sexta-feira, 25 de julho de 2008

A prepotência do Estado ou o princípio da exemplaridade

Um dos aspectos em que o Estado assume uma prepotência indevida, se é que se justifica algum tipo de uso desproporcionado dos seus poderosos meios perante a impotência do cidadão, é quando quer aplicar a exemplaridade através do sistema de justiça. Se nós tivéssemos mais cuidado em vigiar o uso do poder nunca permitiríamos que o Estado procedesse assim.
Normalmente até é o Estado que é desmazelado e entretanto, perante o acumular de problemas, impõe medidas exemplares daquelas de cortar o mal pela raiz. Na realidade, como se tem visto, nem sempre o resultado corresponde ao alarido da apresentação das ditas penalidades exemplares para quem, deliberadamente ou não, não respeita as normas.
Normas, ou mesmo aquelas questões cuja resolução tínhamos deixado ao cuidado do simples bom senso, facilmente deixam de ser respeitadas quando lhes não damos uso e normalmente somos nós mais prestes a aproveitar a ocasião em nosso proveito do que o Estado a precaver-se para que haja alguma justiça. Mas quando o Estado enfim se intromete, nem sempre o faz da melhor maneira.
Na impossibilidade de recomeçar tudo de novo e de elaborar um corpo de normas que englobe todos os aspectos de um fenómeno, não raro surgem normas que, mesmo pretendendo fazê-lo, dizem respeito a aspectos tão laterais às motivações, ao objecto e à concretização do facto que se quer evitar que, sendo a sua porção de contributo para ele diminuta, não se poderia esperar uma melhoria significativa da situação final só pela observância de tais normas parcelares.
Quando se quer prevenir a ocorrência de situações gravosas penalizando alguma etapa de um dos vários percursos possíveis que leva a elas, está-se a utilizar a gravidade do desenlace final para dar o mesmo cariz a essa simples fase. Este procedimento só é tolerado por quem já assumiu um sentimento de culpa, se predispõe a colaborar na resolução daquele problema mais geral e não atribui por este efeito qualquer carácter prepotente ao Estado.
A aceitação de um sentimento de culpa só seria eficaz numa sociedade cada vez mais complexa se fosse assumida pela grande maioria e todos tivéssemos consciência daquilo que pretendíamos atingir. O papel das religiões tem sido o de fixar um momento assim no decorrer histórico, mas se falharam tão rotundamente nesse propósito, não mais haverá momento apropriado para isso. Por mais razão quando o Estado quer normalizar um comportamento não é por aí que deve ir.
Pelo contrário, quando nós cometemos uma falha, principalmente quando ela é fortuita no nosso percurso de vida, ocasional para a produção de quaisquer outros efeitos, não aceitamos servir de exemplo, pagar por tudo o que ficou por penalizar, pelos erros cometidos pelos outros, mas somente na razão directa de um eventual prejuízo que possamos ter infringido a alguém.
A justiça, na sua caracterização mais abstracta, num estado de pureza original, dar-nos-ia razão. A justiça deve ser equitativa na sua distribuição por aqueles a quem se aplica. Quem encarregado estivesse de a aplicar procederia desse modo, não pagariam uns pecadores e até inocentes pelos que a ela se subtraem, o Estado não iria mesmo para além de uma intermediação de interesses dos seus universais protegidos, sem prejudicar ninguém.
A não poder ser assim, a termos perdido a pureza original, temos de condescender de certo modo com o uso excessivo da força por parte do Estado, com a prepotência dos seus agentes, com o seu carácter absorvente de querer interferir em todos os aspectos humanos que o são também de relacionamento, com esta criação de um medo difuso capaz de controlar todos os nossos abusos.
Mas se temos de estabelecer barreiras para nós, temos que fixar também limites para o Estado e aí reside a principal razão da falha da minha geração. Precisávamos do Estado, dizíamos que era para nos desfazermos dele quando não mais nos fizesse falta, mas engordamos desmesuradamente o monstro, fizemos dele um organismo que tudo absorve, tornamos a sociedade mais dependente, mais vulnerável, mais subsidiária
Aparentemente muitos aí estão a querer destrui-lo. Felizmente a maioria está a aceitar agora a sua indispensabilidade. Mas foi por não a termos aceite há muito que também não pensamos sequer na necessidade de não lhe permitir excessos. Não lhe impusemos a ponderação e a tolerância necessárias à justiça. Se em nós existe alguma hipersensibilidade ao excesso é em sectores específicos do agrado de meios mediáticos, com fortes posições de poder.
No geral deixamos que o Estado estendesse os seus domínios a aspectos particulares da vida que há décadas atrás defendíamos arreigadamente. Com as mais elaboradas desculpas baseadas na influência que a esfera do privado vai tendo na vida social, o Estado intromete-se em assuntos perfeitamente dispensáveis de devassa pública, à custa de um controverso interesse colectivo.
A avaliação da relação entre privado e público é muito subjectiva e dependente das posições políticas. E dentro dessa avaliação o estabelecimento de uma relação causa/efeito entre fenómenos de natureza privada a outros de natureza pública e colectiva, é-o ainda mais. Teríamos mais a ganhar se atribuíssemos muito do que acontece ao domínio do contingente, do aleatório.
No geral nós sabemos onde devemos parar, os outros sabem também quais os seus limites, entendemo-nos satisfatoriamente. Quem subverte muitas vezes a natureza das nossas relações é um terceiro qualquer, o mais volumoso e incómodo dos quais é sem dúvida o Estado. O devermos-lhe muito não pode significar a nossa cega submissão. Até porque são homens “fracos” que o dirigem.

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