terça-feira, 12 de dezembro de 2006

Arte serôdia para quem não precisa de saber ler

Longe de mim a pretensão de reescrever a história. De retocar quadros, retirar figurantes e colocar lá outros. Houve quem o fizesse e as técnicas à altura nem eram tão boas como hoje. E embora nós estejamos precavidos há sempre quem o continue a tentar, se não para ficar na história, para obter efeitos imediatos.
Quando olho para o nosso percurso histórico não vejo imagens fixas, horizontes iguais, figuras estáticas, gestos parados. Tenho uma visão histórica dinâmica embora admita reduzi-la a uma visão estática, datada, temporária essencialmente para poder comunicar.
Estou sempre disposto a admitir repensá-la, revê-la, reorganizá-la. A integrar na minha visão as visões instantâneas, fotográficas que outros e eu próprio nos vamos fornecendo. No pressuposto porém de que a História é muito mais que a história da Arte, por mais valor que esta tenha.
Admiro um quadro, uma imagem poética, uma fotografia, por si. Mas as obras artísticas também podem ser documentos históricos e como tal utilizados. Só que, se eu não souber o contexto que as informa, eu fico desinformado. Mas admito que o objectivo até seja esse. Quando a mim só lhes dou real valor se souber ir ao seu significado, que, às vezes, até extravasa a intenção do próprio criador.
Por isso se diz que é necessário ser culto para gostar de Arte. Se não a Arte é vista como um artificialismo, o que é um sinal evidente da maior ignorância. A Arte tem de ser vista com os sentidos, a inteligência a emoção e os sentimentos bem despertos. Se não, não se vê nada. E a Arte tem o privilégio de mostrar aquilo que nem o próprio criador tem intenção de revelar.
Por exemplo, quando se retrata uma figura típica num quadro, num roteiro, num poema ou numa simples foto, esse retrato é o espelho da sociedade que no retratado se revê, independentemente do retratista dar maior realce a um pormenor do seu aspecto. Por seu lado esse pormenor caracteriza mais o criador do que o criado, dá mais informação sobre o primeiro do que sobre o segundo.
Poderia aqui dar de barato que o exemplo é fraco e que o pitoresco teve o seu tempo também no domínio da Arte. Assim sendo, mais valeria considerá-lo como uma página virada na nossa História. Isso é feito pelos próprios artistas que a Arte está na sua História cheia de roturas, de saltos imprevistos.
Para mim, porém, todos os contributos e manifestações humanas, toda a barbárie e humanidade, toda a prepotência e humilhação, toda a sobranceria e generosidade, toda a ostentação e humildade, toda a lascívia e perversão, toda a festa e frustração, todas as intenções realizadas ou não, estando presentes na História do Homem, são as fontes da sua compreensão.
Na História nada se deita fora. Todo o auto de fé é um crime banido. A História tem de ter continuidade, ser perceptível e todos os documentos são importantes para isso. Se a Arte tem explosões é a História que lho permite, mas não se reduz a elas.
Na Arte procura-se uma nova identidade quando se dá a velha por perdida. Mas também se pode pretender reconstruir a identidade perdida. Isto pode dar origem a uma arte serôdia, fora do tempo que lhe foi próprio. Mas como a Arte se não vê só com inteligência, eu não pretendo fechar os olhos e dizer que se deva queimar. Historicamente sabe-se que a inteligência tem destas perversidades mas para que serve a evolução?
Utilizar na Arte modelos com um século de atraso, que já foram substituídos por outros, quando isso se insere na tal busca da identidade perdida é aceitável mas não pode ser imposto. E claro que diz muito do ambiente social e político que se viveu no negro miolo do século passado.
O facto de não rejeitar qualquer parcela do passado, por mais negro que pareça, não quer dizer que eu não o possa analisar friamente, tecer sobre ele as minhas considerações, e até abater sobre ele a minha virtual ira. Fraco passado que nos não deu a possibilidade de procurar uma identidade mais progressiva e uma Arte mais moderna.
Claro que tenho de recorrer de novo à inteligência para estabelecer a ligação entre a Arte, a História e a Política. A arte serôdia está sempre ligada a políticas retrógradas e obscurantistas. Quem afirmou que “Felizes aqueles que não sabem ler” andava cem anos atrasado na Arte, na Política e na Humanidade. Até nem sei para que escreveu, se não seria só para auto satisfação “condal”.