a quem é que ele interessa. Muitas vezes nem se sabe quem é o mandante e o mandado.
Afinal muitos juntos podemos contribuir para alimentar a violência, para que o rastilho fuja ao controle dos mais responsáveis, mas há sempre quem seja mandante, quem sugira, estimule, despolete e avalize o uso da violência. Também os mandantes podem ter hesitações, as coisas podem ir para caminhos não previstos, porém a responsabilidade é sempre individual por mais difundida colectivamente que esteja a violência. Em muitos aspectos nós já a herdamos, mas é necessário compreender as razões porque ela foi utilizada pelos nossos ancestrais para concluirmos pela inoportunidade do seu uso nos dias de hoje. Não mais podemos relegar para o colectivo as nossas responsabilidades, mesmo que nos dêem mandato para a aplicar.
O equilíbrio social, em qualquer das versões que as pessoas adoptam como o seu Ideal, está longe de estar alcançado. Este facto revela que há tensões acumuladas e outras ainda que podem surgir. O aparelho de poder existente assegura a estabilidade através da sugestão da violência e do seu esporádico exercício. O aparelho de poder é a depositário da violência institucional e são muitas as forças que o pretendem controlar, para deter o mandato da violência. Todos querem contribuir para novos equilíbrios, mas também alguns têm em vista uma mudança radical que remeta a coesão social para o respeito por diferentes parâmetros de aferição.
Aquelas forças radicais são simplistas na sua forma de abordar o equilíbrio social e portanto as divisões existentes na sociedade. Adoptam em cada momento todas as ideias que consideram fracturantes, mas muitas delas dão hoje uma imagem redutora. Ricos e pobres, poderosos e oprimidos, cultos e ignorantes, são divisões que já não dão uma imagem da complexidade social. A ordem passa por um equilíbrio entre as pessoas e já não entre grupos. Infelizmente este procedimento grupal ainda existe no próprio aparelho de Estado que tem órgãos que se orientam de forma contraditória uns com os outros. O poder deve-se exercer a favor de uma ordem coerente e equitativa, com a violência em grau adequado, uma violência propositada e proporcionada.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Trabalho e/ou Liberdade, uma aliança ou um dilema

A glorificação do trabalho não é apanágio só da esquerda nem só da direita, mas apresenta diferentes contornos conforme a posição política de quem a faz. Para a esquerda mais genuína o trabalho é o elemento central de toda a dinâmica social. Para a direita mais radical o trabalho pode ser somente uma obrigação dos elementos sociais dependentes Mas há algo de concordante em todas as posições porque afinal o trabalho faz falta a todos, até aos que não trabalham. As divergências fundam-se mais nas formas de prestação do trabalho. Este é hoje genericamente aceite como um acto dignificante, acto social imprescindível do modo como a sociedade está estruturada e funciona.
Houve uma grande evolução nas condições de prestação de trabalho que trespassou sistemas e regimes. As excepções são poucas e confirmam a regra. Tal evolução é, pelo menos em boa parte, irreversível porque, embora historicamente haja avanços e retrocessos, não é crível que regressemos a algum dos estádios já ultrapassados durante o seu decurso. Claro que ainda há vozes que, com a justificação da opção pela garantia do sustento, dizem que estariam dispostas a perder muitas das melhorias conseguidas nessas condições de trabalho. E muitos não o dizem por opção política, aceitariam essa situação por puro realismo. A liberdade não paga tudo quando está em causa a sobrevivência.
Felizmente que não precisamos de colocar as coisas nesse ponto. Podemos lutar pela liberdade e pelo trabalho sem preconceitos, sem cedências, sem sofismas. Não necessitamos de aceitar um trabalho que implique uma dependência abusiva. Mas continua a haver duas perspectivas antagónicas e ambas rejeitáveis para ver a questão do trabalho. Uma das perspectivas que ignora a sociedade aponta para a sobrevalorização da liberdade como supremo valor de que a nenhum pretexto se pode prescindir. A oposta aponta para o valor supremo do trabalho de que a sociedade até terá o direito de se apropriar.
Convenhamos então que não há um direito a uma liberdade absoluta quando usufruímos dos benefícios de viver numa sociedade. Temos a obrigação de pôr ao dispor dessa sociedade bens, trabalho e o poder que tenhamos obtido. No entanto é sabido que a maioria de nós é profundamente recalcitrante em aceitar essa obrigação. Por outro lado se temos que reconhecer ao Estado direitos, este não tem o direito de nos impor condições degradantes de prestação de trabalho. O Estado, como primeiro responsável pela organização social, actue ou não como empregador, não nos pode impor condições aviltantes. Mas a esquerda mais se rebaixou nos casos em que aceitou o Estado como empregador global.
O modelo de organização da sociedade, e em particular da actividade económica, que durante séculos assentou essencialmente na posse da terra, está hoje, pelo menos teoricamente, dependente da vontade soberana da população. O poder que era detido por quem detinha a terra transitou por diversos grupos sociais e está hoje mais próximo da população em geral, embora nesta haja partes com diferentes interesses e diferentes capacidades de intervenção. O Estado tem vindo a estruturar-se com possibilidades de uma relação mais directa com cada elemento da população e também de uma acção mais directa na definição das condições de prestação de trabalho.
A disputa que no mundo inteiro tem tido lugar sobre o modelo que deve servir de base à actividade económica tem-se desenrolado entre aqueles que querem impulsionar a sua regulamentação exaustiva, aqueles que querem o liberalismo máximo e aqueles que querem a simples apropriação dessa actividade pelo Estado. Com a diminuição drástica do poder dos que defendem esta última opção, passou a haver uma luta mais acesa entre os que defendem as duas primeiras opções. Além disso muitos dos que defendem a primeira opção defendem também alguma intervenção do Estado em actividades económicas importantes em especial as que estão em sistema de monopólio.
Hoje em qualquer Estado moderno este é o principal empregador. A estrutura do Estado é ocupada por elementos eleitos, outros escolhidos por aqueles e uma imensa multidão de prestadores normais de trabalho. Em relação a estes o Estado funciona ao mesmo tempo como patrão e como regulamentador da prestação de trabalho. Como patrão o Estado funciona em concorrência com o sector privado e torna-se atractivo. Aqueles que trabalham para o sector privado anseiam ter as mesmas condições. Como concorrente o Estado “porta-se bem”, é desleixado, como patrão absoluto o Estado é agressivo, concentrador.
Se na actividade privada se estabelecem hierarquias na sua organização, no Estado elas são mais evidentes, mais numerosas, mais requisitadas. Em causa está não só o nível de remuneração mas um poder mais efectivo, mais assumido, menos dependente e que ultrapassa a funcionalidade restrita. Por vezes extravasa-se em muito aquilo que seria razoável, racional. Pequenos tiranetes são vulgares incrustados nas estruturas do Estado. Este facto cria muitas vezes conflitos desnecessários e prejudiciais a um trabalho eficaz. Este Estado é permissivo.
No países em que a estrutura do Estado é mais permeável aos procedimentos normais de uma sociedade, onde imperam as razões de família, de grupo, de amizade, de compadrio, mas também de favorecimento e até venda de lugares, há menos eficiência e relações laborais mais problemáticas. Todas essas relações que impliquem cedências pessoais são nefastas. Nestes casos é difícil garantir a liberdade, porque são as próprias pessoas que colaboram activamente na criação de situações de dependência para além da subordinação funcional.
Há ainda um outro problema que lança a confusão nesta questão e que é a existência de actividades que dificilmente se podem englobar na definição clássica de trabalho, principalmente aquelas que são de valor social duvidoso. Permitiu-se que o crime e actividades pouco claras invadissem a área normal do trabalho. Porém não há qualquer dilema entre liberdade e trabalho. Estes dois valores constituem o fundamental para aferir do nível civilizacional duma sociedade. Uma boa coexistência entre eles define um bom nível. A estabilidade, uma sólida relação entre eles definem um alto estado civilizacional.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

A Crise mostrou a nudez que o Euro encobria

Em politica é habitual juntarmos o máximo de argumentos para justificar determinada solução para um problema e tudo nos parece claro perante a sua força. No entanto alguma perplexidade nos fica, àqueles que honestamente gostariam de ser esclarecidos, já não àqueles que já estão convencidos antes de ouvirem uma qualquer razão. Os argumentos contrários são mais difíceis de agregar dado que os pressupostos da solução adoptada são quase sempre difíceis de contornar. É necessário lucidez para ver mais longe.
Em primeiro lugar quem paga aos argumentistas contrários para fazer uma análise profunda comparando os benefícios auferidos com a solução encontrada com aqueles que proviriam de outra solução qualquer? Haverá sempre alguém para quem a moeda dita boa redundará em má moeda em certas situações. Isto quando o que parece obvio é que as coisas não podem ficar assim como estão, sempre se diz, só que a pressa nem sempre ou quase nunca é boa conselheira. O caso do novo aeroporto de Lisboa, mudado à última da Ota para Alcochete, é a excepção que confirma a regra. Alterou-se a opção e travou-se a pressa.
Já o caso do Euro é paradigmático da nossa leviana pressa e da nossa confiança cega. Nada sabedores destas coisas de uniões, federações e similares deixamo-nos todos levar na onda de um movimento que parecia imparável. Aliás, se os Países do coração da Europa pensavam ser bom, quem seríamos nós para dizer o contrário? Os Ingleses, que não quiseram aderir ao Euro, são os eternos cépticos sobre os continentais, mas a que afinal sempre recorremos em todos os períodos históricos em que tivemos dificuldades. Mas desta vez falhamos, lá pensamos que estaria na ocasião de nos emanciparmos. Não estaremos agora em ocasião de perguntar se eles não estariam mais avisados?
Afinal o projecto de moeda única falhou desde logo porque não teve a adesão do universo de países da Comunidade Europeia. No entanto esta não abdicou. A verdade é que o Euro não ganhou ou perdeu estabilidade por esse motivo, mas não ganhou a representatividade de toda a economia europeia. Então o que ganharam e perderam os países aderentes e não aderentes? O abalo sofrido pela economia mundial no ano de 2008 veio produzir efeitos por igual em todos esses países, sendo que a um segundo nível as consequências foram diferentes.
A capacidade produtiva instalada diminuiu nos países de economia mais vulnerável, as mais baseadas em trabalho intensivo. Repentinamente todos os pressupostos da nossa pertença à Comunidade Europeia, a coesão, a solidariedade, estão postos em causa. Não se pensou a Comunidade para enfrentar crises. Não há tesouro público a que os países em dificuldade possam recorrer. Não há bolsa de trabalho a distribuir pelos Estados. A Comunidade incentivou os Estados a apoiar a Banca e outros entidades, mas o reverso não existe. No mundo capitalista ninguém ajuda. Colocaram-nos numa posição de só ver progresso à nossa frente, mas agora ninguém quer pagar a poltrona.
Nos países do Euro começou a fazer-se contas para solucionar a crise. Afinal é necessário mobilizar vastos meios financeiros para reorganizar o tecido produtivo. Constatou-se que alguns dos países mais frágeis da Comunidade tinham as suas reservas sumidas, tinham cometido demasiados pecados. A Grécia tinha sido mesmo falsa, outros países foram negligentes. O País mais atingido foi a Espanha, mas significativamente não foi financeiramente o mais abalado. Os seus problemas económicos são graves, mas tem alguma folga para o necessário relançamento. Tinha superavites anteriores.
Pior estamos nós. Ao primeiro abalo toda a nossa fraqueza ficou a nu. Temos problemas económicos a resolver e as mãos atadas por falta de meios. Descobriu-se em breve tempo que o Euro não é a nossa moeda, não temos economia que contribua para o sustentar. A Comunidade do Euro não quer pagar caro o nosso fraco contributo de 1,5 % para o PIB comunitário. Deixou de haver contributos simbólicos, valemos tanto como um País saído há pouco da órbita soviética, como a República Checa. Os caminhos que desbravamos não contam.
Metemo-nos num colete-de-forças que não nos permite qualquer ginástica. Transferimos a soberania monetária, mas na Europa ninguém quer a responsabilidade da soberania económica. Os países fortes da Europa quiseram ser generosos connosco na euforia dos tratados, mas tratam-nos asperamente perante a lucidez dos números. A maldade não se encontra nos processos eufóricos, reside tão só no efeito prático de alguém ter de pagar a conta da festa.
A Grécia perdeu a importância estratégica pela mudança que se quer imprimir ao relacionamento com os Países Islâmicos, em especial a Turquia. Portugal perdeu a importância de ser um bom aluno porque gastou tudo na farra. A Alemanha mantém a altivez de quem, com empenho, vai hasteando a bandeira da Europa e já não precisa da ajuda de ninguém. Provou-se que não chega a nossa disponibilidade e boa vontade para levar a nossa economia à convergência.
Porém todos sabíamos que na economia não há relações estáveis e que os bens valorizam-se e depreciam-se com o tempo, alterando os termos dessas relações. Aquilo em que empregamos o nosso tempo, em que aplicamos o nosso trabalho perdeu valor. Não acompanhamos, quanto mais convergimos. Os nossos economistas políticos não são honestos ao dizer que podemos viver a cortar as silvas dos nossos montes, discurso velho arreigado na tradição popular. Além disso desde o governo de Cavaco Silva que muitos se enchem de dinheiro fresco a dar cursos que para nada servem. São pagos em moeda forte numa economia fraca.
Sem Euro haveria uma outra noção de valor do nosso trabalho e não aceitaríamos perdê-lo, mesmo mal pago. Porém também será irrelevante juntarmo-nos agora para gritar bem alto os malefícios do Euro. Esta é a má moeda de que falam muitos economistas. Com um Euro tão rico custa-nos aceitar que somos pobres, mas temos de nos convencer disso, senão alguém o há-de fazer. Temos de nos encher de brios perante as bofetadas que já vamos recebendo. Infelizmente sem passar pela vergonha não teremos juízo. De nada serve nos abespinharmos para reagir se não interiorizarmos essa humilhação.