domingo, 5 de novembro de 2006

Com bom vinho se fazem bons amigos

Uma frase atribuída a Salazar afirmava que “ beber vinho é dar de comer a um milhão de portugueses”. Hoje, manifestamente, que assim não é, e ainda bem, porque para proporcionar rendimentos suficientes a um milhão teríamos que beber muito vinho, o que de certo nos faria algum mal.
Mas a vinha, mãe deste precioso néctar, continua a ocupar um lugar privilegiado na paisagem rural e em alguns sítios exclusivo até. Videiras cortadas, vinhas abandonadas, crise a sério só em Ponte de Lima pelos erros cometidos.
Proponho-me fazer um louvor ao vinho, caminhando por outra via, que não esta da economia, demasiado batida e desagradável nesta altura de recessão. Esqueçamos dívidas e dúvidas quanto ao futuro e quem tão mal fez ao vinho.
O vinho tão louvado tem sido, que é difícil ser inovador. Desde tempos imemoriais, logo que se descobriram as imensas qualidades do mosto gerado pelas uvas, que ele tem sido melhorado, seleccionado e não deixou de ser apreciado.
Gregos e Romanos concederam-lhe célebres patronos, com assento no reino dos Deuses. Se para a maioria dos povos sempre foi objecto de intensas libações, para o Cristianismo ascendeu ao plano simbólico de “sangue de Cristo”.
Só os muçulmanos lhe atribuem mais defeitos que virtudes. Mas uma coisa é certa: Há culpas que se atribuem ao vinho que não lhe pertencem, como se prova por eles próprios que, para fazerem tanta asneira, não precisam de beber.
Eu, por mim, confesso, de todas as bebidas, desde a água aos simples sumos miscíveis, às miscelâneas ditas naturais, chegando às bebidas fermentadas e destiladas, a que mais aprecio depois da água é o vinho.
Não se riam: Eu tenho pela água uma veneração que assume aspectos divinais, ela que sempre foi considerada elemento entre os essenciais que compõem o universo. Eu aceito o seu carácter sagrado e bebo-a com moderação.
E, embora infelizmente aconteça, hoje o vinho já dá mais garantias de pureza que a própria água. Tanto assim que já há vinhos ecológicos, sem esses horríveis fungicidas e pesticidas, que quando muito absorvem algum herbicida, que é preciso tirar as ervas e a sachola é pesada.
A água do solo pode não ser pura, que a videira funciona como um depurador natural, de tal modo que a água quando chega à uva já vai liberta de impurezas, pura como a das nascentes de antigamente.
A uva acrescenta então a essa água assim purificada os milagrosos aromas, ácidos, taninos, não me preocupei em fazer ciência, mas acho que há mais alguns e que até só se libertam na fermentação dos seus açúcares. O que interessa é o resultado.
A grande diferença do vinho para outras bebidas, essas bem mais responsáveis pelos malefícios que se lhe atribuem, é que ele é uma bebida fermentada, resultado de uma transformação natural, com baixo grau alcoólico.
Não sou delator, mas olhem que as grandes culpadas do alcoolismo e dos seus efeitos maléficos são as bebidas destiladas, que simples ou compostas, transportam o álcool em estado puro para o organismo humano.
O álcool resultante de fermentações é diferente do que resulta de destilações. O mal é quando se faz vinho a “martelo”, pois aí usa-se este álcool, tal como na confecção das aguardentes, licores, whisky, bebidas brancas em geral.
A defesa do carácter genuíno do vinho é importante para a preservação do seu papel na nossa cultura milenar, no relacionamento humano. Tanto é verdade que nós sabemos ser muito mais fácil entendermo-nos com o leve desprendimento que ele nos proporciona.
O papel das Adegas Cooperativas deveria passar estatutariamente por aí. E em relação ao vinho verde, um vinho difícil, com grandes mudanças de quantidade e qualidade de um ano para o outro, resultado de pequenas produções, com métodos de cultura diferenciados, esse papel era, há uns anos, imprescindível.
Hoje já vão aparecendo outras formas de associação, normalmente à volta de uma razoável produtor, que dá também saída à produção de uns tantos “vizinhos”. E as Adegas correm o risco de ficar com as produções residuais, sem o prestígio que lhes permita exercer aquela função de que algumas, aliás, largaram criminosamente a mão. Infelizmente, por isso nunca ninguém foi penalizado.
O vinho verde é um vinho para beber jovem, isto é, não dá para ser envelhecido em cascos, garrafas ou qualquer outro recipiente. Além do mais, o vinho verde tem características próprias que se lhe permitem manter os apreciadores, não favorecem novas angariações.
Tendo a sua produção crescido muito, em particular a de vinho branco só a qualidade permite ambicionar novas adesões à sua bebida. Com as campanhas feitas contra o álcool, este vinho que sozinho será o menos culpado por acidentes, doenças ou outras maleitas, foi dos que mais pagou, dos que mais saiu prejudicado.
Enfim, hoje a aposta virou no bom sentido, do vinho verde tinto, vinho único e, parece, inimitável em qualquer região do mundo. As suas qualidades voltam a ser apreciadas, selecciona-se melhor as castas, aperfeiçoa-se a sua confecção, depuram-se os elementos que lhe poderiam deteriorar o aspecto e sabor.
Então o vinho verde tinto voltou a ser o Rei. Pode ser bebido em maior quantidade do que o maduro ou o próprio verde branco, é benéfico para a saúde, para a flora intestinal. E é o que melhor convívio proporciona à volta de umas castanhas ou um outro petisco, para que não caia desamparado no estômago.
Não digo isto com qualquer interesse que o meu vinho é fraco, não é vendável e não sou comerciante. Mas é de toda a justiça louvar quem tanto trabalho tem para o produzir, produz do “bô” e dá de beber ao amigo que, quando aparece, vem sempre com uma sede daquelas de quem subiu o monte a pé.
Por isso dedico este artigo a um grande amigo que o faz do melhor, mas que não indico quem é, porque senão o seu vinho não chegaria para os “amigos de ocasião”. Estou a brincar, apareçam que bebem também. Com bom vinho se fazem bons amigos.