sexta-feira, 25 de agosto de 2006

O que é que eu que-ro ser qu-an-do for gran-de

As verdades podem não ser eternas. Em relação às perguntas ainda nos questionamos sobre se elas o poderão ser. Mas, na verdade, também estas o não são. As perguntas perdem e ganham sentido com o tempo histórico.
Quando perguntamos a uma criança o que ela quer ser quando for grande, parece-nos estar a colocar uma questão que sempre se pôde pôr, e isto está longe de ser verdade.
Há mais ou menos anos, conforme a civilização em que nos inserimos, esta pergunta não tinha qualquer razão de ser. E mesmo em algumas civilizações ainda hoje a não tem.
Nestes casos o destino das pessoas é mais certo e sabido e não se dá azo a que as crianças tenham a “veleidade” de querer ser coisa diferente daquela que lhes está, à partida, reservada. Por isso a questão não se ponha.
Podemos, felizmente, dizer que cá e agora já não é bem assim. Que não sendo tudo possível, já alguma coisa se pode mudar. E que o destino já não é tão inexorável como o foi noutros tempos.
Simplesmente esta situação tem dado origem a mais confusão, de certo mais na cabeça dos pais do que na das crianças. Mas nós também já sabemos que isto da liberdade traz riscos, lá isso traz, mas compensa largamente.
“Ser alguém”, preciso e determinado, associando isso ao exercício de uma profissão, é, como ambição, um erro grave, mas é o caso mais corrente. A nossa civilização ainda se não libertou desta forma clonada de querer ser.
Tanto mais que as profissões de referência mais usadas se cingem afinal às obtidas por via de uma licenciatura porque com ela é pressuposto obter os conhecimentos técnicos capazes para o exercício cabal dessas profissões.
Visivelmente não está garantido que, nas actuais condições de ensino, esteja assegurado o sucesso posterior no aspecto profissional e sobremodo no aspecto de realização pessoal e social.
Manifestamente há condições humanas, essencialmente psicológicas e morais, que de modo algum estão asseguradas. São condições que no presente não são tidas em conta para efeito de obtenção duma qualificação profissional.
Os diplomas estão carentes de muito conteúdo, pouco representam. As substâncias em falta dificilmente poderiam ser fornecidas como matéria curricular, é verdade. São mais obtidas por outras fontes, como o processo de socialização.
Vou ser de certo modo um pouco caricato:
Como pode um miúdo que, mercê de um tanto número de pressões familiares, mediáticas ou outras, nos diz que quer ser médico e berra perante qualquer tentativa de se lhe dar um purgante qualquer?
Que noção da vida obterá um miúdo que vai andar toda a sua vida a usar todos os artifícios para conseguir, sem grande custo, passar de ano para ano? Como pode ele ter a pretensão de um dia ser professor?
É exemplar pela facilidade, pela ausência de sacrifício.
“Ser alguém” passou há alguns anos a esta parte a ser a suprema ambição das crianças, que no fundo dos pais. E então, se se já é filho de “alguém”, não se pode ser um Zé-ninguém, não se pode ser um “alguém” menos alguém.
Atendamos que, contrariamente sucedeu durante muitas gerações, nos locais onde imperava a lei do morgadio, nas quais se deixava que os filhos segundos fossem menos alguém do que o alguém morgado.
Hoje o normal é que os próprios pais queiram assegurar a situação de igualdade dos filhos na herança e na preparação para a vida. Ora sabe-se que a grande vantagem da reprodução por via sexual é, precisamente, a formação de filhos diferentes, com a possibilidade de terem vidas diferentes.
Aquela ambição de igual sucesso, medido ao peso de ouro, para todos os filhos leva muitas vezes, por impossibilidade prática, a situações de marginalização, droga e a outros fenómenos de uma certa exclusão social.
Não se cura de transmitir princípios que reconheçam igual dignidade a cada indivíduo independentemente de qualquer que seja a função a exercer na sociedade, desde que com legitimidade.
O trabalho necessário à existência de uma sociedade organizada tem de ser executado, malgrado possa gerar desigualdades. O nosso papel deve ser o de contribuir para o amenizar dessas diferenças, valorizando devidamente o contributo de cada um.
O querer “ser alguém” também deve incluir uma boa dose de humildade, de reconhecimento, de solidariedade. Em termos económicos simplifiquemos: O homem deve exigir menos a paga do seu trabalho por rígidos critérios marxianos ou smithianos.
Há muito artificialismo na importância que é dada a certas funções em detrimento de outras. Há muito relevância dada aos resultados obtidos e pouca à qualidade dos meios utilizados para os conseguir.
Há muita discrepância entre a forma de encarar o trabalho no sector privado e no público, para um patrão visível ou para um impessoal ou desconhecido, para obter recompensa ou para obter vantagens.
A política, como exemplo que é para o bem e para o mal, tem de ser encarada de uma outra maneira. Há na política a firme convicção que o sucesso se consegue mais facilmente sem princípios do que com eles, e isto tem de acabar.
Em quase todo o lado, em vez da competição promove-se a desigualdade. Não se mede o grau de desempenho mas o grau de projecção. Não se busca a satisfação moral mas a satisfação hedonista e usurária.
Por tudo isto, aos filhos não é incutido um espírito de empenho e luta fraternal mas antes um espírito de desenrasque traiçoeiro. Face a muita coisa que está mal na sociedade “ser alguém” deveria ser cada um contribuir a seu modo para a melhorar na totalidade.
Nunca estaremos totalmente de acordo. Mas façamos as coisas com claras intenções, sem disfarces e sem falsos caritativismos. Por tudo e por nada se invocam sacrifícios próprios com a mais cínica desfaçatez.