sexta-feira, 20 de junho de 2008

A ingratidão irlandesa e as dúvidas de todos nós

A rejeição do Tratado de Lisboa, proposta Carta Constitucional da Comunidade Europeia, em referendo efectuado na Irlanda obriga-nos a pensar sobre as limitações que os políticos têm para vencer um dos aspectos mais negativos do comportamento humano: a ingratidão.
A melhoria das condições devida dos Irlandeses tem sido tanta que qualquer observador independente diria que o deve muito, para além da sua vontade e determinação, ao enquadramento da sua política pela política da Comunidade. No entanto algumas dúvidas, que sempre as há, vencem tanta certeza, de que não há dúvida. Só pode ser ingratidão.
É à acção prática dos órgãos comunitários, à boa gestão dos conflitos de interesses que sempre se criam entre os Estados, mas também à ideia de um futuro comum, solidário, partilhado, que se devem tantos anos de paz na Europa desde a Segunda Guerra Mundial.
Aquilo que os políticos compreendem e cada vez defendem com uma maior certeza e veemência correspondendo ao próprio aumento das dificuldades que vão surgindo, parece escapar à população em geral, mais avessa à organização, a compromissos de longos prazo, a cedência de soberania, à solidariedade.
A primeira conclusão a tirar seria então talvez que a população é estúpida, não consegue medir o alcance dos seus actos, não compreende a sua repercussão em zonas mais distantes da nossa vida colectiva. O que lhe interessará é o imediato, o que ocorre sob o seu olhar mais próximo, tudo o resto é para si nevoeiro.
Claro que isto de nada nos serve, toda a política séria, sem ter que se submeter aos impulsos momentâneos da população, tem que ter em atenção que “o povo tem sempre razão” e é necessário cada vez mais compreender os mecanismos mentais que determinam as tomadas de decisão pessoais, sem as considerar como puro resultado da influência das “massas”, da comunicação social, dos líderes exóticos, da moda.
Há uns anos surgiu uma espécie de medo de que a evolução do conhecimento e em especial no que se refere ao estudo da formação do próprio conhecimento pessoal, levariam a que os políticos adquirissem novas formas de manipular, condicionar, determinar a vontade dos indivíduos e dos vários colectivos em que eles se integram.
Também há nestas “negas” referendárias uma certa forma de responder àquele medo, ao se tomarem atitudes anti-agregadoras, as quais, para nossa sorte, ainda não atingem o efeito desagregador. Esta espécie de consideração de que até aqui tudo bem, mas mais para a frente pode ser aventura, é muito própria do homem, temeroso sempre de que a sua vontade venha um dia a ser submergido por um foco de poder todo-poderoso.
Aqui entronca toda uma série de questões que haveria de considerar para conseguir ultrapassar esta divergência entre a orientação que uns políticos, que servem para um efeito e para outro não, querem imprimir e o rumo que a população que, mesmo assim os elegeu, quer que seja tomado.
Para a população parece evidente que o Estado pode ter várias configurações e diferentes objectivos prioritários, mas, por força da natureza das próprias associações políticas dominantes na Europa, cada vez é mais visto como o órgão que terá de garantir “as mais amplas liberdades”, sem sofismas doutrinários.
A população vê os órgãos comunitários como os tentáculos de um futuro Estado omnipresente, opressor, uniformizador, que aglutinarão à força todos os que queiram manter alguma liberdade. Não podemos ver estas questões pontualmente, mas é evidente que às vezes a população parece ter razão.
Os políticos nacionais também já aprenderam a lançar para cima da Comunidade a responsabilidade pelas questões mais controversas, pelas decisões mais agressivas em relação à população. São eles próprios que contribuem para criar essa ideia de que eles querem ser “bonzinhos”, mas são os outros, os que estão lá fora, que vêm as coisas de mais longe e são mais empedernidos.
O Estado Comunitário já em construção há muito tempo, sem que nós tenhamos tido disso a consciência, mas que continua a funcionar, mesmo que as regras escritas já não sejam suficientes para tal, tem que ser mais “amistoso” para a população, tratar em primeiro lugar dessa relação, tornando-a eficaz, o que quer dizer umbilical.
Sem deixar de considerar que o Universo é o nosso reino, devemos ver na Europa a unidade mais ampla viável no momento presente. Pertencer à Europa é um princípio que nos deve orientar porque aqui estão os valores mais comuns e avançados da civilização. Mas tal não pode implicar um cheque em branco para instituições que cada vez mais fogem ao nosso controlo.
Para que não hajam estes avanços e recuos, esta angústia que resulta de se correr o risco de pôr em causa o essencial a pretexto de assuntos sem relevância, a Comunidade terá que se justificar a ela própria, já que não é possível agora o que pessoalmente me não repugnaria que era a instalação de um poder supranacional na Comunidade.
Mas se todas as decisões importantes tiverem que se submeter à regra da unanimidade parece não ser problema de maior, senão que só está em causa a operacionalidade. Sempre teremos que confiar na boa fé das pessoas que negoceiam os assuntos que nos interessam. A Comunidade não morrerá.

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