sexta-feira, 3 de outubro de 2008

A ganância institucionalizada

Um amigo meu, professor de profissão, trabalhou sempre no Estado, mas nunca em regime de exclusividade e era adepto fervoroso da iniciativa privada, essencialmente porque para ele só esta garantiria o vencimento da meritocracia. Não dava ao Estado qualquer valor como garantia de emprego que na realidade, à altura, era para a maioria e para si também e não só para os fracos.
Qualificando o Estado como esbanjador de recursos, sejam humanos, sejam financeiros, também não se importaria de que ele o fosse em relação a si mesmo, o que, afianço, não era ao certo o caso. O dinheiro gasto no seu salário não era deitado fora. Mesmo assim era adepto de quanto mais liberalismo económico pudesse haver, que tanta mais eficácia económica haveria e mais premiado seria o mérito.
O liberalismo permitiria que o capital pudesse ser melhor aplicado e melhor remunerado. Dinheiro entregue ao Estado seria mal gasto porque não haveria concorrência no sentido de o gastar melhor, isto é de o pôr a produzir. No sector privado, além da concorrência entre as empresas, é possível haver um processo correlativo de concorrência entre os trabalhadores de cada uma e assim os mais aptos teriam possibilidades acrescidas de serem melhor remunerados.
Esta teoria, que reforça o papel do sector privado, levaria no extremo a que se achasse justo “roubar” o Estado, até porque se lhe não conhece a cara, e também roubar os trabalhadores, porque o mérito pode adquirir uma elasticidade imensa e é fácil penalizar o trabalho. Quando por qualquer destas vias ou pelas duas em simultâneo o possuidor do capital fica com a grande fatia do lucro está-se no capitalismo selvagem e na concorrência desleal.
Claro que o meu amigo não chegaria a tanto. No entanto, se o seu liberalismo não ia a este extremo de todo irresponsável e suicida, ia a um outro potenciador de graves problemas financeiros mas também sociais. Defendia que o Estado deveria intervir o mínimo possível, arrecadar o mínimo possível em impostos, e os órgãos sociais das empresas deveriam ter o máximo de liberdade para se auto-remunerarem.
Este modelo corresponderia ao sistema americano de economia de mercado em que este é na prática autogestionário. Por exemplo, os gestores atribuem-se todas as benesses possíveis e imaginárias, dizem que para executarem com prazer as suas “altas” funções e, com o objectivo de desviar a atenção, distribuem umas sobras pelos empregados. Se ainda por cima conseguirem colocar os concorrentes no negócio a fazer o seu jogo está o sistema completo.
Há aqui uma injustiça de base determinada pela justiça natural que faz com que caem por terra todos os edifícios que não respeitam o equilíbrio necessário do sistema. Na economia haverá fundos para alimentar uma fraude esporádica, uma fraude contínua mas moderada, mas não uma fraude permanente e insaciável. A facilidade com certos edifícios financeiros se criam leva a uma perca da noção dos limites e à procura de nova áreas de especulação.
Porém todos estes processos, que por norma exploram os limites da legalidade e as suas lacunas, são passíveis de existirem um certo tempo mas não o tempo inteiro, toda a vida. Quando esses processos, essas instituições se encadeiam, estabelecer relações entre si, quando cada uma já detectou em si algumas mazelas, pode provocar um efeito de contágio, isto é, podem vir a serem todas vítimas de sinergias negativas.
Quando se dá um abalo em todo um sistema ele afecta de modo desigual cada um dos seus elementos porque naturalmente os seus alicerces são diferentes. O abalo pode ser mais ou menos violento ou mais menos ancorável, mais ou menos delimitável. Num sistema pouco transparente há sempre um período de grande expectativa, de ansiedade, de espera por que a tempestade passe se possível ao lado.
O que aconteceu no complexo sistema americano é um tremor de terra de consequências imprevisíveis. É um sistema vasto, quiçá completo, de que se sobrevalorizou de certo as virtualidades, mas que pode apanhar desprevenida muita gente que não seria suposto estar. É um sistema em que entra a gestão normal de bens, mas também a gestão de valores virtuais, de expectativas, de previsibilidades.
Há quem defenda que no final escaparão as empresas sãs e os gestores conscientes. Mas também há quem sugira que aqueles que introduziram o sangue venenoso no sistema têm muitas possibilidades de escapar ilesos e até altamente beneficiados. E parece serem estes que tal sugerem que mais razões têm. Afinal os relacionamentos são tão vastos e os caminhos tão longos que o rasto de negócios com o grau de virtualidade que estes têm é difícil de seguir.
Aqui até está longe de interessar saber se são os bons ou os maus os mais penalizados. A questão principal é saber se há-de o Estado alimentar os comportamentos fraudulentos, que não se vê virem a terminar. O que mais interessaria era detectar o erro e não permitir que ele se repita, seja qual for a intenção de quem persistir em o promover.
No entanto tudo nos parece manifestamente simples e linear, tudo se parece resumir a não permitir que seja vendido algo indefinido como portador de um valor real. Como é possível vender algo que não seja representativo de um bem mensurável num tempo e num local e que não tenha em si capacidade para se auto-valorizar? Afinal há fundos suficientes de origem suspeita e que necessitam de se aplicar em algo que não há na realidade mas se cria virtualmente.
O sistema bancário e de seguros deixou-se enredar pelo dinheiro fácil. No balanço das suas contas assumiu compromissos sérios e aceitou garantias dúbias. Foi apanhado nas ratoeiras que ele próprio criou. Aquilo que numa primeira fase é uma venda torna-se uma obrigação paralisante. Todo o sistema tem criado afinal expectativas que não consegue suportar e ele é o primeiro a asfixiar.
Aqueles que se deixam enganar pelas virtualidades do liberalismo económico exacerbado, puro e não conspurcado por regulamentos “espartilhantes” e “imobilistas” tem decerto direito a viver nessa ilusão mas prestam um mau serviço à humanidade ao defender a ganância mais inescrupulosa.

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