sexta-feira, 13 de junho de 2008

Senhorialismo, o nosso feudalismo mitigado

Não tivemos o feudalismo que caracterizou a organização social da maior parte da Europa durante séculos. Tivemos um sistema menos estruturado, menos limitador, menos agressivo, o senhorialismo que tanto marcou a nossa maneira de ser e estar e que, como tal, só lentamente se tem desvanecido.
Aquilo que na realeza era o resultado de uma hierarquia funcional, que tinha a ver com a mobilização para a guerra e com a sustentação do clero e da nobreza, na república perde esse carácter e torna-se de certa forma anormal, desfasado da natureza da sociedade que se quer construir, sem consistência material (económica) e ideológica.
Mas até o republicanismo se aproveitou deste sistema oscilante entre a obrigação e o obséquio e, contrariando o seu carácter de horizontalidade, manteve-o tão encrostado no nosso tecido social, veja-se o sistema caciqueiro herdado do liberalismo monárquico. O republicanismo nunca se deu bem com a ausência das escalas sociais rígidas da realeza.
Numa sociedade rural ser dono de determinados domínios manteve-se como um previlégio suficiente para exercer uma influência determinante no arregimentar dos homens num certo sentido de actuação, que nunca foi além do trauliteirismo e da chapelada. Poder-se-ia dizer que as ideias eram mais avançadas que a estrutura social. Mas esta era utilizada tal qual existia.
O regime de Salazar congregou aspectos que, independentemente da proveniência, puderam servir para reforçar o novo escalonamento social e restaurar o autoritarismo e o culto do poder. Na sua miscelânea ideológica, não se comprometeu abertamente com a monarquia, aproveitou somente alguns dos seus aspectos, mas foi buscar outros à própria república, à tradição romana, cristalizou a tradição cristã e refundou o corporativismo.
Sem saberem bem aquilo que os poderosos queriam, a não ser que queriam continuar a sê-lo, as nossas populações, dado o seu modo de vida essencialmente agrícola, não estando sujeitas a condições de servilismo, como eram muito dependentes, tornaram-se subservientes. Salazar nunca exigiu muito empenho, o culto do desenvolvimento não o entusiasmava.
A subserviência instituiu-se porque sobreviveu a quatro regimes diferentes, se é que não vinha da monarquia absoluta. Nesta existia um sistema senhorial que só diferia deste porque havia vínculos formais. Pelo contrário a subserviência recebe-se e presta-se, haja ou não obrigação formal. No republicanismo os cargos administrativos foram engrossados com a transferência desse “direito” de que os seus empossados usam e abusam.
A mobilidade social que se acelerou com o 25 de Abril não alterou esta forma estereotipada de relacionamento. Devido ao alargamento de certas camadas sociais intermédias, aos pais que prestavam “vassalagem” sucederam os filhos que a recebem ou pensam receber. Filhos de pedreiros tornaram-se “doutores” e se não exigiam uma atitude subserviente dos pais já a exigiam, com o patrocínio dos próprios pais, aos seus semelhantes.
Em vez de um conflito de gerações por valores e direito, houve uma ascensão dos mais novos e uma queda dos mais velhos por efeito da escolaridade e de novas oportunidades de “subir na vida”. Nem a proletarização dos mais novos, que afinal se terão apercebido que não subiram tanto assim, resolveu este problema.
A doutorice é tão só o culminar deste problema. Estabeleceu um patamar de certa forma inatingível pela maioria. Aí a subserviência tornou-se imperiosa. Mas também se transferiu subserviência a uma escala mais baixa, seja pela posse de outras habilitações mais baixas, seja pela aquisição de património. Na nossa sociedade até o sindicalismo sofre de doutorice.
A subserviência recebe-se com agrado, estimula-se, corteja-se e presta-se com atenção, com calculismo, acrescenta-se-lhe reverência se necessário. Não se podem cometer erros de cálculo. É melhor a mais do que a menos. Se o indivíduo não era merecedor, na próxima rectifica-se, olha-se para o lado, renega-se.
A subserviência é um mal de pele, está na cútis. Não nos livramos dela facilmente. Corremos o risco de nos vermos em carne viva, sem pele, vulneráveis a outras viroses. Antes a subserviência que a submissão. No nosso inconsciente há sempre um mal maior. Disfarçamos o medo que isto nos provoca com a anuência a uma falsa inevitabilidade.
Também é inevitável haver uma certa diferenciação social, não por efeitos das nossas diferentes capacidades, que essas nada justificariam, mas pela diferenciação provocada pelo sistema produtivo que essa é insuperável. Não podemos fazer todos tudo embora se tenha que reconhecer que cada um de nós poderia fazer coisas diferentes, senão em simultâneo, pelo menos em tempos diferentes.
Nenhuma diferenciação justifica a subserviência, a reverência senhorial de quem tenha que cumprir ordens, muito menos de quem as não tem que cumprir. Temos que ir tirando esta nossa falsa pele, que outra crescerá decerto mais liberta, que nos deixe respirar.

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