sexta-feira, 11 de julho de 2008

As fronteiras serão a prisão que nos defende?

Na complexidade do mundo de hoje depara-se-nos um confronto permanente entre a vontade individual e as várias formas de vontade colectiva em que deliberadamente ou não estamos integrados. Nem sempre nos sentimos bem representados nessas várias vontades. Isto começa por ser um fenómeno relativamente recente na medida em que até há pouco conhecíamos uma única fronteira, poucas vontades no seu interior e agora existem diversas.
Outrora cada ser humano relacionava-se com poucos grupos fossem clã, tribo, reino, mas pressuponha-se que, à medida que alargávamos os nossos horizontes, cada um englobasse sem oposição todos os outros de nível inferior. Para além duma única fronteira, haveria um outro mundo, estranho, oposto, negro, que quanto mais o fosse mais consistência dava aos grupos em que cada um se integrava e à sua vontade colectiva.
A vontade de um grupo era atingível pelos seus vários membros, havia métodos de sanar a divergência, nem sempre pacíficos mas eficazes. Poder-se-á dizer que aí se vivia uma determinada barbárie, fruto da violência e do arbítrio e que hoje se procura conter dentro dos limites de uma confrontação mais verbal e política, com a utilização de regras e limitações.
Na verdade assim não se consegue a solução, mas tão só a contenção e a manutenção de um conflitualidade permanente. Um dos problemas do mundo de hoje é pensarmos que ultrapassamos um estado primitivo a nível de emoções básicas. Na realidade continuamos a viver num mundo fora do império do intelecto.
Por participarmos de várias naturezas, nós próprios começamos por nos colocar em dúvida sobre a maneira como o mundo nos enquadra, sobre uma clara definição de tantas vontades colectivas em que, pelo menos virtualmente, participamos, sobre a nossa maior ou menor concordância com aquilo que pensamos elas serem, sobre a nossa capacidade de as influenciarmos.
Questionamo-nos para que existem tantas vontades, nós que estamos habituados e quase diria preparados para uma só voz de comando. Questionamo-nos se a democracia necessitará para existir de tantos níveis de decisão e eles são cada vez mais. Questionamo-nos porque a todos esses níveis haverá necessidade de aplicar tantas vontades que passam a vida a digladiar-se entre si.
Além de que nos deixamos confundir sobre que vontades colectivas ter em consideração, se a dum grupo que, pelo menos aparentemente, decide de forma legítima sobre uma questão, se as dos grupos que contribuíram para a formação do grupo mais vasto mas no estrito âmbito dos quais a questão não tem sentido. No extremo fugimos à confusão defendendo que individualmente nós deveremos ter sempre uma palavra a dizer. Complicamos ainda mais a democracia.
Todos temos uma certa predilecção por uma determinada vontade colectiva real. É uma característica da nossa matriz cultural atribuirmos uma maior ou menor genuinidade ao grupo mais central nessa matriz. Pode ser a nossa aldeia, a nossa cidade, o nosso País, a Europa ou o Mundo, mas também pode ser uma vontade mais virtual sustentada num universo mais transversal, mas mais do nosso agrado.
É comum encontrarmos alguém cujo universo continua a rodar à volta de uma aldeia abandonada, de uma universidade, de uma tertúlia, realidades que pela sua natureza lhe dão um acentuado carácter virtual. Há no entanto uma referência a que a vivência da maioria de nós atribui um carácter primordial, seja por via da adesão ou da rejeição, que é o País. Esta preferência tem inconvenientes mas também uma vantagem nítida.
A sua importância constata-se pela existência de uma cultura europeia comum a uns cinquenta países e em que é necessário um motivo forte para vencer a sua relutância em aceitar um poder supranacional. Esse motivo existiu após a Segunda Guerra Mundial e levou seis países a constituírem o embrião da actual Comunidade Europeia. Porém a relutância congénita revigora-se a cada momento.
De nada serve os políticos serem já possuidores de uma cultura que suplanta o nacionalismo estrito. A maioria de nós também já vê para além das fronteiras do seu País, mas o nosso intelecto não tece a mediana mental que relativize as fronteiras existentes. Um dos problemas do mundo de hoje é mesmo pensarmos que as fronteiras mentais ultrapassaram as fronteiras físicas.
Por mais virtuais que as consideremos, as fronteiras acentuam um modo diferente de governar, de pensar, de viver, de cada um se confrontar com os diferentes aspectos da vida. A fronteira subiu do rio, da montanha, da linha meridiana para o nosso entendimento e continua a ser ainda uma fortaleza dentro da qual nos vamos sabendo mover, defender contra a aventura que é sempre o que está para além da fronteira.
Outrora procurava-se acentuar o negro para além da fronteira, o seu conhecimento, muitas vezes pouco, era reforçado nos seus aspectos negativos, para levar a uma maior coesão interior. Hoje esses métodos já não funcionam, tudo é mais claro, mas nem sempre transparente. Um dos problemas do mundo de hoje é mesmo de mentalmente precisarmos ainda de fronteiras e de não as alargarmos facilmente. Falta-nos a determinação da vontade colectiva correspondente a cada novo alargamento da Comunidade.
Esta foi instituída para que os povos europeus se defendessem uns dos outros, diluindo sucessivamente as fronteiras entre si e criando aquela vontade comum. O clima de confiança passaria essencialmente pelo estabelecimento de relações económicas estáveis e pela possibilidade de acesso sem restrições a todos os bens. Mas o pensamento europeu continua a saber que pode ter no outro um inimigo, que as alianças são transitórias e que os ressentimentos renascem.
A Comunidade Europeia não descrimina mas parte do princípio lógico de que um novo membro terá que constituir um perigo menor quando estiver nela integrado do que o constitui se se mantiver fora dela. Mas não é essa transferência que criará uma mudança súbita, nem garantido é sequer que a integração tenha sempre um sentido positivo na melhoria da confiança mútua. O que parece certo é que houve alargamentos que abalaram a vontade anteriormente solidificada.

Sem comentários: