Entre dois copos, pelo meio da descrição que o amigo de ocasião lhe fazia dalgumas desventuras lá na aldeia, Guerrinha já começava a magicar nos versos que haveria que verter para o seu testamento, dito do Judas, lá para mais perto da Páscoa. O número de quadras talvez dependesse dos copos que viesse a beber.
Para o Judas arder bem, era necessário que as quadras deitassem as suas chispas bem dirigidas, que todos se haveriam de rir. Embora ele próprio, o Judas, não estivesse ainda bem arquitectado, que poderia surgir uma figura mais bonita, mais característica, mais popular. Só lá para o Carnaval lhe seriam definidas as feições.
As histórias tragicómicas iam chegando de todo o lado, que aqui é tão só o concelho de Ponte de Lima. Havia aqueles que para sua alta recriação, para a sua vingançazinha, se dirigiam ao Guerrinha. Mas havia também os doutores lareiros, velha classe, hoje em decadência, e cuja falta os Presidentes de Junta nunca conseguiram suprir.
Estas pessoas sabiam efectivamente de tudo e se não sabiam perguntavam e tinham amigos que, como humildes, essa era a sua grande arma. Levavam e traziam. Na Vila ficavam ao corrente do que mais invulgar se passava. Na aldeia informavam-se do mais rocambolesco que ocorria por lá.
Sem exagerada maldade, mas com malícia quanto bastasse, quanto homem mal casado e mulher folgazã, quanto amigo do alheio ou vigarista encartado, viam o seu nome mais depressa na lama lá longe do que perto da porta de casa. Quando aí chegasse já estava o caldo entornado.
Nem todas lá chegavam, mas qualquer história de malandrice ou malandragem estava sujeita a vir a cair no testamento. Tudo era sugerido que não se podia referir explicitamente ninguém. As referências eram porém normalmente suficientes para que se chegasse a uma identificação das vítimas, que o crime, esse era claro, da carne ou da carteira.
Fossem padres ou sacristães, criados ou morgados, ricas donzelas ou viúvas rapioqueiras, todos que se metessem em altas cavalarias estavam sujeitos a cair na voz popular. Mas não era o Judas que ia afectar a normalidade da vida, que uns continuariam a dizer que sim e outros que não.
Hoje fala-se, fala-se, fala-se, mas ninguém vê nada e todos se recusam a pôr em letra de forma aquilo que sabem. Além de que há assuntos que, por tão triviais, já não despertam a curiosidade pública. Mas continua a haver outros que assumem hoje uma enorme dimensão e que não são referidos.
O testamento na Vila de Ponte de Lima foi recuperado pela delegação de turismo e vem sendo agora feito pelo grupo de teatro Unhas do Diabo. Mas diga-se em abono da verdade, que este Diabo tem fracas unhas, é demasiado subserviente em relação ao poder, não fosse por ele pago.
Perante os poderosos de perto os lareiros de hoje vergam demasiado a cerviz. Há que bater nos que estão longe, lá para a capital, que esses não metem medo a ninguém, e provocam algum riso mesmo que forçado. Antigamente a piada estava em vir em letra de forma aquilo que só se falava e já tinha alguma graça nos lugares em que nem todos iam.
Aproveitar o Judas para pretender fazer política é mesquinho, para não dizer ordinário. A tradição consegue-se manter respeitando os pressupostos que presidiam à queima do Judas antes do 25 de Abril. Porque falar de política hoje é para todos os dias e todas as horas, quando houver assunto para isso.Fazer crítica social, de costumes, de comportamentos é mais salutar, menos banal mas menos pretensioso do que fazer crítica política de natureza primária. Acho que ninguém me criticou mas, se a alguém aprouver fazê-lo, critiquem-me por ser gordo, orelhudo ou vesgo, mas não por ser político. Mas se descobrirem que sou ladrão, insidioso ou outra coisa qualquer, façam favor também.
Para o Judas arder bem, era necessário que as quadras deitassem as suas chispas bem dirigidas, que todos se haveriam de rir. Embora ele próprio, o Judas, não estivesse ainda bem arquitectado, que poderia surgir uma figura mais bonita, mais característica, mais popular. Só lá para o Carnaval lhe seriam definidas as feições.
As histórias tragicómicas iam chegando de todo o lado, que aqui é tão só o concelho de Ponte de Lima. Havia aqueles que para sua alta recriação, para a sua vingançazinha, se dirigiam ao Guerrinha. Mas havia também os doutores lareiros, velha classe, hoje em decadência, e cuja falta os Presidentes de Junta nunca conseguiram suprir.
Estas pessoas sabiam efectivamente de tudo e se não sabiam perguntavam e tinham amigos que, como humildes, essa era a sua grande arma. Levavam e traziam. Na Vila ficavam ao corrente do que mais invulgar se passava. Na aldeia informavam-se do mais rocambolesco que ocorria por lá.
Sem exagerada maldade, mas com malícia quanto bastasse, quanto homem mal casado e mulher folgazã, quanto amigo do alheio ou vigarista encartado, viam o seu nome mais depressa na lama lá longe do que perto da porta de casa. Quando aí chegasse já estava o caldo entornado.
Nem todas lá chegavam, mas qualquer história de malandrice ou malandragem estava sujeita a vir a cair no testamento. Tudo era sugerido que não se podia referir explicitamente ninguém. As referências eram porém normalmente suficientes para que se chegasse a uma identificação das vítimas, que o crime, esse era claro, da carne ou da carteira.
Fossem padres ou sacristães, criados ou morgados, ricas donzelas ou viúvas rapioqueiras, todos que se metessem em altas cavalarias estavam sujeitos a cair na voz popular. Mas não era o Judas que ia afectar a normalidade da vida, que uns continuariam a dizer que sim e outros que não.
Hoje fala-se, fala-se, fala-se, mas ninguém vê nada e todos se recusam a pôr em letra de forma aquilo que sabem. Além de que há assuntos que, por tão triviais, já não despertam a curiosidade pública. Mas continua a haver outros que assumem hoje uma enorme dimensão e que não são referidos.
O testamento na Vila de Ponte de Lima foi recuperado pela delegação de turismo e vem sendo agora feito pelo grupo de teatro Unhas do Diabo. Mas diga-se em abono da verdade, que este Diabo tem fracas unhas, é demasiado subserviente em relação ao poder, não fosse por ele pago.
Perante os poderosos de perto os lareiros de hoje vergam demasiado a cerviz. Há que bater nos que estão longe, lá para a capital, que esses não metem medo a ninguém, e provocam algum riso mesmo que forçado. Antigamente a piada estava em vir em letra de forma aquilo que só se falava e já tinha alguma graça nos lugares em que nem todos iam.
Aproveitar o Judas para pretender fazer política é mesquinho, para não dizer ordinário. A tradição consegue-se manter respeitando os pressupostos que presidiam à queima do Judas antes do 25 de Abril. Porque falar de política hoje é para todos os dias e todas as horas, quando houver assunto para isso.Fazer crítica social, de costumes, de comportamentos é mais salutar, menos banal mas menos pretensioso do que fazer crítica política de natureza primária. Acho que ninguém me criticou mas, se a alguém aprouver fazê-lo, critiquem-me por ser gordo, orelhudo ou vesgo, mas não por ser político. Mas se descobrirem que sou ladrão, insidioso ou outra coisa qualquer, façam favor também.