quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Recuperar o Natal é salvar o Menino

O Natal de hoje é fruto de um percurso histórico, resultado da confluência de várias culturas. Num acontecimento desta natureza mesmo aquilo que possa ser fruto da imaginação depressa passa a ser património, imaterial, diz-se agora, mas parte integrante da festa, da celebração, da comemoração. Podemos já não saber bem o que estamos a comemorar, porque há aspectos que se vão adicionando à medida que outros se vão esquecendo. Podemos concordar em que há aspectos nefastos dos tempos mais recentes, mas não estaremos decerto de acordo quanto ao passado a que, por hipótese, haveríamos de regressar.
É natural que historicamente se tenha feito o possível por tornar a festa natalícia apelativa, mas temos de considerar que vivemos num tempo já de escolaridade geral em que decerto só o simples facto de à festa corresponder um período de férias foi suficiente para lhe dar uma relevância maior. Podemos pois procurar num outro passado momentos de uma vivência mais genuína, menos interesseira. Encontraremos decerto sempre nos primórdios uma simplicidade que, com o tempo, vai descambando, mercê de uma abrangência cada vez mais global.
Será que o Natal ainda hoje merece ser celebrado?
O Natal, o nascimento tem em si próprio todas as propriedades necessárias para merecer uma celebração. Nesta festa celebra-se o nascimento de um Menino específico, para uns o Messias prometido aos Judeus, que haveria de ser rejeitado e perseguido por estes, para ser acolhido e adoptado como Cristo por boa parte da humanidade nos séculos seguintes. Independentemente do percurso histórico que o cristianismo haveria de ter, pode-se atribuir a esse Menino, na sua exemplar inocência, uma representatividade mais vasta.
Para muitos, pese embora este Menino tenha existido, a sua importância é maior como símbolo de todos os meninos que, antes de chegarem a este mundo, já estão condenados a sofrer dissabores imensos. Na verdade facilmente podemos generalizar neste sentido, porque encontraremos aí uma convergência de praticamente toda a humanidade, mesmo daquela que possa não ter tido historicamente símbolos próprios desta natureza. Um Menino acolhe-se sempre no seio de qualquer comunidade minimamente sensível aos valores humanos.
Terá já o Natal, que universalmente se celebra, novos motivos e aliciantes ou por outro lado terá sido adulterado e estará perto da paródia daquilo que foi?
A forma de ver o Natal como mais uma festa tem levado ao desejo de uma participação cada vez maior de cada um. A uma festa nunca se diz não, mas pode já não ser entusiasmante assistir a uma festa exclusivamente do Menino. Já havendo a possibilidade de todos entrarem na festa, de todos darem e receberem presentes, mesmo que não haja propósito para isso, de haver comida farta e ocasião para uma congratulação efusiva, a maioria de nós alinha sem esforço.
Não correremos assim o perigo de esquecermos o Menino que precisa de ser salvo e será suficiente limitarmo-nos a integrá-lo numa festa mais vasta em que a referência a ele será puramente ocasional?
Preocupamo-nos cada vez mais em comer e beber desmesuradamente, em mandar mensagens despersonalizadas aos milhões para listas de endereços, que isto de postais pessoais dá trabalho a mais e discrimina muitas pessoas, em dar presentes cada vez mais foleiros, para receber, se possível, presentes cada vez melhores. Cada vez menos fazemos do Natal aquele regresso à infância, aquela celebração do Menino, da simplicidade que nos pode trazer a paz.
Podemos especular mesmo sobre o Menino, por fraco que ele seja, que há em nós. Acima de tudo porque, podendo ser pouco significativo, nos pode levar a pensar na incógnita da existência e na forma de a tornar digna. No Natal encontram-se todos os meninos concretos que nós fomos, os que são e os que serão, o Natal celebra-se dentro dos limites da nossa existência colectiva, que o mesmo é dizer dentro do universo infantil, que é aquele em que a comunhão universal é mais genuína e solidária, ou antes, pré-concorrencial. Se conseguíssemos manter este espírito mais tempo tudo poderia ser mais verdadeiro.
No geral nós imaginamos a nossa vida pessoal como uma curva que sai de uma inocência original, um período de vida que subestimamos, quando não desprezamos mesmo. Ao amadurecer deixamo-nos, porque não temos poder para a isso nos opormos, somos levados a integrarmo-nos num processo em que a racionalidade e a perversidade se digladiam. Essa luta vai esmorecendo até atingir de novo um estado de singeleza na velhice. Quando estamos no topo dessa curva olhamos para os extremos com afastamento, displicência, se não antipatia.
Também em relação ao percurso histórico muitos de nós o imagina como trazendo-nos de um paraíso original, passando por um período de todas as lutas e que, no decair da curva, nos levará, eventualmente pelo cansaço, a uma paz universal. A humanidade na parte mais alta da curva foi capaz de todas as malvadezas, e todos nos interrogamos se já teremos ultrapassado o seu ponto culminante e se teremos a inteligência suficiente para aceitar a descida e aproveitáramos essa queda da impetuosidade para salvar o futuro.
A celebração do Natal, se for genuína, ajuda-nos a sermos mais optimistas, a considerar que a humanidade pode compreender que este caminho que ela vem seguindo a conduz ao abismo. A euforia do consumismo, a absurda competitividade económica, o abuso das condições naturais da Terra, a falta de colaboração para obter um caminho saudável, estão a criar um homem sem raízes, destravado, egotista, egoísta, que facilmente descamba para o anti-social, o catastrófico, o patológico mesmo. Independentemente da crença em quem cá pôs o Menino, cabe-nos salvá-lo.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Um presente de Natal vale por si?

O consumismo, essa gripe mortífera que, com os mais insuspeitos propósitos, se espalhou no nosso universo nos últimos anos, aí está em todo o seu esplendor nesta época natalícia. Os produtores precisam de vender, os comerciantes de sobreviver, os amigos de alguma manifestação de que ainda nos não esquecemos deles. O subsídio de Natal é a isso mesmo destinado. Tudo é razão para incentivar a dádiva de presentes, que no geral não passa de uma infame troca na qual pensamos ludibriar os outros. Queremos dar latão e receber ouro de Lei. As excepções confirmam a regra.
Cá para mim, para que a perversidade que nos é própria não tome conta da nossa mente, quem recebe não tem nada que dar e quem dá não tem nada que receber. Qualquer sentimento mais delicado, como a amizade e o amor, não se regateiam, mas também não lhes damos preço. O problema só se coloca quando não temos sentimentos destes para retribuir, mas é sempre de louvar o esforço de quem, com boa intenção, faz por os merecer. Aliás, por muito fugaz, há sempre alguma gratidão para oferecer a quem nos dá um presente. Outro em troca é que não, seria puro mercantilismo.
Um presente não compra nada e até pode ser contraproducente para quem o dá com essa intenção. Para quem sente a obrigação de retribuir é mais um encargo desnecessário e quem de todo não tem essa intenção, e não se sente em débito por isso, ainda vai ter o trabalho de descobrir se quem o presenteou o fez com boa, má ou mesquinha intenção. E se todos nós dizemos que é na intenção que está o valor de todo o acto é sempre ela que é mesmo o mais difícil de descortinar num universo de aparências. Os práticos, os que se marimbam para as intenções, dirão que um bom presente vale por si.
Sabemos que no dia a dia o comércio sentimental se vai realizando sem grandes rasgos ou enlaces num reajustamento contínuo e entediante. No geral um dia como este, que aproveitamos para aferir dos sentimentos alheios, não nos traz surpresas. Todos nos sentimos merecedores de uma qualquer atenção e sentimos uma certa dificuldade em lidar com a sua ausência. Se tivermos igual preocupação com os outros isso também nos trará problemas acrescidos. Cada uma das pessoas do nosso relacionamento habitual constitui-se em problema.
O trabalho fastidioso, o esquema social rígido em que nos movemos, a preocupação concreta connosco deixam-nos pouco tempo para pensar a fundo em nós mesmos. A preocupação com todos os outros, se existe, também é mais abstracta que concreta. A nossa vivência é ela própria anestesiante e impede-nos de dar um murro na mesa, de reordenarmos a mente, de repensarmos os sentimentos, de reorganizarmos os afectos.
Temos épocas para nos chatearmos, outras para levar as coisas mais a sério, temos épocas para relaxar, distender o espírito, suavizar as asperezas do confronto. Então chegamos a esta época predispostos enfim a reinventar as aparências que derivam sempre da posição em que nos colocamos e daquela em que os outros nos colocam num jogo de conveniências em que todos os conflitos se evitam. Neste aparente sossego resta-nos querer viver esta época no apaziguamento das contradições, no amolecimento das rivalidades.
Enfim tudo se há-de desculpar, na humana condição de nos sujeitarmos a erros e fracassos. Se não recebemos o que mereceríamos também não se poderá dizer que sejamos justos a avaliar o mérito nosso e alheio. Será sempre redutor alargar ou reduzir o mundo dos outros ao nosso e aplicar nesse mundo valores que só têm tradução no nosso. Não vamos condenar os outros com base em valores de que eles possam não partilhar. Mas é igualmente redutor querer aplicar no nosso mundo valores cá impraticáveis. Que não nos queiram sujeitar a eles.
Algum esforço terá no entanto que ser feito na ponderação a ter em relação a valores socialmente idênticos e eticamente próximos. Se conseguirmos um quadro de avaliação do nosso e do comportamento alheio, respeitando os valores alheios, podemos exigir algum respeito pelos nossos. Infelizmente a mútua desculpabilização que a época propicia é sol de pouca dura. O mais natural é que logo de seguida ocorram acontecimentos que nos fazem esquecer boas vontades e retomar o caminho da luta em termos de pouca humanidade.
O Natal é tido como uma época de tolerância, condescendência, apaziguamento. Fala-se em preservar e largar esse espírito, mas pouco se faz para que ao menos a época seja vivida com autenticidade, para que pensamos mais no bem dos outros do que no bem de nós próprios. No entanto é bom pensar que o nosso próprio bem é importante mesmo para os outros, desde que não seja ostentatório, desde que para eles não seja opressivo. Mas há um mal para o qual temos que estar precavidos, o mal da inveja que afecta muita dita boa gente.
Mas agora não há que pensar nisso, talvez em dar um presente a quem nos ofende, esses mesmos, e esperar que a luz do espírito ilumine os cérebros antes de estes porem a língua a falar ou a mão a escrever desabridamente. Porque essa gente pode ser muito inteligente, mas aplica a inteligência de modo errado. A inteligência é um talento natural de aplicação não condicionada. A seriedade é uma qualidade concreta que nos caracteriza pessoalmente.
A inteligência não é um certificado para coisa nenhuma. Ela tanto pode ser o instrumento para atingirmos a malvadez, como nos pode iludir e, com actos aparentemente bons, estarmos a contribuir para a difusão do mal. Até um presente pode ter um feito perverso. Há presentes envenenados. Como este clima de consumismo negligente, este sentimentalismo promíscuo que lhe está associado, que são presentes tóxicos que contaminam o saudável desenrolar da vida.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Tratado de Lisboa, o tratado que se exigia?

Estava em estudo, em elaboração, em discussão, um tratado bem mais ambicioso do que o de Lisboa. No entanto a pressão do momento, os problemas do alargamento, as surpreendentes reticências das opiniões públicas dos mais sólidos esteios da Comunidade Europeia, levaram a este tratado minimalista. E se este responde minimamente aos requisitos exigidos para alterar a organização da U.E. no sentido de lhe dar mais funcionalidade, já não responde à necessidade de lhe abrir novas perspectivas.
A lógica do Mercado Comum, instituída para os seis países fundadores, mantém-se. Esses países tinham estados de desenvolvimento, recursos humanos de qualidade idêntica, tão só divergiam na posse de recursos económicos, em especial energéticos e minerais. Acordada a igualdade do acesso a estes recursos, não foi difícil prosseguir um desenvolvimento mais harmonioso e solidário.
Esses países fundadores entenderam que a sua organização deveria estar aberta a outras adesões, porque isso seria vantajoso para si, para a paz na Europa e por consequência para o mundo. Ora os países que se seguiram já tinham experiências diferentes e níveis de desenvolvimento claramente desiguais. Para agravar a situação, os muitos países da antiga zona de influência russa aderentes na última fase acentuaram a desigualdade e criaram novos problemas.
Provenientes de uma região de economia centralizada, não concorrencial e muito atrasada, em especial na produção de bens de consumo, chegaram à União Europeia por razões políticas numa altura em que esta ainda não tinha resolvido os principais problemas derivados das anteriores adesões, acentuados pela criação da moeda única europeia, a que nem todos os países aderiram, em especial a Inglaterra, país travão em relação a vários processos de integração.
Entre o Tratado de Roma e o novíssimo Tratado de Lisboa vários outros se fizeram, no sentido de ajustar o primeiro, dar resposta ao crescimento da Comunidade e aprofundar as políticas já preconizadas desde o início. O que maior repercussão teve foi o Tratado de Maastricht que instituiu a criação da moeda única, mas paradoxalmente permitiu pela primeira vez que uma decisão tão importante tenha sido tomada sem obrigar todos os países.
Não tendo sido global a adesão à moeda única, os países não aderentes são aqueles que aplicam na sua economia elementos de ponderação em muitos aspectos de forma diferente dos países do Euro. Estes sujeitam-se a uma gestão centralizada dos factores que influenciam a relação entre a sua moeda e a outra moeda universal, o dólar, e entre a sua moeda e a sua economia. Nestas relações não se aplica a versatilidade de que os países de fora da zona Euro desfrutam.
Os políticos europeus tudo fazem para disfarçar a diferenciação estabelecida, para omitir do panorama político a ambiguidade criada no espírito dos europeus. Mas na realidade eles meteram os países aderentes ao Euro num colete-de-forças, cuja elasticidade, por mais boa vontade dos países ricos, não é suficiente para deixar respirar os países pobres. Uma moeda tão forte não se coaduna com a economia de países que ainda têm de competir com China, Índia e outros países em fase de desenvolvimento acelerado.
Muitos sectores económicos dos países mais débeis dos que aderiram ao Euro não são competitivos, subsistiram durante algum tempo à custa dos baixos salários, com um diferencial de lucro que não suportou a alteração das condições em que operavam. A impossibilidade de desvalorizar a moeda só podia ser substituída pela descida dos salários e doutros factores produtivos, o que é de todo impraticável. Já os países não aderentes ao Euro beneficiam duma alternativa, o mercado encarrega-se mesmo em certas circunstâncias de fazer os acertos respectivos. Desvalorizando a moeda, vendem mais barato.
O Mercado Comum, ao caminhar para a unificação monetária e política, arrastou atrás de si a ideia subjacente de que era irrelevante o local onde se produzisse, transaccionasse e consumisse. Na realidade esse logro levou muitas pessoas ao engano, inclusive o nosso António Guterres. Muitos países prescindiram de produzir muitos bens primários agrícolas e outros, obrigaram os seus produtores a mudanças de ramo profissional e, enquanto isso foi possível, as repercussões nas economias nacionais foram sendo subestimadas.
Qualquer tentativa de recuperação naquelas áreas impõe logo investimento que não estão ao dispor dos antigos produtores. Torna-se ainda mais difícil a produção de produtos secundários se tivermos que recorrer à compra no exterior dos produtos primários. De qualquer modo a mais valia introduzida é cada vez menor. O custo do trabalho não é estável. Para agravar o problema as contas exteriores deterioram-se a cada dia. O Estado e os particulares, através do sistema bancário, recorrem cada vez mais ao crédito exterior para gastos improdutivos.
O crescimento da nossa divida externa só significa que a moeda única só agravou os problemas estruturais da nossa economia. O abandono da moeda única levar-nos-ia a um choque terrível com a realidade, mas talvez possibilitasse a manutenção por mais uns anos daqueles sectores em fuga, como a confecção seja de têxtil, de calçado, de estofos e quejandos da indústria automóvel. Embora se não veja outra possibilidade de obter de imediato trabalho, ninguém quer assumir derrota tão clamorosa.
Há uns tempos atrás o Tratado de Lisboa tomar-se-ia como um passo em frente. Nas actuais circunstâncias significa apenas um reordenamento interno de poder, sem qualquer repercussão nos sectores chave a ter em conta na governação da Europa. Em particular este Tratado não interfere na divisão internacional do trabalho, e o trabalho é o factor que tudo condiciona. Sem dinheiro, sem trabalho, o futuro português não se mostra fácil. Como recurso, resta-nos a solidariedade europeia, tão importante e que tanto menosprezamos.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

O ruído e a desinformação na acção política

Seria óptimo que estivessem ultrapassados os problemas intrinsecamente políticos e a acção política se virasse para resolver os problemas que a sociedade permanentemente levanta na sua evolução e a intervir dentro das suas possibilidades na condução desta evolução. Em democracia os entraves à acção política são levantados por quem não pretende ter uma acção enquadrável dentro dos princípios da democracia ou não está a abordar correctamente o tema político.
Conduzir a evolução da sociedade é a mais nobre e valiosa competência política, é mais genérica e menos pessoal, tem mais a ver com a estrutura e pouco com a conjuntura. Esse é mesmo o domínio de luta mais acérrima, quando as circunstâncias o permitem. Quase sempre há uma sobrecarga de problemas conjunturais que não deixa tempo nem espaço para outras preocupações.
No entanto no sistema português mantêm-se vivas forças políticas cujo objectivo primordial é uma alteração estrutural da sociedade, o que sendo legitimo, impede muitas vezes que a atenção se vire para assuntos mais comezinhos, mais de conjuntura, mas cuja solução já corresponderia a um avanço significativo no progresso social. E como só conseguem aflorar o problema estrutural, mas não conseguem trazê-lo à ordem do dia da agenda mediática, dedicam-se a lançar ruído sobre a luta que se possa estabelecer à volta da conjuntura.
Acresce ainda que mesmo estes problemas conjunturais raramente encontram qualquer tipo de solução consensual, sendo a sua discussão o cerne de praticamente toda a acção política. Ser contra é fácil, ser construtivo é problemático. Normalmente passa-se de um a outro problema sem que seja levada às últimas consequências a solução do anterior. Gasta-se tempo, energias, recursos e um problema não resolvido dificulta a resolução dos que estão para vir.
Quando se quer resolver algum problema social o normal seria que se lhe determinassem as causas para actuar sobre elas. No entanto um problema é sempre conhecido pelas consequências e há a tentação de actuar antes sobre estas de modo a minimizar esses efeitos. É normalmente uma fuga para a frente, gastadora de recursos e criadora de um clima de facilitismo. E nem sempre há recursos à disposição mesmo ali ao lado para deitar para cima do problema.
Quando se recorre a esta solução fica-se por saber se o dinheiro é bem ou mal gasto, nunca se chega a qualquer conclusão. Quando os recursos não chegam e se procura determinar as causas para atacar o problema por onde ele deveria ser sempre atacado, está-se a mexer numa fonte maior de divergências. O que possibilitaria uma solução mais duradoira seria envolver outros recursos e recursos humanos e organizacionais dificilmente mobilizáveis. Propostas há muitas mas dificilmente se encontra alguém disposto a pagar soluções estruturais.
O nosso sistema tem contribuições da vária origem desde o estabelecido anteriormente ao 25 de Abril, até ao revolucionário, ao simplesmente institucional e ao mais genuinamente democrático. Houve no passado muitas decisões tomadas por forças que não pretendiam a democracia e muito mais decisões tomadas por forças que a pretendiam mas não utilizaram os instrumentos de participação, não recorreram ao voto para fazerem opções irremediáveis, como é o exemplo da nossa adesão à Comunidade Europeia.
A decisões destas, não tomadas pela instância mais adequada e outras tomadas mesmo contra a opinião pública, faltar-lhes-á sempre uma legitimidade que alguns podem invocar e pôr em causa. Há pois decisões que podem ser invocadas como causa para problemas que hoje se vivem, mas quase ninguém pensa fazê-lo porque seria praticamente impossível pôr em prática decisões contrárias.
Então as ditas causas têm que ser procuradas mais recentemente, no enquadramento proporcionado já por essas grandes decisões estruturantes, irreversíveis e no cômputo geral, convenhamos, benéficas. A procura das causas pode ser feita por honestidade intelectual, porque queremos encontrar uma solução que as tenha em conta e as aproveite noutro sentido.
No entanto podemos estar certos que, por serem muito recentes, por serem decisões que envolveram os mesmos partidos e muitas vezes as mesmas pessoas que politicamente ainda estão activas, as mesmas simpatias e antipatias, as mudanças de opinião nunca são muito significativas, ninguém dá o braço a torcer, os erros de análise têm tendência a manterem-se. Mesmo que esteja em causa um problema de omissão, mesmo que tenham sido tomadas no momento certo, as atitudes certas, ninguém vai aceitar as culpas, muito menos integralmente.
Isto traz um problema acrescido a quem não segue atentamente a evolução das forças políticas e quem tem uma visão racional dos acontecimentos presentes. Isto leva a que mesmo muitos que pretendem vir a exercer uma acção política tenham que dar os primeiros passos no meio deste ruído, adoptando uma atitude de fé e se vão preparando para usar argumentos desviacionistas na discussão das razões do passado. Não há espaço para discussões racionais.
Isto é, têm que aprender o que na política é mesquinho e mesmo subterrâneo. Têm que ter argumentos prontos a disparar mesmo que se refiram à substância quando o que está em causa é o método e ao método se o que está em causa é a substância. O público em geral que, mais do que aprender, está interessado em não ser ludibriado só tem um caminho: ter pelo menos um ciclo de vida política bem presente e distinguir informação e desinformação, particularmente o que é ruído. No meio das palavras tem que descobrir a asserção.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Não é a justiça que pode moralizar o negócio

Há na história uma atitude fundamentalista contra o negócio, atribuindo-lhe a fonte de todos os vícios, de todos os males sociais. Outros mais comedidos atacam tão só a promiscuidade entre política e o negócio, deixando a este um papel fundamental na dinâmica económica. Outros preocupam-se em especial com o facto da justiça não desempenhar o papel que acham que deveria ter na moralização do negócio. Os poucos fundamentalistas de sinal contrário, aqueles que a isso se atrevem, são contra a política porque tudo se devia deixar a cargo do negócio.
Ressalve-se no entanto que esta última é a ideia dominante que transparece, se tomarmos em consideração apenas a espuma dos dias, aquilo que dizem todos aqueles que persistem em querer o povo ignaro. A sabedoria geral já engloba a ideia de que temos que viver com a política e com o negócio, que cada um destes mundos deve ter regras próprias, a sua ligação deve ser transparente e a justiça deve encarregar-se das violações aos seus preceitos. Não se pode é ser governante e negociante ao mesmo tempo e usando os mesmos instrumentos.
O caso do sucateiro Manuel Godinho será no futuro um bom caso de estudo porque comporta muitos dos cambiantes possíveis na violação de regras de conduta nos negócios. Mas também dará para testar a conformidade das Leis com uma prática negocial concorrencial e da prática dos agentes da justiça com as Leis vigentes. Não haverá dúvidas que este caso envolve em si mesmo vários casos que passam pela corrupção de funcionários públicos e de empregados de empresas, pelo suborno de gestores e pelo uso da influência de políticos.
Na economia só há crime se alguém é prejudicado para que outrem seja beneficiado. Não se pode aplicar à economia uma ética abstracta, uma construção legislativa que essencialmente não tenha em conta a natureza dos valores envolvidos. A distorção da concorrência, o prejuízo do Estado, o roubo são os crimes que se convertem em valor. O que está em causa é sempre o prejuízo dum terceiro concorrente, do Estado enquanto angariador de impostos ou dum parceiro de negócio ludibriado na sua relação.
Manuel Godinho fez intervir nos seus negócios todos os agentes possíveis, uns com influência directa, outros com indirecta. Na relação com o Estado temos os funcionários públicos, em particular os das finanças, que, caso tenham cometido erros, mesmo que não tivessem recebido nada por isso, devem pagar por tal. Trata-se de falhas calculadas, de omissões seleccionadas, de procedimentos incorrectamente executados. Há depois outros agentes, como os do trânsito, subornados para facilitarem a movimentação das viaturas.
Do mesmo modo os fiéis de armazém que deixam levantar mais sucata do que a que consta das respectivas guias está a lesar a sua empresa. Os gestores que favorecem alguém vendendo barato e dessa forma prejudicam a empresa em que trabalham, façam-no por negligência ou dolo, devem ser igualmente penalizados. A questão é que dos produtos de que se trata não existe no geral valor contabilístico nas empresas e os sucateiros andam todos ao mesmo. Favorecer um deles ao mesmo preço só pode ser lesivo de uma sã concorrência.
Os políticos que eventualmente indiquem um contacto fazem o que qualquer pessoa faria, aquele que tenta influenciar esse contacto e tira disso proveito já comete um crime pela ética dominante. Porém se recebe uma gratificação não solicitada é questionável se cometerá crime ou se é só o Estado que saiu lesado no pagamento de imposto. Até porque aqui ninguém sai directamente lesado, ainda estamos em fase pré negocial.
O lobbying é uma actividade que vai mais longe do que a simples facilitação de contactos e está regulamentada em muitos países. Em Portugal não está devidamente enquadrada em termos legais. Caso contrário poderíamos saber quem a ela se poderia dedicar. No entanto, e mediante as suas prerrogativas, parece que não estará longe das possibilidades dos advogados. Já para os políticos é uma imoralidade. Não são eleitos ou nomeados por outros eleitos para fazer negócio.
Também a legalidade dos actos praticados pelos homens de negócio tem de estar clara, embora muitos tentem lançar a confusão dizendo que todos os seus actos visam o lucro da empresa, às vezes a sua sobrevivência, a dinamização da economia, o investimento produtivo. Mas na verdade é um erro acometer contra o enriquecimento ilícito quando há tantas dúvidas sobre a forma correcta de enriquecer. A diferença entre o engenho e o vício é difícil de estabelecer. A corrupção activa que parte de um homem de negócio parece-nos menos lesivo do que se partisse dos agentes contrários, quais abutres à espera da presa.
Todos enaltecemos os empreendedores, mas em simultâneo lançamos dúvidas sobre a forma como amealharam tanto financiamento. Questionar a sua legalidade é entrar no jogo do sistema justicialista tão em voga. E neste sistema, como no sistema legal de justiça, são mais os que passam na malha do que aqueles que são apanhados. Talvez a justiça ande atrás do caso exemplar que sirva para atemorizar os que querem seguir caminhos estabelecidos à séculos. A justiça nunca é sistemática, só apanha uma minoria do peixe.
Aliás a justiça não tem outra pretensão que não seja esta. Muito mais eficaz é prevenir a injustiça. A justiça é pouco compatível com o empenho de quem quer vencer onde pode competir com os meios de que dispõe. A justiça é coisa de que se pode falar pouco quando há uma tão grande diferença de meios entre os protagonistas e há dependências comprometedoras. Um dos sítios onde o nosso sistema falha é no facto dos agentes do Estado serem fracos, porque o Estado é desleixado, criador de desigualdades, contraditor entre o incentivo e a caridade.
Quando alguém quer desenvolver um negócio necessita de arte e engenho e com sorte terá sucesso. Se quer chegar depressa aonde outros levam anos tem que utilizar todos os argumentos disponíveis. Porém isto contribui para dirigir demasiado os holofotes para si mesmo, o que terá sido o que aconteceu neste caso. Depois fazer esta mistura explosiva de mensageiros, facilitadores, encobridores, dissolutos parece ser um suicídio. Mas eu só condenaria o Sr. Godinho se ele para desenvolver o negócio tivesse recorrido ao incentivo ou à caridade do Estado. A justiça não vai moralizar o negócio. Só pode castigar os corrompidos.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

O justicialismo não favorece a verdadeira justiça

O justicialismo é uma doutrina muito divulgada que satisfaz sobremaneira os nossos espíritos vingativos e castigadores. Sendo de génese popular já subiu todos os degraus da inteligência nacional e deu origem a um sistema tão coerente como muitos outros, com alicerces na realidade que fazem inveja àqueles que nunca se firmaram e já caíram no esquecimento da maioria.
A doutrina é velha mas só agora se pode dizer bem implementada e com alguma eficácia. O sistema que corporiza esta doutrina conseguiu o apoio de amplas camadas populares e eruditas, umas autodidactas, outras formadas nas mais ilustres Universidades. Todos se renderam à forma expedita como o justicialismo averigua e condena, fazendo disto um espectáculo entusiasmante.
O sistema assenta na jurisprudência de que os orgãos de comunicação social são os fiéis depositários. São estes que possibilitarem a colocação em prática desta doutrina. Eles estão no centro nevrálgico porque passam por si o âmbito do sistema, os limites da sua acção, as penas a aplicar, as possibilidades de remissão e perdão. O sistema judicial é livre para acompanhar o sistema justicialista, mas se o não fizer este segue o seu caminho autónomo.
A averiguação dos factos faz-se de modo sério mas também de forma a rentabilizar o investimento feito. A comunicação social define os processos que são válidos para descobrir a verdade. Servem segredos de alcova, o coscuvilhar de toda a vida privada e pública, porque à partida nada está arredado de ter significado para um processo. O próprio sistema judicial dá com gosto o seu contributo para esta averiguação justicialista. O facto de todos poderem participar dá uma garantia acrescida de que nada escapará que tenha significado.
Também é na comunicação social que se define toda a matéria da acusação. Esta nunca pode pecar por defeito, antes que peque por excesso. Todos os contributos de todas as proveniências, desde alcoviteiras a delatores, são acrescentados de modo a traçar perfis psicológicos e sociológicos o mais condicentes com a realidade. Isto ajuda sobremaneira a recorrer àquela velha norma, não escrita como todas as outras, de que, se o acusado não confessa mas tem todas as características de quem era capaz de cometer um dado crime, é mais que provável que o tivesse feito. Condena-se segundo o “código” justicialista.
Aos acusados é dada o grande prazer de poderem falar para todas as rádios e televisões, jornais e revistas e até para os blogs mais na berra. A exposição pública tem desvantagens, mas também vantagens a explorar. E ao passo que ao comum dos mortais só são dados uns cinco minutos de glória, estes podem contar com um dia e na melhor das hipóteses com uma semana, até serem substituídos por outros e esquecidos. Há sempre um novo processo em gestação, a preparar-se para romper a casca do ovo e explodir no universo de algum.
Aos acusados cabe-lhes a tarefa gratificante, mesmo que já no anonimato, de desmontar a acusação, sem o que estarão condenados a suportar a vingança social. Nunca se livrarão de uma suspeição latente e sempre ávida de objecto, mas podem sempre atenuar a gravidade da acusação e arranjar algumas atenuantes, afinal também eles são vítimas sociais. Também eles têm que aprender a gerir as suas aparições nos média, não podem ser em excesso. A melhor cura é o tempo.
Mas o mais importante deste sistema é que ao primeiro rumor já todos os intervenientes estão condenados. A pena é para se aplicar logo e com a severidade exemplar, não se corra o risco de três semanas depois estar tudo esquecido. O sistema justicialista não é complacente com ninguém e quanto mais alto estiverem os acusados na escala social mais empenho existe em aplicar esta forma peculiar de justiça. Todos achamos que o sistema judicial, aquele que tem orgãos próprios, funcionários e juízes, age em sentido divergente com este.
O sistema justicialista formou-se, cresceu, está numa certa maturidade. Nasceu como uma forma de reagirmos e encontrarmos um paliativo para o real desleixo legal e prático que atribuímos ao sistema judicial. Corresponde a uma exigência de efeito imediato que este sistema não permite. Mesmo que se fique pelos efeitos psicológicos, não nos podem ser assacadas culpas de a realidade se não compadecer normalmente com os nossos desejos.
No sistema judicial andaram-se anos e anos a pensar como se haveriam de reforçar os direitos das pessoas. Legislou-se no sentido de diminuir as penas e de permitir toda a espécie de actos processuais que facilitem a defesa dos acusados. De súbito todos levam as mãos à cabeça e dizem que se exagerou, que agora só chega à barra dos tribunais quem quer, só é condenado quem permitir que o seja. Perante isto o sistema justicialista ganhou o protagonismo principal e contribui para desacreditar cada vez mais o sistema em que deveríamos acreditar.
O problema é que já não temos paciência, já não cedemos tempo nem espaço ao antigo sistema. Quando este necessita de alguma acção mais visível, quando se torna pública a existência dum processo, logo todas as pessoas, quase sem excepção, querem saber tudo sobre ele, para no sistema justicialista levantar um processo paralelo. Nisto reside o nosso erro de querermos emitir logo uma sentença. Podemos pugnar por melhor justiça, mas não podemos querer ser nós a aplicá-la, muito menos já.
O problema é também que o sistema de justiça se demite das suas obrigações. As informações passam para o sistema justicialista num conluio comprometedor. Quando seria necessário que todos respeitassem os actos judiciais, tal contribui para dar razão aos que pretender retirar o que resta de credibilidade às únicas pessoas capazes de aplicar uma justiça mais rápida e eficaz, menos comprometida e conspurcada por tarar sociais momentâneas, os juízes.
Os juízes podem queixar-se de que necessitavam de processos de actuação mais expeditos, de tipologias mais vastas, que lhes fosse dada a possibilidade de aplicarem uma justiça menos dependente da descrição pormenorizada do que é permitido e do que é proibido, uma justiça que atenda à verosimilhança dos actos, e que não permita que se invoque qualquer omissão da Lei. Os juízes podem queixar-se do seu medo, de, na dúvida, serem levados a não aplicar o rigor da Lei, mas tal sucede porque não vêm na sociedade apoio para fazerem o contrário. Mudar o sistema judicial? Se os juristas acham que se construiu um sistema muito bonito, com tanto floreado, vai-se deitar tudo abaixo? Deixe-se ficar e colabore-se com o triunfante sistema paralelo do justicialismo, parece pensar toda a gente.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

A nossa difícil relação com o poder – a nostalgia

Neste País tão cheio de gente nostálgica falar de nostalgia é terapêutico, se a análise for minimamente consistente. É normal que a pessoas guardem na memória e lhes sirva de referência aquilo que de bom ocorreu no seu passado. Só que o seu cultivo pode ser excessivo e assumir contornos de endeusamento, de modo a fazer que o próprio se esqueça de outros momentos importantes e, o que é pior, o leva a fechar os olhos àquilo que se vive hoje e é diferente.
A nostalgia dos bons momentos pode levar à rejeição ou aversão daquilo que no passado ou no presente está em contradição com esses momentos mais felizes. Nem sempre estamos preparados para aceitar o menos bom. Outras vezes colocamos mesmo no nosso tempo interior e em referência a um dado período um buraco negro atroz. Mas seria para nós benéfico se investigarmos a razão porque encontramos no nosso passado ocasiões em que vivemos situações medíocres ou mesmo desprezíveis.
Também o tempo colectivo nos deixa a nostalgia daqueles momentos de que nos deram conhecimento no tempo da escolaridade ou na propaganda do antigo regime. A própria forma como obtivemos notícia desse passado levou muitos de nós a renegá-lo agora ou pelo mesmo a desvalorizá-lo significativamente. E nada mais importante para a nossa própria higiene mental do que saber com a exactidão possível o real valor dum passado que tanta influência exerce sobre o nosso presente.
O facto de nos terem pintado um dado cenário edílico leva-nos a ter uma nostalgia dum tempo que afinal não vivemos, mas de que sentimos necessidade. Até porque o mesmo acontece com quem ganhou aversão a esse passado, que o apresenta como a justificação para todas as nossas carências actuais, para a nossa baixeza e mesquinhez, para a forma reles com que nos tratamos uns aos outros, para a nossa incapacidade de separamos o trigo do joio.
Já quanto ao tempo colectivo em que nós próprios participamos, que coincide com o nosso tempo individual, a ideia que sobre ele temos depende muito da valoração que damos à nossa própria acção. A abstracção com que conseguimos ver esse tempo colectivo depende muito de nós, da nossa formação, das nossas intenções, mas temos que se aceitar como perfeitamente humano que interpretemos o colectivo confundindo-o com o pessoal. Só que não é intelectualmente honesto.
A nostalgia reforça qualquer afirmação porque dá um cariz pessoal mesmo ao colectivo com a força que isso implica numa sociedade em que o individualismo prevalece. Esta visão do colectivo como uma emanação do pessoal é um grande erro se cultivada por preguiça intelectual, por economia sentimental. O facto de este tipo de vivência nos limitar a atenção ao presente e nos estreitar o caminho do futuro é subalternizado.
A nostalgia é um sentimento que aprisiona, que se reforça com a passividade, que aumenta com a desilusão, que elimina o voluntarismo, que corrói silenciosamente as energias necessárias a uma atitude positiva perante o futuro. Quando recordamos um momento passado, e quantas vezes o fazemos para obter informação que nos ajuda a perceber o presente, e a memória nos traz um sentimento é uma simplificação confrangedora. Se for a nostalgia é uma limitação comprometedora.
A nostalgia deixa-nos sem argumentos lógicos. É o resultado de uma apreciação subjectiva, perfeitamente datada e localizada em que o distanciamento entre nós e a realidade colectiva possivelmente não é o mesmo de agora. Havia muito menos poderes e salvo o da polícia política eram menos obsessivos. Porém os casos de nostalgia pessoal normalmente só são compreensíveis num determinado contexto. Aliás todos nós percebemos isto e temos períodos da nossa vida que apreciamos mais.
Para agravar esta maneira de ter memória do passado somos levados a definir nele períodos que requerem uma certa consolidação. O mais normal é aceitarmos a divisão culturalmente instalada com infância, adolescência, juventude, maioridade e outras subdivisões menores. Já quanto à memória do colectivo temos de aceitar as grandes divisões que a história nos impõe.
Há imensa gente a falar de uma qualquer nostalgia que sente de um poder particularmente benévolo com que conviveu ou cuja memória lhe enaltecem. E no geral não é por terem ficado mais pobres, por serem mais infelizes, por terem menos poder. Quem não viveu directamente pode ser vítima de efabulação mas não se pode ignorar que há pessoas que têm consciência de uma realidade vivida.
A nostalgia complica em muito a nossa relação com o poder porque este se dispersou, tem muitas mais fontes e exercesse em muitos mais domínios do que no passado. O poder como que nos persegue e imiscui-se em cada vez mais aspectos da nossa vida, em geral com as desculpas que nos quer defender, que não será decerto de extraterrestres, será dos outros que somos afinal nós mesmos. Caso evidente é o uso cinto de segurança.
Por muito que às vezes possamos entender que ambicionamos regressar a um poder paternal ou maternal, hábil em tornar ténues os poderes paralelos que outrora se exerciam, por mais poderes que nos vamos apercebendo que existem, o poder do dinheiro, das corporações, dos marginais, dos homossexuais, das seitas secretas e nem tanto, dos políticos, dos intermediários, do comércio por grosso, dos financeiros, de lobbies de toda a ordem, não nos podemos assustar e fugir à luta.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Uma despedida … até um dia destes!

Não é impunemente que nos vimos, embora muitas vezes esporadicamente, durante pelo menos vinte anos. Que se exerce o poder numa comunidade fechada, peculiarmente aberta ao mundo de forma que em cada momento só nos vissem por uma janela estreita e devidamente seleccionada. Isto é, sempre estivemos abertos ao mundo, mas por outras janelas que entretanto se foram fechando e somos agora vistos quase só por uma janela que Daniel Campelo abriu.
Daniel Campelo deixou marcas. Marcas naqueles que encontramos e naqueles que nos visitam e antes de nos verem já o viram a ele à janela. Também deixou marcas na paisagem, mas não tantas. Uma vez um casal passeava na Ponte Medieval e, antes de se me dirigirem, falavam um para o outro na obra que Campelo tinha feito ali mesmo, debaixo dos seus pés. Queriam saber se o rio alguma vez tinha passado naquela ponte, mas eu pedi-lhes desculpa e antes de lhes responder disse que a Ponte tinha mais de 600 anos e até o lajedo era anterior a Campelo. Campelo não tem culpa, mas até equívocos destes se criaram.
Daniel Campelo não criou uma nova comunidade, mas não há dúvida que assumiu o lugar de líder natural da comunidade existente. Marcou mesmo a nossa identidade e até quebrou uma certa resistência urbana à uniformidade. O bem geral é sempre um refúgio que serve aos políticos para se justificarem. Não há no entanto progresso sem ideias pessoais, a não ser que queiramos que elas se desenvolvam apenas lá fora e aqui todos tenhamos que aceitar o unanimismo. Atrevo-me a um abalanço geral mesmo reconhecendo que nem sempre acompanhei o seu desempenho com a mesma atenção.
A nossa relação com o poder nem sempre é fácil. E Daniel Campelo foi durante 16 anos a personalização do poder. Não há nada de acintoso nas críticas políticas que se lhe possam fazer. Se há algo de pessoal tem a ver com o gosto de cada um e também Daniel Campelo, por mais aceites que as suas ideias tenham sido nesta comunidade limiana, não pode exigir que todos gostem do que ele gosta. Assim na nossa relação com ele enquanto poder, houve momentos de euforia e de asfixia, de aproximação e evidente distanciamento.
Daniel Campelo entrou na gestão autárquica pela mão de Fernando Calheiros há vinte anos numa altura em que o cavaquismo estava no seu auge e ambicionava tudo levar à sua frente. Roubada uma vereação quase inteira ao CDS, o PSD lançou-se à conquista de uma Câmara na qual, aliás, sempre tinha estado a partilhar o poder e concitou contra si todas as outras forças políticas que se uniram, prescindindo da sua representação e elegeram o CDS que habilmente continuou a juntar a si uma vasta selecção de apoios de origem multipartidário.
As relações políticas de Daniel Campelo sempre foram melhores com o PS do que com o PSD e levaram aos célebres orçamentos do queijo limiano. Estes deram origem a episódios que, para o bem e para o mal, para o louvor e para o ridículo, levaram a um mediatismo nacional pouco habitual para um autarca. Para mim, maugrado a hipocrisia de muitos políticos, a imagem de Ponte de Lima ficou diminuída, afunilada. Só dirigindo os holofotes de imediato para jardins e velhos monumentos e esquecendo o restante, é que esta questão foi sendo esquecida.
Cada um sabe dos seus sentimentos pessoais mas eu sou amigo do mundo rural. Esquecendo a desgraçada vida dos antigos lavradores, agradava-me o antigo equilíbrio aqui existente. No entanto defender o ruralismo como Daniel Campelo o faz é um absurdo, de um conservadorismo atroz. A autarquia poderia ter feito muito mais para obviar aos aspectos negativos que o impacto do progresso alheio na nossa estrutura secular teve. Não chega fazer da defesa dos despojos uma teoria, o ruralismo. Até porque a nossa identidade já não é rural, embora tenha algo de rústico. Já só estamos plantados no ambiente rural.
A fábrica do queijo lutou para cá sobreviver mesmo sem leite, tal a incúria de todas as autoridades e o crime do corporativismo salazarista. A vida rural que assentava na pequena produção leiteira já havia levado a machadada definitiva por motivos de monopólio primeiro e depois económicos, higiénicos, de organização. Daniel Campelo apareceu como o defensor de um mundo rural já moribundo. Acho que foi a primeira mentira que fez pensar a Campelo que as mentiras também podem ser aproveitadas para obter efeitos políticos.
Melhor teria feito Daniel Campelo se tivesse comprado uma quinta e com pouco custo mantê-la a produzir segundo as práticas seculares. Era uma forma de preservar para a gente nova uma visão idílica do passado. Antes comprou quintas e quintas e manteve umas ao abandono, outras plantou-lhes jardins e subverteu todo e qualquer princípio de defesa da tradição. A capa de defensor do mundo rural não corresponde ao conteúdo.
Mas a defesa do ruralismo teve decerto outros intuitos de carácter político. Convém que se mantenha uma certa subserviência que está associada à ruralidade. Neste meio deste povoamento disperso e deste individualismo extremo, as exigências das pessoas são poucas e postas com moderação. Até os próprios autarcas se deixam contagiar por este ambiente pouco exigente. Mas há uma correspondência efectiva e um elogio a fazer em termos de exigência no que se refere à gestão financeira e patrimonial a partir de uma segura gestão corrente.
Permita-se-me um conselho: Quando se vê que muitos autarcas do Norte são chamados a exercer funções no Governo e pouco depois regressam ficamos apreensivos. Será que a gestão autárquica lhes fecha os horizontes, não estão preparados para verem além do seu quintal, da sua paróquia. Andará por aqui provincianismo, parolice, que pecado é este? Tendo Daniel Campelo a ambição de exercer um cargo com uma influência mais vasta, será que seguiria estes exemplos se a oportunidade lhe surgir? Esperemos que não. Um abraço amigo! Até sempre!

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

A nossa difícil relação com o poder – o deslumbramento

A maioria de nós ambiciona ter uma relação fácil com o poder, pouco mais do que isso. Que o poder não seja injusto para nós, que consigamos dizer da nossa justiça quando nos aprouver. Hoje é importante ter voz. Podermos falar ou ter quem fale por nós numa relação transparente e leal. Já não é aquela máxima da “paz e sossego” se lida à letra, mas de certa forma a frase ainda pode servir.
Claro que aqueles que se apropriam de modo fraudulento da nossa representação ou aqueles que a adquirem por métodos legítimos mas a vêm a aproveitar para outros fins, a desrespeitar a nossa vontade, não nos deixam estar sossegados. E há sempre algo que ocorre inesperadamente e nos tira a paz.
Como estamos quase sempre calados, até porque se falássemos todos ao mesmo tempo ninguém se entendia, há quem venha falar por nós e, arrogando-se o estatuto de intérpretes da nossa vontade, diz coisas que nós não diríamos ou fala de uma forma diferente da nossa. Mesmo quando falamos quase sempre não o fazemos no momento e no lugar certo. Mas podemos estar seguros de que alguém se aproveita e falará por nós.
Alguns destes ainda se desculpam, que falam assim por ser a maneira de se fazerem ouvir, que aplicam o exagero ou outra forma específica porque só existem duas opções: Ou ocupam um lugar que está vazio ou reforçam a voz que já ocupou o lugar de onde a voz se ouça melhor. Mas o problema é que não é só esta razão que os move, os seus propósitos são no geral bem diferentes dos nossos. Eles movem-se numa lógica de poder e têm do poder uma noção demasiado lata, mesmo quando se dizem liberais.
Todos nós, os não políticos, gostaríamos que o poder se desenvolvesse só o necessário e amoldado a nós, capaz de satisfazer as nossas necessidades do presente e do futuro. Todos nós gostaríamos de ter algum poder e influenciar o restante, disso não fugimos. Hoje, mesmo que tenhamos tido essa ideia, sabemos que é inglório lutarmos pela anarquia, a anarquia já não é possível num mundo de relações complexas que exigem a submissão a algum poder.
No entanto o nosso problema com o poder não está resolvido. Ele consiste muito em deixarmo-nos deslumbrar pelo poder dos políticos. Eles aparecem nos telejornais, dão entrevistas, fazem declarações e nós ficamos embasbacados. Até pequenos títeres de província, caciques de aldeia, quando têm uns minutos de tempo de antena depressa passam a figuras nacionais e a terem a sua eleição garantida.
A nível dos políticos nacionais este poder mediático imenso está mais repartido entre situação e oposição e dá origem a batalhas mais renhidas que têm o duplo efeito de nos causar repulsa e deslumbramento. A gravidade do problema reside em que isto é sinal de que já perdermos a noção, eu diria mais, ainda não chegamos à noção do que é razoável, do que é ponderado, proporcional, apropriado, aplicável na prática.
Assim admiramos os políticos, as suas excentricidades, as suas arrepiantes vulgaridades. Cobiçamos a sua vida por coisas fúteis, condescendemos com poderes excessivos de figuras pueris a quem entregamos mais facilmente o poder. As figuras mais sérias só nos atraem esporadicamente, que no geral ainda nos suscitam temor. Permitimos que o poder seja usado a propósito e despropósito, que no meio das influências legitimas se disfarçam intuitos desonestos.
Todos nós, os não deslumbrados, gostaríamos de exercer algum poder a propósito e de ter alguma influência legítima sobre outros ao mesmo tempo que aceitaríamos ponderar a opinião dos outros em relação ao que nos coubesse fazer e não dissesse respeito somente a nós mesmos. A colaboração com os outros é o caminho e a partilha o objectivo final a atingir.
Quanto ao deslumbramento, nem sequer sabemos se alguma vez acabará. Mas o grave está em que nem nós próprios podemos ter a certeza de que estamos perfeitamente imunes a esse mal. Haverá algumas noções que nos ajudariam a exercer o poder de uma forma moderada e justa. A mais forte é mesmo a noção de partilha que convertida em sentimento muito ajudaria à convivência humana. Mas não haverá dúvida de que o vazio de poder é um impedimento a essa partilha.
Para exercer o poder é melhor retirá-lo a alguém do que ocupar o vazio. Este é aproveitado pelos mais perversos que o utilizam como justificação não de um poder específico e limitado mas de um poder geral, suficientemente lato para permitir todos os sonhos de poder. Invertendo a questão dá a teoria de “ou nós ou o caos”. Nesta situação o deslumbramento é quase inevitável.
Quando temos consciência de que haverá outras pessoas prontas a exercer o poder com uma eficácia semelhante à nossa, quase automaticamente somos levados a exercê-lo com mais cuidado, de forma mais participada, de modo a suplantar por essa via todos os outros possíveis utilizadores. A democracia só avança se houver um número cada vez maior de pessoas habilitado a exercer o poder e se um maior número tiver uma participação genuína no poder.
A desculpa de muitos, que nos é apresentada a nós e também de certeza a eles próprios, é que as alternativas seriam bem piores do que a sua. Há realmente casos em que as alternativas sobram, no entanto de duvidosa qualidade, mas geralmente escasseiam e é nestes casos que a porta está mais aberta a todos os oportunistas. Porém este facto não dá direito a ninguém de excluir os outros da participação na gestão da coisa pública.
É o querer a exclusividade na gestão que leve muitos a não fomentarem qualquer tipo de participação. Quando a preocupação pela defesa do poder suplanta a preocupação pela sua melhoria permanente e pela sua partilha o resultado é sempre desastroso. A opção adoptada por muitos é a teimosia com recurso a argumentos laterais, o prescindir do aperfeiçoamento próprio, a exclusão do contributo dos outros. O poder torna-se um vício e o deslumbramento é o elemento viciante.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Seremos ainda uma sociedade conservadora?

Normalmente associa-se o Minho ao conservadorismo, a um atraso atávico, onde não entram ideias modernas, nem inovações. Há um certo erro nesta visão porque, paralelamente à formal, sempre no Minho se desenvolveu uma cultura de transgressão em muitos aspectos do comportamento. O Minho não é uma sociedade imóvel, apática. Só que as referências parecem não ter mudado e a transgressão não significa mais nada além disso mesmo, não representa uma vontade de mudança
Para caracterizar esta sociedade podemos recorrer a um aspecto da vida, um domínio de acção a que se possa atribuir a responsabilidade por todos os outros? Será de atribuir o conservadorismo à religião? Com certeza que a religião está associada a alguns comportamentos de contenção e sobriedade mas que as pessoas assumem também levadas por outros motivos. De certo que quem associa religião a conservadorismo também associa modernidade a excesso, o que é excessivo.
Haverá sempre alguns aspectos da vida que voluntariamente ou não assumem temporária e conjuntural a prevalência sobre outros. Qualquer domínio da actividade humana pode mesmo assumir uma importância desmedida e até alterar certezas tidas por absolutas. As forças e fraquezas próprias surpreendem-nos por vezes. Para sabermos se um domínio da actividade trava ou acelera a mudança exige-se um olhar sobre o que lhe é intrínseco e sobre o exterior hipoteticamente afectado.
O grande travão do desenvolvimento económico tem sido os próprios factores económicos. É a economia que se mostra incapaz de gerir convenientemente as suas insuficiências e os seus excessos. O grande travão do desenvolvimento cultural tem sido a própria cultura que não controla as suas próprias fontes de financiamento. Também o grande travão ao desenvolvimento político democrático são as próprias forças instaladas que condicionam a nossa visão das relações sociais, do ambiente e mesmo das formas de economia possíveis.
Não somos atrasados, entendemos é mal toda a organização social que extravase o domínio da nossa aldeia. O nosso mundo vivencial pode aumentar mas o conhecimento relacional mantém-se. De tal modo que gente que hoje é erudita, cultivada, cosmopolita, mas que tem a sua origem nesta terra, cultiva ainda essa visão estreita que lhe ficou da infância e para não perturbar as relações cá vividas assume, quando cá está, essa forma de comportamento reservado e obsequioso que nos caracteriza.
Tais pessoas são capazes de se baixarem ao nosso nível, embora usando uma visão estereotipada e essa sim ultrapassada, mas nós somos incapazes de nos elevar até eles, de colocar os problemas que eles colocam, porque para nós tudo se resume a uma realidade trivial e a alguns medos que a imprensa nos trás. A nossa visão do mundo desenvolveu-se com muito pouca formação, pouca mais informação e está condicionada pelo passado, pelo presente e pela falta de uma visão esclarecida do futuro.
Tal como o fazem com as aldeias os meios de comunicação social também vão criando e mantendo os seus estereótipos que falam daquilo que se desenrola nas grandes metrópoles, no sexo, na política e nalguns outros sectores mais especializados, mas que em nada nos ajudam a perceber a realidade. Limitamo-nos a ser caixas de ressonância, repetidores de umas vozes mais tonitruantes que por acaso se façam ouvir.
Ter voz própria nunca aqui foi uma ambição particularmente sentida. Há uns loucos que de vez em quando despontam e falam em dissonância com todos. Mas aí o discurso é incoerente e repentista. E como podia deixar de ser assim, como é que se poderiam desenvolver vozes personalizadas e com suficiente ligação à realidade nesta terra de fundos caminhos, altos muros, espessos bosques, culturas exuberantes?
Faltam-nos as grandes planuras, horizontes largos, visões diversificadas? Mas também nós podemos subir a altos miradouros, vislumbrar de lá planícies verdejantes, outros montes mais longínquos, ainda e sempre barrando-nos a paisagem. Só que não podemos permanecer lá tanto tempo quanto queríamos. Temos a beira-mar, essa imensidão líquida de que não nutrimos medo, antes nos atrai sempre. Faltam-nos os barcos para nos fazermos ao mar.
Podemos sonhar, só que os nossos sonhos não coincidem com os sonhos dos outros. Estes, aqueles que têm acesso à largueza da mundividência, têm os seus sonhos construídos noutra base, assentes em pilares de outra flexibilidade, movimentam-se melhor, aspiram a outros céus. A nós até este verde persistente e sombrio nos enche, não deixando espaço para outras cores, para outros odores, é um travão aos nossos sentidos. Somos duros, de cintura firme, de imaginação paralítica.
Não está em causa a beleza do local, a ternura da paisagem, a amenidade da aragem, o vigor que brota do próprio solo. Está em causa a saturação, o excesso, a asfixia, a necessidade de subir ao monte para respirar, evitar a paralisia, o atrofiamento, o definhamento e a necessidade de exercitar a voz. Principalmente exercitar a voz quando as vozes dominantes são monocórdicas. E conservadorismo existe quando isto acontece.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Votos contados, vale a pena falar?

Votos contados, não vale a pena falar, dirão os mais cépticos, dirão também os mais arrogantes. Vale sempre a pena falar, diremos nós, porque estamos a falar do homem, do seu modo de encarar a vida, os outros, e porque devemos alertar para o desdém com que alguns inteligentes serão tentados a encarar quem os produziu e para os abusos que alguns serão tentados a cometer sobre os mesmos.
Votos contados, vamos ao trabalho, que não querem ouvir falar mais em votos, dirão os mais fracos, dirão também os mais apressados, desejosos de pôr em prática aquilo que congeminaram à revelia dos eleitores. Vale a pena deixar trabalhar quem tem obrigação disso, mas também vale a pena aproveitar para pensar porque as coisas correram assim e não doutro modo qualquer.
E valerá a pena ser oposição, mas convenhamos que aqui deveríamos ter uma conduta mais comedida. Nas eleições nacionais é comum fazer-se oposição logo a partir do dia seguinte à eleição, sem um balanço feito, sem uma autocrítica, muitas vezes sem ter em conta as consequências dessa posição. Tanto nas locais como nacionais impor-se-ia que um balanço completo fosse feito porque o idealismo político de cada um comporta decerto alternativas mais flexíveis dos que as mostradas durante as campanhas eleitorais.
Porém mesmo quem se propunha trabalhar com os vencedores não pode ou não deve abdicar assim de rompante das suas ideias e passar a partir da derrota a perfilar outras, só porque aparentemente saíram vencedoras. Pelo menos haveria que ver se foram as pessoas ou as ideias que venceram, porque estas só parcelarmente são tidas em conta., e, se uma pessoa está bastante convencida da validade das suas, mais se deve empenhar na sua defesa.
Afinal o que faz as pessoas votarem? O que faz as pessoas mudarem de voto de umas eleições para outras, como acontece tão drasticamente em Ponte de Lima? Será apenas um benefício imediato, nem que seja só um bom relacionamento com os poderosos, que levará tantos milhares de eleitores a redireccionar nas autarquias os votos em relação ao que se praticara nas legislativas?
Mas as pessoas também gostam de se olhar ao espelho e de olhar do mesmo modo o seu grupo, a sua aldeia, a sociedade em que se integram. Será apenas o benefício mediático que levará a entregar a gestão da imagem àqueles que contribuem para projectar a imagem básica do concelho, mas também, reconheça-se, acrescentaram a essa imagem, para o bem e para o mal, algo da sua lavra?
Ou serão tão só as pessoas, umas com que nos identificamos porque elas se identificam connosco, e votamos nelas, e outras com quem não temos ligação, que nos são avessas, indiferentes ou fracamente apelativas e que não merecem o nosso voto? Afinal de que tipo de pessoas gostamos mais, aqueles que se identificam mais com o nosso estado de espírito, ou daqueles que nos dão ânimo para enfrentar o futuro?
Desde finais dos anos oitenta, desde que entramos na Comunidade Europeia e dela começamos a sentir a influência, desde a queda do muro de Berlim, que a política deveria ter deixado de ser vista com o empirismo de outrora. O relacionamento político pode estar enfim a um nível diferente do relacionamento social, inter-pessoal, familiar mesmo. A política pode dar um contributo para a dignificação humana que a própria família, abandonada à sua sorte, é incapaz de dar.
Quem votou neste ou naquele candidato a autarca deve ter para nós a mesma dignidade, mesmo que vejamos que houve factores que influenciaram o sentido do voto, sejam efeitos psicológicos ou materiais, do âmbito da coacção ou do constrangimento, da chantagem ou da sedução. Se houve quem se deixasse “levar” isso só revela a nossa falha política quando nos propomos defender os direitos e a dignidade dos outros.
Afinal o ser indefeso, que pode ser vítima, mas também o abutre pronto a cair sobre a presa, é o princípio e o fim de toda a actividade política. Elevar a dignidade do homem é também colocá-lo em situação de ser elemento de uma relação aberta, leal, igual entre quem é chamado a trabalhar na organização do Estado e quem tem que delegar em alguém as funções que ele próprio não pode ou não quer executar.
Quando há muito poucos a queixarem-se, há, do outro lado, muitos a rejubilar, porque é sempre bom estar do lado dos vencedores. No entanto a liberdade é suficiente para que possamos atribuir culpas próprias aos que se queixam e nenhum valor aos que enaltecem a vitória porque o seu contributo poderá ter sido nulo.
Aqueles que perdem fazem bem em repensar o seu enquadramento e a sua intervenção política nesta sociedade que, não os tendo escolhido, não formula desta forma qualquer juízo explícito de valor. O que não podem é ignorar, querer teimosamente persistir no erro e arrastar as organizações em que se inserem para um abismo permanente. O eleitorado perdoa melhor àqueles que são fracos mas ganham e não perdoa aos que perdem, mesmo sendo um pouco mais fortes. Ou será que só são teimosos?

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Dados lançados…votos à urna!

Depois das legislativas as eleições autárquicas serão subestimadas, dirão pouco a muitos, só alguns as relevarão, a esses dirão muito mais. O apelo interior ao voto, que cada um de nós sente nestes momentos, será nas autárquicas menor, sem dúvida, o apelo exterior com que a toda a hora nos acometem será nas autárquicas quase sempre maior, a proximidade produz os seus efeitos. O mais relevante do que se espera será que em muitos sítios as opções sejam outras.
São outras as funções a cumprir pelos eleitos autárquicos, outras são as qualidades exigidas, as expectativas criadas são doutra natureza e são estes factores que teremos que analisar e avaliar de modo a tomarmos uma decisão, porque ela nos é imposta. Mas levantar-se-á sempre o problema de como é possível que uns partidos não consigam pessoas de qualidade, disponíveis e empenhadas em exercer funções autárquicas “a tempo inteiro” e para outros parece sobrarem as pessoas e o seu problema é a escolha.
Como é possível que uns que até têm bastantes votos nas legislativas se desunhem para arranjar candidatos que concorram sob a sua bandeira e não os conseguem, senão à última hora, e outros agreguem a si com tanta facilidade pessoas de diferentes origens, prontas a desfilar sob bandeira alheia? Como é possível que uns nem com a preocupação de qualidade consigam as boas graças do eleitorado e outros nem precisem de preocupar com ela porque alberguem sob o seu manto gente de qualidade muito díspar e conseguem o apoio popular?
Essencialmente porque uns aparecem esporadicamente nas campanhas eleitorais, antes delas votam os eleitores ao desdém, depois do desastre enterram a cabeça na areia à espera que o flagelo passe. Para que é que eu me meti nisto, dizem os mais desiludidos pela sua fraca prestação. Má hora a que não resisti à vaidade de aparecer numa lista, dizem aqueles que nunca se deveriam ter metido, por não terem a humildade bastante.
E porque há outros que já ocuparam quase todo o espaço, que conseguem dar a ideia de que há falta de necessidade de haver no terreno outras organizações além das que os próprios controlam, que procuram convencer os outros de que são capazes de conciliar o interesse de todos. Para esses quem surge de forma meteórica não está interessado em defender os interesses de ninguém a não ser de si próprio. Quem procede desta maneira e é portador de tal estado de espírito não vai a lado algum. Vai passar o resto do tempo a olhar para si.
Então será que “ Os dados já estão lançados”? No geral nas autarquias os dados são mais antigos e os votos mais previsíveis. Quase tudo se passa como se o processo de decisão já esteja concluído há muito e como se tudo o que ocorreu depois não seja suficiente para abalar a decisão já tomada. As eleições são periódicas e, sejam quais forem os resultados esperados, deveriam obrigar-nos a uma reflexão mais ou menos longa. Porém a nossa preguiça mental não nos leva a tal, muito menos a reconsiderar votos feitos.
Se formos benevolentes é sempre tempo de dizermos que podemos fazer escolhas, que nem tudo está previamente decidido, que se não nos deixamos condicionar pelos outros também não nos devemos deixar condicionar por nós mesmos, que escolhas antes feitas nos não devem condicionar agora, que tanto nos podemos ter enganado então, como podemos estar enganados hoje. Sermos capazes de recolocar a indecisão e avançar a partir dai para as decisões é uma qualidade e não falta de coerência, como por vezes se diz.
. Quer dizer que o importante é sabermos como tomar as decisões. E neste aspecto o mais importante ainda é o sabermos que o que foi importante, o que pesou há anos pode-se revelar hoje perfeitamente irrisório, assim como podemos estar seguros de que o que nos parece importante hoje se pode revelar amanhã como um conjunto de pormenores ridículos que só foram levados em conta devido ao nosso “agrado” de momento.
Se nós adoptarmos um bom método de tomada de decisões podemos enganar-nos mas não temos razões para nos sentirmos diminuídos. Mas será que nos podemos decidir correctamente se a toda a hora nos surgem novos candidatos, novas caras ou então pessoas que nós conhecemos com outra roupagem? Será legitimo que nós nos deixemos levar por aqueles que já conhecemos há muito, que de algum modo nos acompanham, que de alguma maneira nos ajudam a superar este sentimento ambíguo de orfandade? Ou será melhor entregarmo-nos a um desconhecido, por mais méritos com que o cubram, e por mais convencido que ele esteja que nós o conhecemos?
Ninguém toma decisões sem “pensar”. Se muitas vezes não usamos todo o capital intelectual e tomamos reacções rápidas é porque o ritmo de vida adoptado nos convida a não gastarmos muito tempo a pensar e às tantas convencemo-nos mesmo que já sabemos tudo e decidimos pelo gosto de momento, pelo agrado, pelo mimo que nos é feito. Para os intelectuais o valor das nossas decisões depende da leviandade com que as tomamos, isto é, da maneira como nos deixamos impressionar por leves sentimentos ou por simples emoções de agrado.
Qualquer acusação de manipulação social não tem fundamento. É tão legítimo lutar pela manutenção de um ascendente já conseguido pelo apelo constante àquelas impressões leves, como o é o apelo a sentimentos fortes e cujo deslocamento até é muitas vezes mais do que evidente. Assim as nossas decisões não devem ser contestadas pelo seu valor, mas são os políticos que devem ser realistas e criar os laços que possam ser mais fortes do que os do adversário.
Se nas autarquias um partido tem uma votação interior à votação nas legislativas é porque os seus candidatos locais não têm o valor correspondente ao dos nacionais. Ou tão só não têm a persistência, não se querem submeter à exposição a que todos os políticos estão obrigados. Não se queira que a população veja da mesma forma um meteoro e um satélite geostacionário. Alguns laços ou pelo menos a disponibilidade para os estabelecer são elementos essenciais nas eleições locais. Não chega passar, olhar, andar por aí, nem chega sequer ter boas ideias, é preciso estar de alma e coração cá, com a gente de cá.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Teremos caciquismo em Ponte de Lima?

Veio à luz do dia uma ideia controversa sobre a existência de caciquismo, fenómeno que não é decerto exclusivo nosso, mas que, segundo alguns, adquire em Portugal uma dimensão desmedida. Essa ideia, só pela sua originalidade de referenciar o caciquismo na Madeira, nos Açores e no restante Pais e por excluir Ponte de Lima desse cenário, é uma injustiça que nos leva a abordar este assunto.
O caciquismo provém dos primórdios da política em Portugal quando se digladiavam progressistas e regeneradores em plena Monarquia, continuou com republicanos e democratas na Primeira República, teve um interregno de 48 anos com a ditadura, em que foi substituído pelo controle institucionalizado, e refloresceu com a democracia de Abril, talvez porque os excessos extremistas levaram ao extremar de dois campos, que entretanto se foram movendo e recentrando continuamente.
O caciquismo que existe em Ponte de Lima só se particulariza porque é válido em termos de eleições autárquicas e não tem a mesma expressão nas eleições de âmbito nacional. Casos semelhantes poderão existir noutro local, mas não é a regra genérica no País. O facto de cá haver um tão grande deslocamento de votos só pode resultar de um caciquismo particularmente egoísta, agressivo e persistente. Só o caciquismo pode manter uma tal hegemonia política, consegue impedir a alternância
Aqui não se trata de uma caciquismo global, absorvente, idêntico ao existente na Madeira porque aí é válido para todas as eleições e abrange mesmo outros aspectos não directamente políticos, afecta a vida corrente e todo o relacionamento social. Em Ponte de Lima não vamos tão longe, embora o panorama existente logo após o 25 de Abril não fosse muito distinto daquele que ainda existe na Madeira.
Houve em Ponte de Lima uma evolução que tentou acompanhar aquilo que se desenrolava a nível geral do País. Não está garantido que tenhamos evoluído menos do que os outros. Efectivamente os outros, aqueles que estão afastados de Ponte de Lima há muito ou os que sempre estiveram, têm quando vêm a Ponte de Lima, quando cá se instalam ou mesmo só quando a Ponte de Lima se referem o mesmo comportamento, a mesma forma de estar, as mesmas ideias que cá se propagam.
Então será que estas pessoas também são vítimas do caciquismo, que este tem um braço gigante? E que portanto o caciquismo já hoje se não exerce sorrateiramente, no “porta a porta”, no convívio desportivo, cultural, familiar, no caso extremo no confessionário? Pois teremos concluído que o caciquismo de hoje não prescinde dos velhos métodos, mas tem novos contornos, é uma influência de diferente natureza, exerce-se de forma indirecta, pela comunicação social, pelo acesso aos meios de informação.
Classicamente o caciquismo era exercido por duas forças que se digladiavam no terreno com altos e baixos mas com um certo equilíbrio a prazo. Esse caciquismo clássico não tinha substância intelectual, era uma influência exercida sem convencimento. Era um caciquismo primário que se desenvolvia pelo ascendente adquirido à base do poder económico, com dádivas, apoio e protecção e ponha em confronto dois “senhores”.
Hoje não há tanta ostentação do poder económico, obtém-se aquele ascendente através da ostentação do poder político, do poder de influência, dos bons relacionamentos. Os senhores da autarquia estão sempre presentes e espalham a sua influência, criam a sua rede de ligações. Porém nada mais legítimo se não fora este sistema ser baseado no uso e abuso do poder autárquico o que leva ao fim de um certo tempo a que uma só força política possa exercer o caciquismo, consiga arranjar pessoas que no terreno dêem a cara, exerçam a influência e controlem a situação.
O cacique de hoje tem que intervir no apaziguamento dos conflitos, no encaminhamento das energias dispersas, na criação de um clima de suficiência e satisfação para que se crie a onda, para que a comunicação social a tenha que levar ao seu destino. Este caciquismo moderno pode prescindir do existente na Madeira onde o regime é de maior constrangimento, mesmo de coacção institucional.
Aqui como lá o caciquismo está em permanente actividade, aproveita todas as oportunidades para dizer que existe, mas reconheçamos que cá só aparece para cobrar o pagamento devido nos períodos eleitorais, tem algum pudor em se exercer institucionalmente. A comunicação social facilita a sua vida, encarrega-se de manter viva a chama, mas o caciquismo sabe que não é seguro confiar nela e aqui é que pode haver coação ilegítima.
Se no geral o caciquismo intervém a todos os níveis e em todos os terrenos, mas fundamentalmente ao nível mais básico, actua logo na primeira instância do relacionamento social e aproveita toda e qualquer dependência que possa existir entre as pessoas. Se estas pressões podem ser imorais, só serão ilegítimas se exercidas sobre os meios, como a comunicação social, que devem estar disponíveis a todos os sectores sociais e políticos. De qualquer forma o caciquismo é condenável.
O caciquismo imiscui-se até nos relacionamentos familiares, mas não promove directamente a exclusão a não ser em casos extremos. O caciquismo lava as mãos sobre os efeitos dessa intromissão, não se preocupa que as pessoas, na sua vulnerabilidade, ponham em causa valores que deveriam defender dentro da família, dentro do grupo, na sociedade. Por isso não haverá evolução enquanto na política se não defender a promoção da liberdade, independência, da solidariedade, da partilha.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

As Feiras Novas e as noites mal dormidas

Explicar a força da atracção que as Feiras Novas sempre exerceram não é tarefa fácil. Outrora seria pela centralidade, pela existência de um espaço ideal para a Festa, por ocorrerem num tempo que sempre foi de festa, as colheitas. Mas a economia mudou, as pessoas mudaram, os seus gostos são outros, as suas profissões são muito mais variadas, a sua mobilidade é imensamente superior.
Há uns trinta anos para trás a dimensão das Feiras Novas era outra, menor, mas elas não eram vividas menos intensamente. As Feiras Novas instalavam-se, adoptavam o seu ritmo, percorriam um ciclo tradicional, mas sempre revigorado.
Hoje as Feiras Novas visitam-se, há movimentos de vai e vem que se desenrolam por períodos curtos, seja de dia, seja de noite, as pessoas não vivem o ciclo completo das festas, vem ver uma parte ou outra do programa. Quem vem de longe, em particular os mais jovens, mesmo que se instalam perto do recinto das festas acabam por viver as festas duma forma parcelar.
A expansão do espaço das Festas não alterou significativamente as suas características. O Largo, o Passeio, a Avenida, a Alameda e o Areal são ainda o núcleo do espaço festivo. Mas hoje nem sempre se passeia por todo o espaço, escolhe-se a zona em que se vivem as Festas, o programa a que se quer assistir, os amigos com quem se quer estar. Só se tal ainda for possível que as Festas são imprevisíveis e ocasião de novos conhecimentos.
Também se procura a música que mais se aprecia, a tradicional concertina no Largo e Alameda de S. João, as bandas musicais no Largo de Camões, a nova música pela Rampinha Acima. No restante espaço a música confunde-se com o ruído da feira, baralha-se. As pessoas jogam, divertem-se, compra-se e vende-se, marralha-se.
As Festas misturam-se com a Feira, esta outra força atractiva, indissociável das festas anuais. Também esta é uma característica rara e que constitui uma mais valia porque a feira dá vida, entusiasmo e movimento, não falando dos extraordinários valores monetários envolvidos. As Feiras Novas nasceram assim, como feiras anuais, com os festejos próprios de uma qualquer outra Festa.
Preservar esta característica é uma obrigação que se impõe. Só que a gestão do espaço terá que ser mais rigorosa para que a Feira não abafe a Festa. Também a pressão dos estabelecimentos ambulantes de comes e bebes se torna insuportável porque vai condicionar o espaço disponível para a tradicional feira. Limitar as Festas a uma cervejaria imensa e presente em todo o canto e esquina pode ser a sua asfixia.
As Feiras Novas sempre começaram com a chegada dos garranos vindos das serranias circundantes, onde os pastos são propícios à sua manutenção. Se hoje já não vêm em grandes manadas em que os poldros cavalgavam humildemente atrás das suas progenitores, mas vêm agora em camionetas devidamente apetrechadas para o efeito, o espectáculo é diferente, mas o interesse o mesmo.
A manutenção do garrano passa pela defesa do seu habitat e pela sua valorização comercial. Mas o garrano nunca foi, presumo, uma máquina de guerra, um cavalo vistoso para desfiles, um bom fornecedor de carne. O garrano tem que ser defendido com o amor de quem o não valorize por estes aspectos. E uma feira é sempre de uma grande importância na sua defesa e a feira anual de garranos nas Feiras Novas ainda é dos poucos espaços em que o seu comércio se pode fazer. Deve-se-lhe dar outra dignidade.
Depois a feira continua, a festa complementa a feira, como a feira complementa a festa. Afinal todos ficam satisfeitos, quer quem goste do dia, quer quem goste da noite. Mas seria pouco honesto dizermos que concordamos com a evolução que as festas vêm tomando e que se faça dos aspectos mais controversos o seu atractivo principal. Não será mais possível regressar à pureza original, mas decerto será possível limitar os estragos que novos comportamentos e novos aderentes sempre trazem.
Talvez o que pessoalmente mais me desgosta é a perca do encanto da noite. Tudo hoje é mais previsível e servido em doses super. Mas se a noite de hoje tem o esplendor que a noite de outrora não tinha, falta-lhe a originalidade, a espontaneidade dessas noites em que ainda sobrava areal com a sua areia limpa a brilhar à luz da Lua e a que o estourar dos foguetes e as suas artificiosas luzes emprestavam chispas que faziam repentinamente da noite dia e do “sono” de alguém mal dormido uma explosão de alegria para todos.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Fundação Manuel Pimenta, por um futuro mais solidário

Na presença de vários convidados e jornalistas tomaram posse na Casa da Arrifana em Moreira do Lima os orgãos sociais da Fundação Manuel Pimenta cujo lema é ”Por um futuro mais solidário”. Para demonstrar o papel social que cabe a este tipo de fundações usou da palavra Noé Gomes, Presidente do Conselho Fiscal.
Esta Fundação em particular pretende intervir nas áreas da saúde e educação de modo a promover projectos próprios ou a apoiar projectos alheios que se revelem merecedores de tal apoio.
O primeiro projecto a apoiar é desta natureza e far-se-á no âmbito da geminação da Cidade de Viana do Castelo com a Vila do Cacheu, primeira localidade onde os portugueses aportaram na Guiné e durante muitos anos o grande entreposto comercial dos nossos navegantes na costa ocidental de África. Trata-se da construção de uma maternidade anexa ao Centro de Saúde local.
No entanto o primeiro acto formal que envolve a Fundação foi a assinatura de um protocolo de colaboração com a Universidade Lusófona que, integrando a Universidade Lusófona da Guiné, pode colaborar nesta e noutras acções naquele País.
Esta preferência deve-se ao facto do Dr. Manuel Pimenta ter feito o seu serviço militar na Guiné e ter ficado sensibilizado com uma realidade que ele sabe não ter melhorado. Também o nosso conterrâneo Eng. Montenegro Fiúza, sendo o administrador daquela Universidade da Guiné, desempenhou um papel primordial na assinatura deste protocolo.
O Prof. Dr. Manuel Damásio, Reitor da Universidade Lusófona enalteceu esta acção da Fundação Manuel Pimenta e realçou a necessidade, a determinação, a certeza do êxito de todas as iniciativas que visem retirar do atraso parte significativa do mundo lusófono que ainda vive problemas dramáticos.
Conseguir dar dignidade a todos, elevar os índices culturais e científicos, dar projecção à lusofonia no mundo são também objectivos que norteiam a acção da Universidade Lusófona e para esta todas as colaborações são importantes e bem vindas.
Manuel Pimenta realçou que a sua iniciativa de criação da Fundação, tendo sido pessoal, teve o pleno apoio dos seus dois filhos que se irmanaram no mesmo espírito solidário. Vincou que a Fundação se não destina a obter reconhecimentos mas visa atingir os objectivos traçados dentro das suas possibilidades, tão só para cumprir a função social da empresa que dirige.

Falta-nos um autarca-modelo

Não se pode caminhar para uma autarquia às cegas, acreditando que se vai ter todo o poder do mundo porque os senhores que lá estão dão mostras disso. Como não há nada mais errado, como muitos desses poderes são fictícios, exercidos à margem da Lei, ou não são mais do que ameaças, convém saber dos verdadeiros poderes que as autarquias, e não as pessoas particularmente, devem exercer. Não falando do simples ascendente que tais pessoas adquirem, que não sendo ilegal, não nos deve condicionar.
Quando se luta pela direcção de uma autarquia local, além de que se deve saber para que se luta, e esse é um aspecto pessoal, é essencial que se saiba pelo que se luta. Por exemplo é bom que se saiba em que medida a autarquia é poder, se este é próprio ou delegado ou se há simplesmente uma representação. Também quando há poder delegado convém saber quem tem mais peso nessa delegação de poderes, se é quem está acima, outra autarquia, o governo ou é quem está abaixo, outras autarquias, a população.
No geral a população só escolhe representantes, que vão permanecer como tais ou que vão colher poderes provenientes doutras instâncias. Em qualquer caso os candidatos têm que enquadrar os seus objectivos dentro do conteúdo funcional do órgão para que se propõe. Funcionando nós no quadro duma república gestora de um Estado que se quer democrático, devemos saber que a soberania reside em ultima instancia no Povo e é por este delegada em orgãos nacionais.
No global é o Governo o depositário da parte mais significativa dos poderes soberanos e em particular do poder executivo, não prescinde deles, simplesmente os delega, lhes fixa claramente os limites quando os atribui às autarquias. Doutra maneira não poderia ser porque só assim assegura a unidade do Estado.
Há no entanto quem extravase das competências delegadas das autarquias e pretenda fazer vingar uma visão do poder em sentido inverso, partindo da base para o topo, elevando à categoria de poder soberano a sua capacidade de representação. Esta visão do poder em cascata em sentido ascendente é própria de quem está a lutar para fazer das autarquias um trampolim para outros voos, para alcançar poderes mais vastos ou simplesmente para reforçar o poder da sua força politica a nível geral.
Concomitantemente com esta pretensão de muitos autarcas há uma questão de estilo, há uma tendência pessoal para o exagero como também para a vaidade e cada vez menos para a modéstia. Muitos autarcas vão aproveitando a sua experiência para ir aplicando o seu estilo pessoal, para dar asas à sua imaginação, ao seu ego. Poucos autarcas irão aperfeiçoando o seu estilo de modo a fazê-lo corresponder a um perfil sóbrio e adequado à função.
A exuberância de muitos autarcas é utilizada para esconder muita da incompetência, da incapacidade para ponderar as decisões, da falta de sensatez para avaliar opções decisivas. Se os eleitores tivessem uma noção mais precisa do que se deve pedir a um autarca, se houvesse uma espécie de autarca-modelo que servisse para aferir as condições dos candidatos para exercer as suas funções, se estes candidatos tivessem um guia a seguir tudo seria mais fácil.
Infelizmente aqueles que foram apresentados por autarcas-modelo são dos piores exemplos que existem nas nossas autarquias. Mas isto devesse à maneira como eles foram referenciados, utilizando o seu mediatismo como factor principal que os alcandorou a esse título. Desacreditados esses, ficamos órfãos, todos passaram a ser considerados no patamar dos corruptos ou daqueles que pouco falta para lá estarem. O autarca de hoje tem que provar não ser corrupto, o que é tarefa difícil face à atmosfera nebulosa que os rodeia.
No fundo todos estamos à espera de varrer os dinossauros que proliferam nas autarquias, o que só vai ocorrer daqui a quatro anos, para que se possa abrir uma nova fase na democracia autárquica. É que estes que lá estão, além de todos os defeitos que foram agregando a si, são hipersensíveis a qualquer referência que se faça, a qualquer dúvida que se levante, fazendo da dúvida uma suspeita e da suspeita uma condenação.
Tem que haver uma esperança, mas a simples renovação não garante que as coisas passem a funcionar dentro de parâmetros aceitáveis em que a honorabilidade das pessoas não esteja permanentemente em causa. A vaidade, a ganância, a sofreguidão também residem nos mais novos. Mas o aumento efectivo das nossas expectativas será uma forma de responsabilizar os autarcas e de estes sentirem que lhes é exigido uma outra postura e um mais rigoroso cumprimento das obrigações a que se impõe.
Por sua vez, também as alterações legislativas dificilmente serão de molde a garantir a detecção atempada, o castigo exemplar, o banimento da actividade autárquica de quem se não mostrar digno da confiança dos eleitores. Perante o descrédito da aplicação da justiça temos de confiar preferencialmente na pressão social, no aumento do peso da sociedade, numa cultura de informação e de preparação atempada de alternativas.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Porque são diferentes as eleições autárquicas?

A maioria de nós não está vinculado a qualquer partido político mas poucos lhes serão manifestamente indiferentes. Haverá também alguns equidistantes em relação a dois dos partidos mais significativos, mas não em relação a todos. Quase todos nós temos a tendência para em cada momento “cairmos” mais para o lado de um do que para o lado de outro ou dos outros. No fundo para estarmos mais à esquerda ou mais à direita.
Mesmo aqueles que estão vinculados ou têm uma ligação forte a um partido político o terão atraiçoado seja em eleição presidencial, legislativa, autárquica e desde há uns anos nas eleições europeias. Mas é nas autárquicas que se encontra o terreno de eleição para essas democráticas traições. As autárquicas contribuem muito para isso porque aqui o histórico pesa muito mais e até quem está no poder a nível nacional tem muitas vezes dificuldade em conseguir candidatos autárquicos a condizer. A qualidade deixa muito a desejar e convida à traição.
É uma verdade comummente aceite que as eleições autárquicas se perdem, não se ganham. Quer dizer que as eleições se resolvem por arrastamento, quem ganhou uma vez dificilmente não repete a proeza. Quando alguém sai dum partido e muda para outro para concorrer ao mesmo cargo arrasta atrás de si uma legião de seguidores e quase sempre consegue ser eleito. Quem se mantém não precisa de revelar grandes dotes. O que está vale sempre mais do que se propõe vir.
A procura de razão para estes factos leva a pensar que há ocasiões em que os eleitores não gostam de apostar no desconhecido que é sempre quem não tem experiência autárquica do mesmo tipo. O eleitor odeia a descontinuidade salvo se se sentir directamente atingido ou ofendido. Por isso a traição do nosso eleito é tolerada mesmo que nos obrigue a votar num partido diferente e é bem vista se nos permite votar ao mesmo tempo na mesma pessoa e no partido do nosso agrado. Já hoje ninguém se sente constrangido a não fazer trair.
Afinal os partidos não são parte credível nesta questão, as suas indicações são sempre colocadas sob suspeição. Embora todas estas razões possam estar na mente do eleitor, no momento de votar parece haver uma ou mais razões mais profundas para que isto aconteça desta maneira. Uma razão imediata é a cobertura mediática que é dada e o facto de que o ela ser positiva ou negativa é indiferente, ela acaba por proporcionar um saldo positivo a quem dela beneficia.
Outra razão mais longínqua será a manutenção de uma maneira própria de ver o poder local, já não de proximidade ou de afastamento, mas de indiferença próxima. Por mais cordata que seja a população sempre houve ocasiões em que enfrentamos e afrontamos o poder. Mas para nos levantarmos contra o poder local é preciso um motivo muito forte. Mesmo quando o poder local era exercido sob mandato do poder central não era aquele que sofria os efeitos da nossa oposição.
Quando o poder local passou a ser eleito houve de tudo um pouco nas escolhas que os partidos fizeram e que o eleitorado sufragou. Fora alguns equívocos resolvidos nas eleições seguintes, as mudanças verificaram-se depois disso mais por desistência do que por derrota. E esta só ocorreu por evidente falta de jeito demonstrado num mandato infeliz. O crivo para ver a competência autárquica é mais grosso, não é comparável ao usado para a escolha do governo. Há mesmo muita leviandade no eleitorado autárquico.
A entrada em cena de algumas figuras mediáticas viria alterar um pouco a forma de eleição nos grandes centros urbanos onde também o voto político mais se faz sentir. Nos outros locais é o mediatismo que tem reforçado o poder dos que já estão no terreno. Entre pequenas realizações e grandes obras tudo é aproveitado para ter algum tempo de exposição pública que extravase o território. A fama sentida pelos de fora vale mais do que a sentida pelos da casa. Um autarca “querido” do País nunca é traído pela sua população.
Se o eleitorado vê com alguma leviandade a escolha dos autarcas já os interessados não brincam. A luta mais eficaz é subterrânea. Interessa obter apoio seja qual for o método, aliciamento, coacção, sedução. O cerco vai-se apertando sobre Juntas, associações e particulares. Qualquer pretexto é utilizado, agravando-se o método à medida da relutância, com coação moral e económica, com discriminações positivas e negativas, usando os poderes autárquicos de modo arbitrário e pessoal.
Aqueles que se deixam coagir a qualquer título porque disso tiram benefício pessoal ou relacional, económico ou outro, arrastam atrás de si muitos que apostam em manter a mesma cobertura e não vêm razão para mudar. Oferece-se protecção utilizando hierarquias sociais já estabelecidas, lideranças formais e informais e aceita-se protecção que não altere substancialmente o relacionamento normal com o meio social. Os eleitores não se querem chatear muito.
As hierarquias estabelecidas não aceitam com naturalidade lideranças informais. No entanto não tardam a tentar integrá-las sob o seu abrigo protector. A rejeição absoluta quase não existe, existe sim uma tentativa permanente de corrosão e corrupção moral que desvaloriza a ideologia e arrebanha os incautos. No poder local a ideologia funciona pouco e à medida que os mandatos se prolongam cada vez menos influência têm. Porque temos uma relação diferente com ele não vemos no autarca o político nacional do mesmo partido que odiamos, mas no geral ele é mesmo igual, às vezes pior, depende da sua heterodoxia.
Nas escolhas autárquicas os sentimentos ditos pessoais, sem serem provenientes de qualquer aprofundamento de relações realmente pessoais, contam imenso. Quem está no poder, desde que aberto a esse tipo de relações de falsa proximidade, tem uma evidente vantagem. A maioria das pessoas, se diz preferir uma pessoa dura, não dialogante, daquelas de pôr tudo na “ordem”, só aceita essa dureza para os outros, de resto vota preferencialmente em quem for mais permissivo, quem prometa defendê-lo directamente ou por entreposta pessoa.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Já pensou em quem votar nas autárquicas?

As forças políticas distinguem-se por objectivos, práticas, organização, afectação de novos membros, etc. A conduta dos partidos num dado momento depende de tudo isto, neste factores encontra-se a justificação para muito do que acontece, por exemplo na escolha dos candidatos aos orgãos do poder local.
O Partido Comunista renova-se fechando-se e procurando nos seus membros novas escolhas e velhas confirmações. Os mais pessimistas dirão que estagnou, os outros dirão que está numa atitude defensiva, de aposta na estabilidade. Aos candidatos interessa manter a chama.
O Bloco de Esquerda com uma votação superior nas europeias, mas com uma organização incipiente quedou-se nas boxes. Pouco vocacionado para o poder local, mas atraindo a juventude, caber-lhe-ia o papel de manter um bom extracto da população integrado na luta política. A abertura da juventude, a dispensa das subserviências que campeiam nos outros partidos, criaria uma outra perspectiva de olhar a vida pública.
Também o Partido Socialista falhou na organização. Este partido tem-na não a tendo. Porque a organização também serve para perpetuar erros, para prolongar inércias, para tornar a apatia uma falsa base da estabilidade. É uma organização fechada, endogámica, em que os membros alternam entre períodos de nojo e períodos de um activismo que porém não ultrapassa a pesca à linha.
Ou há peixe na linha ou novo período de nojo vem aí. Vivem angustiados por estarem num partido vitima da chacota quando está no poder e de excessivas expectativas quando na oposição. Não cultivam o emblema do partido, a solidariedade, e amaldiçoam a sua ingratidão, como se tivesse de lhes dar tudo.
Irrelevante para a captação de votos para o todo nacional, quem vota no partido fá-lo à revelia da estrutura local. Porque não tem sido útil ao poder local tem sido vítima do voto útil nas guerras locais passadas entre o CDS e o PSD e perspectiva vir a sê-lo na luta que se avizinha.
As perspectivas de renovação são nulas sejam a nível interno sejam pela captação de novos membros. Decerto que os membros locais vão um dia atribuir a culpa à pouca importância que o José Sócrates tem dado às estruturas partidárias mas é tão só revelador do vazio de ideias, do conformismo, do imobilismo. O PS local é um deserto com umas “estrelas cadentes” a luzir lá dentro, de que se não conhece uma ideia e que tudo devem ao PS nacional.
O PSD local é o paradigma da instabilidade permanente. Bem implantado na classe mercantil, no funcionalismo, no meio agrícola tem sempre gente activa, dentro e fora do partido, com a camisola bem agarrada ao corpo, pese embora o desconsolo dos mais clubistas que só celebram vitórias longínquas. A maioria dos seus membros bole muito mas é politicamente amorfa e sem valor.
Votam maioritariamente no PSD nacional mas a nível local, quando têm perspectivas de se alcandorarem ao poder todos se aliam contra eles. Traições também lhes não faltam. Até neste momento, uma ocasião única para apelar às suas hostes no sentido de se unirem à volta de uma candidatura inovadora, a traição continua a corroer o ânimo dos seus adeptos.
Nunca repetiu uma candidatura em duas eleições sucessivas e viu falhada a sua tentativa de pescar na casa do vizinho CDS há vinte anos atrás no auge da arrogância cavaquista. Tem uma história triste de sucessivos líderes perdedores e de eminências pardas sempre presentes, mas ausentes para assumir as derrotas. Tem uma história triste nas gestões partilhadas com o CDS em diferentes ocasiões, com a AD ou sem a AD, formal ou informalmente.
No último mandato foi colaboração no Executivo camarário, oposição na Assembleia Municipal, manifestando o exemplo típico de uma liderança bicéfala. O actual líder será a esperança de pôr termo a esta situação pela ausência aparente de compromissos com os velhos lobbies herdeiros do carrascão e do chã das cinco. Chegar-lhe-ia os votos sociais-democratas para ganhar, pelo que terá que saber vestir a camisola e apelar à quebra da subserviência que muitos dos seus correligionários ainda têm perante as forças retrógradas, ruralistas, paternalistas e castradoras que o CDS representa.
Este CDS local já não tem qualquer semelhança com o nacional nem com o que localmente lhe esteve na origem. Resistiu à arrogância cavaquista, solidificou-se numa heterodoxia original e de índole pessoal. O CDS aproveitou as divergências alheias, congregou voto de esquerda com voto de direita tradicional e a partir de Daniel Campelo aproveitou o mediatismo, mesmo que patético, de lutas perdidas e outras de duvidoso ganho.
O actual candidato geriu bem o seu perfil de escudeiro, numa corte em que os papéis estavam bem definidos com peões de brega, bobos da corte e outros cargos menores. A sua tentativa de passagem a chefe da orquestra manifesta-se muito difícil. Aparentemente, maugrado as lutas intestinas, os indefectíveis parecem permanecer firmes na defesa da fortaleza, as muralhas não aparentam um desmoronar eminente.
A adesão a este projecto que seria chamado a gerir o espólio do deslumbramento final de Daniel Campelo, os ímpetos napoleónicos do resistente Gaspar Martins, é uma incógnita. No fundo quem nele acreditar é porque acha que Daniel Campelo continuará como a eminência parda a dar coesão a uma equipa disforme, desconexa e sem outro cimento que não o oportunismo de querer navegar num barco vencedor. A pureza ideológica não levaria o CDS a lugar nenhum e com Daniel Campelo uma certa heterodoxia funcionou. Mas tal deve-se à sua liderança natural, a erros alheios e a um outro conjunto de circunstâncias exteriores favoráveis.
Para manter a sigla, o CDS tradicional continuou a abdicar da sua afirmação. Na prática o executivo de Daniel Campelo sempre se manifestou mais favorável às políticas socialistas do que a quaisquer outras. Poder-se-ia ver aí aquela democracia cristã que a nível europeu deu origem, numa estreita aliança com os partidos socialistas, à Europa Comunitária. Mas haverá uma doutrina que sobreviva a Campelo? Não virá ao de cima o que é mais próprio de cada elemento desta controversa equipa? É caso para eles próprios estarem apreensivos.