sexta-feira, 4 de julho de 2008

Será que isto sempre foi assim?

Uma forma muito utilizada para justificar a ocorrência de fenómenos que achamos desajustados, muito pouco apropriados ao momento presente, é dizer que isto sempre foi assim. Para justificar o nosso fecho de olhos remetemo-nos para o passado que para o ver não precisamos de os abrir.
Existe um caldo de cultura que pinta tudo de negro. Deliberadamente os seus patrocinadores transmitem a ideia de que os actos de hoje ocorrem em circunstâncias com particularidades específicas e não são actos que em si mesmos já comportam as referidas e específicas particularidades. Assim sendo nada diferem de outros actos praticados noutras épocas.
A realidade é porém diversa. Há actos que só hoje se praticam, que não haveria hipóteses de os ver realizados no passado. Os actos de hoje têm especificidades próprias muito para além de se inserirem em realidades muito mais complexas e normalmente muito mais abrangentes que no passado. Até quando se diz que esses actos são praticados pelo mesmo tipo de pessoas não se está a ser verdadeiro. Hoje são pessoas muito mais preparadas.
Quando se diz que sempre houve corrupção, favorecimento, chantagem, assédio não estamos a ser verdadeiros porque estamos a falar de fenómenos que hoje têm uma natureza claramente distinta da que tiveram factos “idênticos” ocorridos no passado. O número de pessoas envolvidas não têm comparação possível e por exemplo o assédio é hoje bidireccional.
Alguém que queira falar com algum rigor intelectual, que se não deixe influenciar pela cultura do desleixo mais em voga, não se deve deixar levar pela simplicidade, não se deve socorrer do passado para lançar uma nuvem sobre o presente, assim como se não deve aproveitar do presente para lançar um labéu despropositado sobre o passado. Mas quando se diz que isto foi sempre assim estamos a fugir à discussão, preferencialmente a desculpabilizarmo-nos.
Se tantos já disseram tantas vezes que isto sempre foi assim, será que todos eles não terão razão e que nos andamos há tanto tempo a enganar uns aos outros? Na verdade o problema do engano só se coloca quando ele é deliberado porque ele é sempre benéfico para alguém, justa ou injustamente. Mas a maioria de nós ao aceitar isso, só está a perder tempo no caminho para a verdade.
A sustentabilidade das nossas opiniões não pode estar na manutenção de ideias feitas aplicadas sem critério a factos que só confirmam as mudanças que vão ocorrendo na realidade. Se as coisas mudam não será por sorte mas porque há pessoas sérias que fazem avanços a favor de todos. Inevitavelmente há quem aproveite para incrementar a actividade delituosa em proveito próprio.
A projecção mediática vira-se muito mais para esta gente muito diversificada e que privilegia o exibicionismo e a festa. Mas o mundo avança porque há gente estudiosa, empenhada, maugrado a sua voz fraca e o barulho de fundo. A sua atitude é normalmente de indiferença perante o turbilhão mediático que tudo submerge e relativiza num mar de mediocridade e mesquinhez.
O mundo mediático não é propriamente culpado numa questão em que entre a culpa e a razão há um tão vasto campo a preencher pela mediania, por aqueles que não são propriamente obrigados a preocupar-se com essas coisas. A nossa vista é que está direccionada para os aspectos mais aberrantes e é natural que alguns profissionais o façam intencionalmente.
Havendo quem viva, há momentos em que todos temos a sensação de vivermos atolados no lodaçal, de que nos congratulamos em chapinhar numa mistura imunda de ideias feitas, descargas de fel, ressentimentos nunca solucionados, ódios de estimação. Com este normal exagero literário, realcemos a necessidade e a possibilidade de ver por cima da cabeça dos outros.
A teoria do lodaçal já foi utilizada por dois primeiros-ministros para justificarem o seu abandono; Cavaco e Guterres. Mas nenhum deles se preocupou de modo significativo para aprofundar essa teoria. Demarcaram-se dos maiores mixordeiros, procuraram caminhos mais limpos, mas em nada contribuíram para sabermos as razões mais profundas deste apelo do abismo.
Aqueles que querem manter este caldo de cultura em que assenta o “sempre foi assim”, que se sentem bem em enredar os outros nas teias em que eles se movimentam tão bem, têm hoje uma projecção mediática de privilégio, até porque ao mais significativos conseguem passar a ideia de que com a sua actividade, com a sua maneira de agir a sociedade no seu global também fica a ganhar.
O autarca corrupto, o funcionário que faz uns favores, o empresário que corrompe para dar trabalho aos seus empregados, a utilização do assédio para obter proventos que se não enquadram no domínio sexual ou para obter estes à custa daqueles, são louvados e enaltecidos actuem ou não em prejuízo do Estado. E no geral os lesados até são pessoas indefesas, concorrentes sem os mesmos meios para se defenderem, os que acreditam na imparcialidade.
“Isto sempre foi assim” tem que acabar.

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