segunda-feira, 25 de agosto de 2008

As Feiras Novas nos terrenos da iniciação…

As Festas, as Feiras Novas, Festas porque outras não havia assim e ainda não há. Só estas tinham o sortilégio do imprevisto, da surpresa, da novidade que era mais um brinquedo, uns novos saltimbancos, novos “Robertos”, novas personagens reais, novos divertimentos para grandes e pequenos.
Mas havia também o antigo, aquilo que sempre conhecera, que sempre aqui viera, que às vezes eu julgava vir de tão longe e que afinal vinha de tão perto. Mesmo assim lembro-me, e já lá vão mais de quarenta anos, de virem homens e mulheres que davam um colorido um pouco diferente às Festas e que eram da Covilhã, Viseu, Lamego ou Águeda, que eu julgava bem longe.
O homem das bengalas vinha da região da Régua ou Lamego, já não sei bem, com um filho, uma filha ou com os dois, percorria todo o País com a sua mercadoria e uns cobertores para dormir, ficava nos alpendres do mercado municipal, se outro sítio mais cómodo não arranjasse ou se chovesse. Tantas vezes com ele falei quando o tempo não permitia que se fizesse algum negócio.
Alguns já tinham a sua barraca, a sua tenda que fechada com um pano à volta servia de dormitório e abrigo para a chuva. Lembro-me de andar a acordar pessoas nas Festas de 1972 quando o rio galgou as suas margens com uma rapidez inesperada e logo estava no passeio marginal. Dormiam nas barracas junto ao paredão e o rio já ali, prestes a avançar.
Mas foi nos inícios dos anos sessenta que eu mais vivi aquilo que as Festas traziam de diferente. Para quem passava pelas experiências da iniciação as Festas eram um abrir de possibilidades imensas. As Festas sempre proporcionam a desinibição que não existe noutros momentos e os contactos fortuitos que só surgem por essa ocasião. O novo afinal é “velho”.
Não vos vou falar de quando Salazar, por pressão das senhoras do Movimento Nacional Feminino, por estas prometerem apoio aos militares deslocados para as colónias portuguesas, resolveu fechar as casas de passe e tornar ilegal a prostituição que aí se praticava.
Como tal se passou nos finais de 1962, no ano seguinte todo esse pessoal feminino, que nas referidas casas se abrigava, passou a deambular por caminhos e calçadas à procura de satisfazer o “vício” de alguém e tratar do seu próprio sustento, já que outro “emprego” já era difícil de arranjar.
Nesse ano nas Feiras Novas houve uma invasão inusitada a fazer concorrência àquelas que já para cá vinham nessa ocasião e se abrigavam nos cafezinhos que se espalhavam um pouco por todo o lado. Libertas da clausura, numa dada perspectiva, mas decerto também abandonadas à sua sorte noutra, essas mulheres desafortunadas procuravam que em tão pouco usual ajuntamento lhes fosse proporcionado algum aconchego para … o estômago.
Mas valha a verdade que não era desta iniciação que eu queria falar, mas de outra, que, por ocasião das Festas, se permitia. Era a iniciação ao jogo, a vários jogos, mas ao caso ao jogo da roleta, velha banca circular com um fuso a meio onde rodava o maquinismo que nos trazia ou não a sorte procurada.
Uma barra de ferro, artisticamente pendente sobre a mesa, tinha na sua extremidade uma pequena palheta de cartão semi-rígido que, ao rodar, ia batendo nas várias dezenas de suportes que na mesa estavam aparafusados em círculo. Nos seus intervalos estava colocado um maço de tabaco que sairia a quem apostasse na cor que o abrangia.
A mesa tinha cinco cores principais e seis de mais pequena dimensão intercaladas naquelas. Dentro da mesma cor o prémio variava e podia ir de um “Provisório” a um “Porto” ou “Paris”. Os maços de tabaco mais longo, um Gigante, estavam nas cores mais pequenas que, por terem menos probabilidades, recebiam assim um prémio superior.
Posta em marcha a roda, os circundantes, sempre muitos e ansiosos, eram convidados a fazer a sua aposta. Uns tinham a fezada numa cor e apressavam-se a jogar nela. Mas havia quem jogasse em mais de uma cor à espera que não fosse a sorte fugir-lhe. Eram aqueles que apostavam acima de tudo em não perder e não queriam arriscar tudo.
A roleta ia perdendo a sua embalagem até que o “Banqueiro” dava a ordem para não se fazerem mais apostas. Mas havia sempre quem tentasse ser o último a apostar para poder calcular com mais alguma probabilidade o sítio onde a roleta iria parar. Como porém, mesmo assim, era difícil obter êxito, havia também quem sempre imaginasse que por qualquer arte do diabo a roleta haveria de parar na cor aonde menos dinheiro houvesse em jogo. E apostava aí.
O problema era quando a palheta ficava nas cores de menores dimensões. Raramente alguém aí apostava e então era tudo para a casa, uma tristeza para os apostadores, o desalento geral, mas uma alegria, embora contida, para o banqueiro. Há que apostar, dizia o habilidoso crupiê que, com seus ágeis pés e mãos, dizia-se, mas ninguém via, que dava o toque necessário para a roleta vir a parar onde a rodada lhe ficasse menos pesada.
Claro que nem sempre podia ser assim, pois havia que incentivar os fregueses, dando-lhes alguns prémios. O homem da roleta até se lamentava: Que azar! Em lugar do “Benfica” podia sair o Mata-Ratos que estava ao lado. Porém, como cada aposta era de 1 escudo e os maços melhores custavam entre 3 e 4 escudos, mesmo seguindo a lei das probabilidades, o banqueiro ganhava sempre.
Quem ali conhecia a lei ou se preocupava com isso? Nesta luta desigual todos nós não atribuíamos a culpa aos exploradores da banca, que afinal eram quem nos proporcionava tão entusiasmante passatempo, mas à tão malfadada e madrasta sorte. E até o crupiê às vezes falhava e lá levava uma banhada das grandes, desfalcando a sua reserva de maços de tabaco.
Em gente tão compenetrada na sua tarefa de não se deixar derrotar sem luta, esses momentos em que o lado poderoso do jogo se via espalhado no chão eram aproveitados para descomprimir e dar mesmo azo a uma alegria esfusiante, se fora caso disso. Era bom ver o banqueiro ter que se socorrer da sua reserva de tabaco guardado debaixo da banca.
Sinal de imaturidade, calculismo primário, tentativa de ludibriar os outros, ainda estará por saber o que leva tantas pessoas a apostar em inferioridade manifesta. O encanto do jogo reside em vivermos essa possibilidade de algum ganho, mesmo que pequeno, correndo apenas o risco de alguma perca que não ponha em causa a nossa estabilidade financeira.
O jogo, se não se torna vício, é, e sempre será, um exercício que encantará a juventude, lhe permite estabelecer balizes, correr riscos controlados, ter o treino necessário para que nas situações reais da vida seja capaz também de fazer opções cujo desfecho não está garantido. O jogo não é para vencer a qualquer custo e é conveniente que todos ganhem mas não é necessário que assim seja.
O jogo fortalece o carácter. Ajuda-nos a saber até onde podemos ser levados pela sorte e quando é necessário que estudemos, nos esforcemos para sermos recompensados. Na nossa juventude só estava mal esse prémio prejudicial que era o tabaco. Era uma associação entendida por nefasta. Mas a verdade é que, seja onde for que o mal esteja, jogo ou tabaco, só vicia aqueles que o permite.

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