sexta-feira, 30 de abril de 2010

A opinião cedeu à crítica o seu lugar na comunicação

A manifestação de uma opinião entende-se como uma tentativa legítima de influenciar alguém, mesmo que esse não seja o propósito explícito de quem a profere. Quando essa opinião é expressa na comunicação social e essa influência se exerce não será de estranhar que fiquemos satisfeitos. Para tanto bastará que despoletemos uma abordagem mais pessoal dos assuntos. No entanto hoje, para a maioria das pessoas, só a crítica satisfaz.
Normalmente sobrevalorizamos o nosso poder de influência quando somos a favor do vento dominante, subestimamo-lo quando contra esse vento nos empenhamos em marchar. Porém a influência maior que alguém poderia exercer seria sobre a forma de nos balancearmos entre as forças sociais, de modo a não nos deixarmos arrastar por quaisquer delas, antes de maneira a sermos os senhores da bússola que nos há-de orientar e de termos a autonomia de, sem ideias preconcebidas, vir a apoiar uma força ou outra. Abandonemos o preconceito de sermos bons se formos a favor ou de sermos bons se formos do contra.
Convenhamos que o caminho de cada um é largo e nele vamos recebendo e emitindo sinais que poderão merecer respostas nossas e doutrem. Os choques são inevitáveis e, como temos que começar por nos controlarmos a nós mesmos para melhor nos relacionarmos com os outros, só um perfeito conhecimento de nós mesmos permitirá minimizar a ocorrência de choques e o efeito daqueles que se tornarem inevitáveis. Só deste modo se constrói um espaço em que a opinião possa fluir sem ressentimentos nem obstáculos abrasivos.
Mas seremos nós capazes de nos conhecermos? Decerto que o seremos se para tanto tivermos o contributo alheio, sem dele depender. Os outros também nos ajudam a nos conhecermos. Há uma certeza que nos acompanha, basilar na nossa estrutura mental. Na nossa intimidade não somos aquilo que os outros pensam de nós, não somos aquilo que pensamos que os outros pensam de nós, não somos aquilo que pensamos de nós mesmos, mas estamos numa penumbra que os anos se encarregaram de carregar de sombra. Não podemos exigir dos outros clareza se nós não lançarmos luz sobre nós próprios. Lancemos essa luz!
Antes de enveredarmos por este caminho intimista poderemos colocar outra pergunta: Haverá alguma vantagem em nos conhecermos bem se não tivermos armas, instrumentos, capacidades para sermos melhores? Conhecendo-nos melhor seremos mais responsáveis, mas necessitamos de mais força para fazer valer os nossos argumentos. Por outro lado nós estamos dependentes do mundo, da sociedade em que vivemos, do lugar que habitamos para sermos algo diferente daquilo que somos. E teremos o direito de nos castigar a nós mesmos se os outros o não merecem?
Há pelo menos uma certa “crença” que, se sairmos do meio, se habitarmos outro lugar, se vivermos noutra sociedade, poderemos conseguir ser significativamente diferentes. O mundo que no seu conjunto é benévolo, será nas suas partes fracturante. Uma lição poderemos então tirar: Se conseguirmos pensar tudo em função do mundo já seremos potencialmente melhores. O problema fica no que respeita à acção, pois só aí se poderia ver a diferença. No entanto nós não conseguimos agir a nível do mundo todo. Não nos dando ele resposta teremos pois de ficar também pela crença quanto a sermos melhores quando pensarmos as coisas a nível mundial.
No entanto a sociedade retira-nos a generosidade e impõe-nos que sejamos críticos. O vento dominante exerce uma forte atracção e o contra vento copia-lhe os métodos. Passamos a desprezar aquilo que se nos opõe, independentemente do valor da nossa divergência. É-nos pedido muito mais do que uma opinião, é-nos pedida uma crítica. Este criticismo sem referências estáveis, sem bases seguras, afasta-nos dos outros, mas também de nós mesmos, daquilo que éramos mais especificamente e passamos a ser mais similares.
Este exercício permanente de crítica levado ao extremo torna-se acéfalo para o próprio, produz um efeito indutivo, corrosivo sobre as mente mais frágeis, com menos defesas. O mais vulgar dos métodos intelectuais é a insistência, a repetição. Através dela se memoriza, se passa a imagem, se convence. A crítica mordaz e repetida incorpora-se no pensamento alheio conforme a receptividade deste. E se essa crítica for desculpabilizante para nós, insidiosa para quem nos não é simpático, é desde logo assumida por nós como arma ofensiva.
A crítica passa a dispensar a opinião, processo intelectual diverso, que só é confundido com crítica por quem não tolera a opinião divergente. Depois de longos períodos históricos em que se procurava isolar quem criticava e era mesmo perigoso dar opinião, agora negligencia-se quem dá opinião, porque o que interessa é a crítica tenaz.
A crítica só se deixa ver a si própria, é acutilante e seca. A opinião é generosa, pode incorporar em si um espaço para construção.
A crítica pretende realçar as diferenças, estabelece barreiras, aprofunda abismos.
A opinião lança pontes, remove obstáculos, suaviza arribas.
A crítica é a favor do vento ou contra ele, contribui para lhe dar força ou opõe-se-lhe frontalmente. A opinião procura identificar os ventos, os que estão em desenvolvimento, mas também os que estão em formação, realça-lhes os méritos e os deméritos, destaca-lhes as virtualidades e os malefícios, abre-se à descoberta que possa ocorrer no seu próprio desenvolvimento.
A crítica esgota-se na radicalidade do argumento importado. A opinião lança sementes que possam aproveitar à visão universal, benévola.
A crítica é um choque preanunciado. A opinião é uma abertura para o diálogo.
A crítica é o negrume lançado sobre a penumbra alheia. A opinião é uma luz sobre a penumbra para a não deixar obscurecer mais.
A crítica é perniciosa, é a imposição de um resultado. A opinião é a definição de um enunciado.
É legítimo passar da opinião à crítica, mas manter o nível exige estatura intelectual.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

O que no 25 de Abril vai resistindo à espuma dos dias

Há assuntos, temas que se ficam pela espuma dos dias. Há quem aproveite as oportunidades em que a realidade nos mostra determinada cara para abordar assuntos pela perspectiva mais favorável às suas pretensões. Passada a hora tudo se esvai, tenha ou não produzido o efeito pretendido. Esporadicamente há reavivamentos, um reacender das chamas à volta desse assunto, uma abordagem nova a reforçar ou a desmentir a que anteriormente teve mais valimento. E volta tudo ao mesmo, um estado de letargia, de adormecimento, quiçá de esquecimento.
Porém não se esquecem temas como o 25 de Abril, não só pela sua importância, mas também pelas comemorações que se mantém e provavelmente manterão por muitos anos. Um efeito dessa manutenção do assunto na ordem do dia, de pelo menos esse dia ano a ano, é a constante alteração da forma como o abordamos. É assunto que não se fica pela espuma dos dias, mas a que a distância vai permitindo uma interpretação mais perto da verdade, mais consistente, menos condicionada e contaminada pelas ideologias que desde logo quiseram que a sua interpretação dos acontecimentos passasse por única.
Se queremos chegar a uma forma de análise mais isenta e real teremos que tentar retirar a cor à espuma e, tendo a sua evocação um efeito emocional, não sendo possível remover toda a espuma, tentar torná-la o mais transparente possível. Lá no fundo vemos o 25 de Abril só como um golpe militar. Foi condicionado, empolado pelo facto de o País estar envolvido em três frentes de guerra colonial e haver no exército uma forte componente popular. A guerra colonial desenrolava-se à volta de uma dúzia de anos e tinha-se encarniçado na Guiné, por efeito da dimensão, morfologia, concentração populacional, apoios exteriores e permeabilidade quase absoluta da fronteira guineense.
Os recursos humanos estavam mobilizados pelo desenvolvimento que no País se tinha verificado, pela emigração e pela guerra. A carreira militar não era atraente, malgrado se dissesse que os oficiais e sargentos estavam ávidos de comissões militares. O cansaço era já evidente. Em 1973 dá-se a primeira grande crise energética. Os Países árabes e do Norte de África, que então tinham o quase monopólio de produção petrolífera, começaram a colocar a questão de fazer um bloqueio à exportação de petróleo para Portugal se este não descolonizasse.
O isolamento internacional acentuava-se. Um dos aspectos que além desse efeito teve uma clara repercussão interna foi a recepção que o Papa fez aos representantes dos movimentos de libertação das colónias portuguesas. Por cá Marcelo Caetano mantinha a velha justificação de sempre. A tese principal era o velho princípio salazarista que o regime de índole corporativa que estava instalado era a uma alternativa ao caos e ao regime comunista que inevitavelmente se lhe seguiria. Havia outras forças que emergiam, personalizadas por Mário Soares e Sá Carneiro, mas a que o regime optou por virar as costas.
A grande maioria da população foi alimentando as Conversas em Família de Marcelo até ao dia em que este disse que o tempo das vacas gordas tinha acabado e que, no seguimento da tal crise de 1973, nos devíamos preparar para o tempo das vacas magras. Os sectores mais dinâmicos do exército, fossem de direita ou esquerda (?), viram que a população não queria um regresso ao passado e que facilmente descartava um regime que já nada lhe prometia. O que condicionava o exército era o que tinha condicionado toda a nossa política, em especial nos cem anos anteriores: As colónias. Era uma rotura difícil.
Porém os militares viram que, sem o apoio da Nato e sem a neutralidade dos países árabes, era a viabilidade do império colonial que estava em causa. As soluções eram cada vez menos, o tempo era cada vez mais escasso. Por mais válidos que fossem os Ideais de multiracialidade a sua viabilidade estava cada vez mais em causa. De qualquer modo politicamente o regime estava num beco sem saída e esses militares viram que, não só podiam assumir o poder, como não haveria quaisquer outras forças capazes de o tomar e de o conservar com uma durabilidade suficiente para fazer as transformações que se imponham no sentido da descolonização, da democratização e do desenvolvimento.
Com algumas cautelas os militares assumiram como primeira opção a chamada à ribalta das reservas da Nação, os militares mais velhos como Spínola, os quais se veriam a revelar decrépitos e sem chama, já ultrapassados pelos acontecimentos. Assumiram estão eles próprios as responsabilidades que viram não poder transferir para outrem de modo imediato, definitivo. Mas só em parte se redimiram de um passado comprometedor, não conseguiram assegurar uma transição pacífica nas colónias, com perdas para os que foram obrigados a retornar e com perdas de vida para aqueles que, sendo negros, sempre se tinham colocado ao seu lado. É a sua maior vergonha.
O mérito desses militares de Abril está no que em conjunto fizeram para aguentar dentro do razoável uma situação que esteva pronta a rebentar pelas costuras e explodir. Em cada uma das soluções possíveis dum problema há custos e em alguns aspectos deste processo que pôs fim ao antigo regime os custos foram excessivos. Só que a alternativa à solução adoptada estaria apenas em deixar ficar tudo na mesma, o que seria acumular ainda mais tensões com resultados imprevisíveis.
O mérito não está no passado daqueles duzentos capitães de Abril que, só a custo e pressionados por factores externos, resolveram contradizer. Também não houve razões nobres de índole ideológica, moral ou humanitária que os moveram, antes foi por razões práticas que resolveram por fim a um tempo sem sentido. Os militares, quer nós consideremos, quer não, que o fizeram a tempo, só após o 25 de Abril cumpriram com mérito a sua obrigação militar. E tudo está bem quando acaba bem ou, pelo menos, menos mal.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Há panos em que as nódoas se notam mais

Há factos que nos entristecem e fazemos por esquecer. Surgem repentinamente, às vezes puxados por outros, mas logo caem no esquecimento. No entanto estamos numa fase de nítida introspecção e quando assim é não se pode seleccionar aquilo que é trazido à memória. E, se não controlamos este processo a nível individual, muito menos o controlamos colectivamente. Os casos de pedofilia começaram há uns anos atrás a ser motivo de preocupação pública e tem-se sucedido a sua imparável revelação a todos os níveis sociais.
Há factos de certa natureza que, sendo aparentemente irrelevantes para o porvir da humanidade e que em seu tempo não adquiriram dimensão bastante para se tornarem casos de análise profunda e redentora, mas que em certa fase civilizacional adquirem a força de um dilúvio de água, a impetuosidade dum turbilhão, a agressividade de um tsunami. Deixou de ser possível relativizar a importância social da pedofilia, subestimar este monstro escondido na sociedade. Deixou de ser possível obter razão para o seu ocultamento.
Cada caso de pedofilia praticado por um ser humano é uma afronta ao seu carácter. Cada caso de pedofilia praticado por um membro da classe eclesiástica é a negação absoluta da sua razão de ser. Em qualquer caso tem que se exigir que se assumam culpas, que se não dispensem responsabilidades individuais, que se apliquem castigos exemplares, que se não fique pelo perdão pela fraqueza da carne, pela desculpa da impetuosidade do músculo sexual, pela concupiscência involuntária que possa invadir a mente de alguém.
Um jovem violado para satisfazer o apetite inflamado de um qualquer energúmeno é uma imagem deplorável, iníqua, que deve estar arredada do pensamento de qualquer indivíduo normal, em especial daqueles que querem que nos preparemos para um Reino Novo que há-de vir. Se a pedofilia entrou no clero por via do celibato obrigatório, acabe-se com ele. Se a privação da sexualidade no clero leva à misoginia, acabe-se com o celibato. Se o auto controlo que deriva da preparação intelectual das pessoas não é suficiente, acabe-se com o celibato. O clero não é o mal, mas este prolifera quando o ambiente lhe é propício
A verdade é que a suspeita não pode recair sobre todas as pessoas e nem todos terão tendências para esse tipo de actos. Mas também não se pode discriminar a mulher em abstracto por ser a ”fonte potencial do mal” e inocentar os homens concretos e determinados em que o tal mal só despoletaria em contacto com a fonte. Tem havido aqui uma clara confusão e é necessário que a igreja repense onde está a origem de todo o mal. Este só está na anormalidade.
Durante séculos reconduziu-se o mal ao sexo devido à dificuldade de o controlar para efeito de ordenamento social, para evitar a promiscuidade. Hoje claramente o sexo não é o problema é tão só uma fonte de problemas em alguns casos, como o são outras questões. O sexo tem que existir na realidade e na mente humana, não como refúgio ou referência absoluta, muito menos como aversão, sim como elemento de pensamento e acção que nos devemos esforçar por controlar e realizar. Quando o sexo se reprime pode haver manifestações catastróficas.
A Teoria da Compensação a que muitos recorrem para ilibar o homem da prática sexual não tem cabimento porque não há actos de natureza diferente que se possam compensar. A Teoria da Sublimação a que também se recorre poderá ter outra viabilidade só que nenhuma Igreja é capaz de preparar pessoas para que, quando entrem no exercício de funções sacerdotais, estejam em condições de prescindir de modo absoluto de ter relações sexuais.
Na realidade a assumpção consciente deste propósito de continência absoluta não será facilmente assumido pela generalidade das pessoas. As mulheres convivem com o sexo de diversas maneiras e o homem também. As mulheres historicamente estariam menos preparadas para uma relação que nelas se estabelece tal como a dos homens. Mas houve uma clara evolução para a qual a situação da sua muito menor dependência económica contribuiu sobremodo. As mulheres já hoje têm um controlo emocional que não passa só pela indiferença, mas que até podem manifestar uma muito maior disponibilidade, pois ela é muito mais condicionada pela vontade própria.
O conhecimento que a mulher de hoje tem da sua relação com o sexo já deixou de fazer dela aquele mal errático que se atribuía ao imprevisível. Isso vai levar a que o homem possessivo que antes se relacionava com as mulheres de uma posição de poder tenha os dias contados. A mulher galinha que se submetia aos caprichos alheios, que ainda persiste em certas condições, também está em extermínio. Mas para que a verdade seja mais plena terá que se olhar para a vertente do sexo usado como modo de vida. A prostituição é uma realidade que os fariseus se recusam a ver e a dar dignidade.
O mal persiste pelo desconhecimento e pela ignorância. Não tem a exclusividade do homem ou da mulher. Não está na criança inocente e desprotegida. O mal só pode estar latente em espíritos mais elaborados. Ele reside na procura de relacionamentos desiguais que proporcionam o aproveitamento de relações de poder para atingir objectivos maldosos que possam residir no pensamento humano. O mal, as tais nódoas no nosso pensamento e na nossa acção, estão, no que ao sexo se refere, nos predadores sexuais, usem que vestes usarem. Mas há vestes que reforçam essas nódoas.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Cada um carrega a sua cruz e cada cruz tem o seu peso

A maioria dos mais velhos de nós acha que tem muita dificuldade em transmitir os seus Ideais que não estariam de todos ultrapassados. Na verdade essa situação depara-se a todas as gerações a partir do momento em que o decurso da história acelerou definitivamente. Em momentos de rotura em que o passado perde importância como referencial público, mais se acentuam os obstáculos à transmigração dos Ideais. Na nossa sociedade em que os grupos sociais com os seus valores específicos perderam muito da sua relevância as dificuldades são gerais. O afrouxamento dos laços familiares acentuou esse problema.
Podemos achar os nossos Ideais muito consistentes, mas há que conceder que, tendo sido fruto de uma vida de muito sacrifício e de muitas dificuldades e estando estas já bem longe da imaginação dos mais novos, não poderão tais Ideais ser “servidos” com o enquadramento com que nasceram. As gerações mais novas não compreendem, somente com uma descrição factual, a importância dada por nós a certos factos e certos temas. Mas também temos de reconhecer que é um erro dar valor absoluto àqueles valores obtidos por reacção, com pouca criatividade própria. Mesmo assim há quem desejasse que os mais novos vivessem os mesmos dramas e vicissitudes que nos afectaram a vida para partilharem valores passados.
Se o nosso passado nos impôs limitações temos de as suplantar apresentando ideias que as tenham em conta. Aqueles que não vivem já as nossas contingências também terão as suas. Não podemos pretender que um Ideal deles tenha as mesmas limitações que nos impomos, terá outras. Ninguém dá importância aos seus temas preferidos sem sacrificar outros, mas não os deve ignorar. Teremos que nos impor disciplina e ter em atenção que os vários aspectos que a vida comporta necessitam de equilíbrio, e neles necessariamente incluiremos aquele com que contactamos só de forma deficiente.
Corre a ideia que o Ideal terá que ser um espartilho, um colete-de-forças que condicione toda a vida de quem o abraçar. E haverá ainda quem reforce esta ideia e pense que um Ideal terá que conduzir necessariamente a um sacrifício. São-nos apresentados exemplos que pretendem demonstrar que um Ideal terá de ser de um exigência extrema. Na verdade qualquer Ideal tem algo de disciplinador, mas, se colocarmos à frente aquilo que pretendemos com ele, teremos uma imagem positiva, obteremos mais satisfação, seremos mais optimistas.
Por outro lado não podemos pretender que um Ideal só vise aquilo que almejamos ter e nunca tivemos. Dessa forma arriscamo-nos a continuar a não obter qualquer satisfação, o que dará da nossa vida um deserto inóspito, improdutivo. Quando se consegue fazer da pura negação do que existe um Ideal e se consegue transmitir esse Ideal a quem poderia facilmente ter outras oportunidades, estamos a ser retrógrados, embirrentos, ressabiadas. Um Ideal tem que abrir perspectivas e não fechar caminhos com base em experiências mal sucedidas.
O que também nunca podemos pretender é que um Ideal que achamos dever transmitir seja limitado àquilo que nós tivemos, como se isso fosse suficiente para vir a constituir um Ideal das gerações seguintes. Nós podemos e devemos dar testemunho daquilo que vivemos, mas a pretensão de sermos exemplares é sempre excessiva. Devemos partir do princípio e contribuir para que para às novas gerações todas as possibilidades estejam abertas. Se nós estivemos limitados por factos que foram superiores às nossas forças, os jovens têm que perspectivar o futuro partindo do princípio que as forças contra quem terão que lutar não serão invencíveis.
Também se pode dizer que nós tivemos Ideais, mas deixamos por herança o desregramento e a confusão. Talvez tenhamos sido vítimas de equívocos, apostamos mais em antíteses que em teses. Não tivemos tempo para a acção, a todo o tempo tivemos que reagir. A afirmação pela negativa é manifestamente mais fácil que pela positiva e por isso o pouco valor que nos dão. Normalmente são as forças mais poderosas que podem tomar a iniciativa. Quem sofre condições tão adversas já não tem força para os actos de criação. Muitos dos mais fracos tomam essas condições como motivo de desculpabilização, mas a realidade é mesmo muitas vezes essa.
Se não deve ser nosso propósito que um Ideal leve ao sacrifício pessoal ou colectivo, temos que assumir que ele levará inevitavelmente a muito sofrimento. Mas deste nunca nos livraremos. E mesmo, quanto mais depressa assumirmos o sofrimento que é criar, mais depressa nos libertaremos do sofrimento que tem origem nas contingências, na sorte ou na sua falta. A criação permite manter o Ideal. Se o Ideal poder ir sendo realizado mais arreigado ele se torna.
A nossa impotência tem-nos levado a que deixemos que alguns Ideais apenas assumam uma forma idealizada e no extremo um carácter religioso. Abdicamos do sacrifício e de certa maneira do sofrimento pelo sacrifício prévio de outrem. A obediência a princípios e valores que estarão na base desse sacrifício alheio ilibar-nos-ão de outros esforços pessoais para tornar o mundo mais próximo de um Ideal de partilha. No entanto a aposta em esforços que implicam sofrimento pessoal pode ser necessária para levar o mundo a um caminho de paz e solidariedade.
O carácter definitivo do sacrifício dá a um Ideal um brilho que o torna atractivo. No entanto não podemos estar alheios ao sofrimento de muitos, muito menos podemos apelidar de fútil ou gratuito o sofrimento que visa atingir a nossa libertação de forças nefastas e cruéis. Em vez de subestimar devemos realçar os esforços positivos conforme as possibilidades de cada um. Cada um só pode dar o que tem. Se cada qual carrega a sua cruz, não podemos esquecer que a de uns tem mais peso que a de outros.