sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Um presente de Natal vale por si?

O consumismo, essa gripe mortífera que, com os mais insuspeitos propósitos, se espalhou no nosso universo nos últimos anos, aí está em todo o seu esplendor nesta época natalícia. Os produtores precisam de vender, os comerciantes de sobreviver, os amigos de alguma manifestação de que ainda nos não esquecemos deles. O subsídio de Natal é a isso mesmo destinado. Tudo é razão para incentivar a dádiva de presentes, que no geral não passa de uma infame troca na qual pensamos ludibriar os outros. Queremos dar latão e receber ouro de Lei. As excepções confirmam a regra.
Cá para mim, para que a perversidade que nos é própria não tome conta da nossa mente, quem recebe não tem nada que dar e quem dá não tem nada que receber. Qualquer sentimento mais delicado, como a amizade e o amor, não se regateiam, mas também não lhes damos preço. O problema só se coloca quando não temos sentimentos destes para retribuir, mas é sempre de louvar o esforço de quem, com boa intenção, faz por os merecer. Aliás, por muito fugaz, há sempre alguma gratidão para oferecer a quem nos dá um presente. Outro em troca é que não, seria puro mercantilismo.
Um presente não compra nada e até pode ser contraproducente para quem o dá com essa intenção. Para quem sente a obrigação de retribuir é mais um encargo desnecessário e quem de todo não tem essa intenção, e não se sente em débito por isso, ainda vai ter o trabalho de descobrir se quem o presenteou o fez com boa, má ou mesquinha intenção. E se todos nós dizemos que é na intenção que está o valor de todo o acto é sempre ela que é mesmo o mais difícil de descortinar num universo de aparências. Os práticos, os que se marimbam para as intenções, dirão que um bom presente vale por si.
Sabemos que no dia a dia o comércio sentimental se vai realizando sem grandes rasgos ou enlaces num reajustamento contínuo e entediante. No geral um dia como este, que aproveitamos para aferir dos sentimentos alheios, não nos traz surpresas. Todos nos sentimos merecedores de uma qualquer atenção e sentimos uma certa dificuldade em lidar com a sua ausência. Se tivermos igual preocupação com os outros isso também nos trará problemas acrescidos. Cada uma das pessoas do nosso relacionamento habitual constitui-se em problema.
O trabalho fastidioso, o esquema social rígido em que nos movemos, a preocupação concreta connosco deixam-nos pouco tempo para pensar a fundo em nós mesmos. A preocupação com todos os outros, se existe, também é mais abstracta que concreta. A nossa vivência é ela própria anestesiante e impede-nos de dar um murro na mesa, de reordenarmos a mente, de repensarmos os sentimentos, de reorganizarmos os afectos.
Temos épocas para nos chatearmos, outras para levar as coisas mais a sério, temos épocas para relaxar, distender o espírito, suavizar as asperezas do confronto. Então chegamos a esta época predispostos enfim a reinventar as aparências que derivam sempre da posição em que nos colocamos e daquela em que os outros nos colocam num jogo de conveniências em que todos os conflitos se evitam. Neste aparente sossego resta-nos querer viver esta época no apaziguamento das contradições, no amolecimento das rivalidades.
Enfim tudo se há-de desculpar, na humana condição de nos sujeitarmos a erros e fracassos. Se não recebemos o que mereceríamos também não se poderá dizer que sejamos justos a avaliar o mérito nosso e alheio. Será sempre redutor alargar ou reduzir o mundo dos outros ao nosso e aplicar nesse mundo valores que só têm tradução no nosso. Não vamos condenar os outros com base em valores de que eles possam não partilhar. Mas é igualmente redutor querer aplicar no nosso mundo valores cá impraticáveis. Que não nos queiram sujeitar a eles.
Algum esforço terá no entanto que ser feito na ponderação a ter em relação a valores socialmente idênticos e eticamente próximos. Se conseguirmos um quadro de avaliação do nosso e do comportamento alheio, respeitando os valores alheios, podemos exigir algum respeito pelos nossos. Infelizmente a mútua desculpabilização que a época propicia é sol de pouca dura. O mais natural é que logo de seguida ocorram acontecimentos que nos fazem esquecer boas vontades e retomar o caminho da luta em termos de pouca humanidade.
O Natal é tido como uma época de tolerância, condescendência, apaziguamento. Fala-se em preservar e largar esse espírito, mas pouco se faz para que ao menos a época seja vivida com autenticidade, para que pensamos mais no bem dos outros do que no bem de nós próprios. No entanto é bom pensar que o nosso próprio bem é importante mesmo para os outros, desde que não seja ostentatório, desde que para eles não seja opressivo. Mas há um mal para o qual temos que estar precavidos, o mal da inveja que afecta muita dita boa gente.
Mas agora não há que pensar nisso, talvez em dar um presente a quem nos ofende, esses mesmos, e esperar que a luz do espírito ilumine os cérebros antes de estes porem a língua a falar ou a mão a escrever desabridamente. Porque essa gente pode ser muito inteligente, mas aplica a inteligência de modo errado. A inteligência é um talento natural de aplicação não condicionada. A seriedade é uma qualidade concreta que nos caracteriza pessoalmente.
A inteligência não é um certificado para coisa nenhuma. Ela tanto pode ser o instrumento para atingirmos a malvadez, como nos pode iludir e, com actos aparentemente bons, estarmos a contribuir para a difusão do mal. Até um presente pode ter um feito perverso. Há presentes envenenados. Como este clima de consumismo negligente, este sentimentalismo promíscuo que lhe está associado, que são presentes tóxicos que contaminam o saudável desenrolar da vida.

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