sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

É mais agradável falar de Natalidade

A discussão sobre a despenalização do aborto é daquelas que após a decisão do referendo estará ainda por concluir. Não sendo agradável, infere ainda de muito cinismo e superstição. E todos estão mortos que chegue o dia da consulta, que depois tudo se esquecerá.
Ninguém se quer chatear e vai dizer tudo o que pensa. Muitos votarão sem estar convencidos. Talvez à última hora surjam argumentos novos, do género tentar apanhar os outros desprevenidos, de surpresa. Não se podem gastar já todos os trunfos e alguns só mediante o desespero virão à baila.
Para já os argumentos carreados para a discussão, sejam pró ou contra, são estanques porque já têm as evidências necessárias, e não mais que isso, espera-se que as deixem intactos e que as pessoas só tenham que continuar a vê-los assim, a pesá-los e dar-lhes a importância relativa.
Há uma tendência para reproduzir a mesma argumentação de há anos, alguma já com séculos, sem curar de ter em conta os progressos na ciência médica e nas ciências humanas, a influência que eles já exercem na vida corrente, isto é, sem uma nova abordagem civilizacional.
Quem quer que um lado ganhe cala os novos argumentos do outro. Insiste nos do seu lado, nem que sejam absurdos e incoerentes com qualquer política global de natalidade. Que isso é para depois ou para nunca mais.
Impõe-se já uma discussão aberta, que tenha por base todos os aspectos do problema e todos os papeis que as pessoas são chamadas a desempenhar durante a sua vida, não só a solução de um problema imediato.
Assim é necessário ter em conta as outras formas de reprodução existentes ou que se adivinham, o papel da genética no presente e no futuro, as diferentes formas de assumir a maternidade, de reconhecer direitos, deveres e da sua eventual transferência mesmo antes do nascimento.
É necessário que o Estado mostre que não sendo importante o embrião a abortar, dá o devido relevo e defesa aos filhos que nascem. É indigno não evitar que a violência se exerça sobre filhos indefesos, que é manifestamente mais perversa e nefasta do que eventuais abortos que não resultem da mesma.
Não repugnará a ninguém a esterilização forçada, decidida judicialmente, de quem, pai, mãe ou os dois que cometam iniquidades como as que se têm visto.
Já para quem pratique aborto, só por esse facto, de modo algum se justifica qualquer medida punitiva. O aborto só era penalizado devido à política de natalidade e pelo aspecto moral já que permitia encobrir realidades que sempre existiram e dar alguma credibilidade ao casamento ou a outras instituições existentes.
O aborto é um acto isolado que nem precisa de ser conhecido, aceite e acordado pelas duas pessoas que é pressuposto estarem na sua origem. É irrelevante o conhecimento de quem é a segunda pessoa, impossível se a primeira não quiser, mas seria esse conhecimento que permitiria tratar psicologicamente a questão, enquadrá-la em alguma forma de incentivo à natalidade, puder resolver o problema doutra forma.
No passado a maioria dos abortos só se fariam para não destruir casamentos ou, que fossem, uniões de facto, para não causar perturbação social, escândalo público. Ainda hoje estes são motivos de se querer o aborto livre e, já se percebeu, secreto. Quando o homem tem a situação mais estável o aborto é um acto injusto, penaliza eventualmente a pessoa menos culpada.
Embora os direitos e deveres de maternidade já hoje se não possam definir partindo do casamento ou até da família como sua base fundamental, no imaginário social ainda é dada grande relevo à sua defesa e a família, mesmo informal, continua a ter grande importância.
Com o casamento pretendia-se garantir uma grande estabilidade à família, o que hoje é na prática quase irrelevante. Porém à família é dada quase a mesma importância de outrora, mau grado os legisladores se vejam em dificuldade para acompanhar as suas diferentes formas de organização.
Pode-se também discutir se, caso se não trate de um problema de saúde, não havendo qualquer prejuízo anormal para a mulher, o aborto não será somente um problema social, resultante de novos valores prevalecentes.
Pode-se questionar quando a gravidez tiver resultado de adultério ou de relações livres não punidas na nossa sociedade, se o Estado deve “financiar” deste modo esse tipo de relações, dando cobertura àqueles novos valores.
Pode-se igualmente questionar quando, além do embrião em causa, haja um embrião de uma família a constituir-se, mas que de momento não está em condições de assumir a maternidade, se o Estado não deve “investir” numa futura maternidade responsável, destruindo o primeiro embrião.
Em muitos casos o aborto será a garantia de relações estáveis no casal envolvido. Mas não haverá dúvida que na maioria só dá garantias a uma relação paralela, por mais legítima que ela seja em relação à que deu origem à necessidade de abortar.
O Estado não tem que resolver todos os problemas sociais, fora assim e nada teria interesse, e a instituição do aborto livre não pode levar a que se vejam com bons olhos todos os abortos, independentemente da sua natureza terapêutica ou não, familiar ou não.
Do que não há dúvidas é que se o aborto for a solução para problemas de saúde, mesmo que de natureza psicológica, a sua legalização implicará que, à semelhança doutros actos médicos, a sua prática seja tendencialmente gratuita.
Já noutros casos, nos tais não vistos com bons olhos, é razoável colocar dúvidas. E também essas dúvidas são para colocar agora, senão quando se discutirão, que de cínicos e hipócritas está o mundo cheio. No dia seguinte a uma eventual vitória do Sim, à boa maneira, todos, incluindo os que votarem Não, reclamarão tudo de graça.
Nestas questões há sempre quem tenha definido linhas farisaicas de pensamento e relegue deveres e responsabilidades para trás das costas, fingindo que os direitos de uns nunca põem em causa direitos de outros.
Era importante que o Estado garantisse que neste caso não põem e isso até seria favorável ao Sim. Mas também que esclarecesse:
Que não é o uso que do sexo se faz que está em causa.
Que direitos e deveres podem estar em causa em relação à maternidade.
Que sistema vai integrar o tratamento da interrupção de gravidez.Que vai por cobro àquela violência que se exerce sobre os filhos já nascidos, que choram, que apelam à sociedade que lhes dê a lealdade que não recebem dos pais, ou doutros assumidos responsáveis, actuando de forma implacavelmente justa para com quem deles abusa.

terça-feira, 23 de janeiro de 2007

Poetas havemos todos de o ser

Insidiosamente a doença e a morte vão provocando o seu desgaste na juventude de hoje. Se esta se mostra mais vulnerável que noutros tempos é porque hoje há comportamentos de risco que estão ao alcance de todos e não por uma especial irreverência ou liberdade que seja seu anseio.
Noutros tempos os jovens fugiam, quase que só esporadicamente, dos “trilhos”, desvairavam-se ou muito justamente tinham atitudes da revolta num mundo em que não eram tidos em consideração. Mas eram mais comedidos ao cometer riscos.
Movimentos vindos da América, muitos com a melhor das intenções, organizaram-se, deram um mínimo de substrato ideológico à sua acção ou à falta dela, proliferaram. Se à nossa escala nunca tiveram grande expressão, não faltam jovens que sentem afinidades com esses movimentos, que assumem comportamentos daí provenientes.
Os jovens têm tendência para se relacionarem em grupos fechados, devido às condições em que se movimentam. Se com o tempo cada um vai integrando outros grupos e a influência desses primeiros, e quase exclusivos ao tempo, se vai diluindo, jovens há que se auto-excluem de uma vivência normal, de pertencerem a grupos diversificados e com experiências diferentes.
Muitos jovens acomodam-se mesmo a uma não menos vegetativa vida que a da maioria que eles abominam, com a agravante de ser amiúde uma vida parasitária, difundida como ideologia de vida por grupos de “refugiados”, que se caracterizam pela informalidade com que são constituídos.
Também a esta juventude se tem de dar a possibilidade de sonhar, de assumir atitudes positivas e de se auto-afirmar, noutros cenários, noutras ambiências, sem necessidade de “induzir” estados de alma que a reconciliem com o universo, tão disforme ele se lhe mostra.
Muitos jovens, incapazes de descobrir as motivações maiores que sempre estarão por de traz dos seus comportamentos, assumem facilmente o costume geral de distribuírem culpas como quem atira flores. Só que também facilmente passam das flores às ameaças à família, às instituições de acolhimento, às comissões de apoio aos jovens, à escola, aos grupos sociais mais variados, à sociedade, à política.
Os jovens, mesmo com relativo pouco tempo de vida, acumulam culpas e elaboram os sentimentos respectivos de grandeza e destinos diversos, não raro aceitam a “voz corrente”, que é a que passa nos seus grupos, e simplesmente se deixam adormecer, como se elas transportem verdades insofismáveis e culpados devidamente identificados.
Não é tarefa fácil para os jovens aceitarem as suas culpas, destrinçá-las no meio de um emaranhado que já tem muita gente e alguma história. Tudo seria mais fácil para os jovens se tivessem como objectivo procurar a sua luz própria, orientando a sua vida para um futuro livre.
Numa sociedade que cultiva a culpa, mas que normalmente a deixa morrer solteira, seria bom que cada um a não assuma por princípio, porque isso é bloqueador. Mas também seria bom não a repelir em absoluto, nem a despejar à sorte ou em escada quando se tem a ideia feita, mas ilusória, de que o mal reside sempre no topo.
Ajudar a juventude a ser intelectualmente honesta é um primeiro passo para a sua “libertação”. Os intelectuais “super-estruturantes”, que vêm tudo como resultado de intervenções de cima para baixo, incapazes de descer e compreender as coisas simples da vida, prestam um mau serviço. O amanhã só contará se cada um abrir e trilhar o seu caminho.
Entretanto as vítimas vão surgindo. Os próprios colegas lamentam, são os primeiros a sentir a falta de alguém nas suas comunidades tão estranhamente solidárias. Estranhamente não pensam mais em si, isso não os leva a arrepiar caminho, a pensar em que a próxima vítima pode estar em cada um dos que ficam e mesmo em si próprio.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

A nossa Ponte Romano/Medieval não é uma maravilha?

Dos 793 monumentos nacionais sete peritos seleccionaram os 77 mais bonitos e de maior significado segundo a organização deste evento - http://www.7maravilhas.pt/. Numa segunda fase um Conselho de Notáveis determinou quais são as 21 pré-maravilhas que estão a ser sujeitas ao voto popular para eleger as 7 maravilhas de Portugal.
A nossa Ponte Romano/Medieval resistiu à primeira peritagem, ao primeiro embate, à primeira selecção. Já quando o Conselho de Notáveis foi escolher as tais 21 pré-maravilhas deitou a nossa Ponte por água abaixo.
Protesto. Primeiro porque há um excesso de monumentos do mesmo tipo, de que seria fácil escolher menos quantidade para a selecção final. São sete monumentos do tipo castelo, fortaleza; Sete do tipo igreja, mosteiro ou convento; Quatro do tipo paço ou palácio; Duas ruínas romanas e a Universidade de Coimbra, de algum modo tipo mosteiro. Para haver tanto castelo e mosteiro não há uma ponte, um aqueduto, uma gruta, uma gravura de Foz Côa, um socalco do Sistelo.
Segundo pelo valor em si da Ponte. A parte romana tem velhice que chegue, arte e singularidade que baste. A parte medieval complementa uma obra que teria sido semi-destruída pelo tempo e talvez pelo desleixo humano, numa época de grande indefinição do poder e de grandes cuidados a ter com outros perigos, antes e nos primeiros tempos da nossa nacionalidade.
Terceiro porque, comparativamente e atendendo ao significado dos monumentos, a nossa Ponte representa um esforço sempre retomado durante séculos para, quase só com o trabalho humano e o seu engenho, lutar contra poderosas forças da natureza, para fazer e manter uma obra com evidente benefício para toda a população.
Contrariamente, há na grande maioria dos monumentos seleccionados uma manifestação de ostentação do poder, principalmente proporcionado pelas descobertas e pela exploração da escravatura e do ouro do Brasil. Mesmo que um terço deles sejam em glória de Deus.
Por isso também a minha dificuldade em escolher a minhas 7 maravilhas. Tive que duplicar escolhas de entre a mesma categoria de monumentos, o que era de todo dispensável.
Não estando a nossa Ponte, e se fosse para escolher uma só maravilha, restava-me o Palácio Nacional da Pena em Sintra, pelo seu ecletismo arquitectónico, pelo exotismo, pelo manifestação de romantismo, pelo seu carácter volúvel que representa o carácter volúvel da monarquia Maria/Fernandina.
Dir-se-á que este Palácio tem beleza, sumptuosidade, esplendor, que tem. Que o Castelo de Almourol ou de Óbidos têm imponência, que têm. Que o mosteiro de Alcobaça ou da Batalha têm religiosidade, que têm. Que as ruínas romanas de Évora ou Conímbriga têm por si a história, que têm.
A Ponte Romano/Medieval de Ponte de Lima tem história, imponência, beleza, trabalho, sacrifício feito com significado e objectivos válidos para todos, não é um objecto lúdico, balofo.
Só que, por erro de um grupo irresponsável de notáveis que não dão a cara, não podemos votar nela.

As expectativas que se abrem para o futuro

Um leve exercício conjuntural é a melhor forma de balizar expectativas. É tão grave não termos ilusões como, tendo-as em demasia, acarretarmos com a desilusão inevitável.
Há sempre momentos mais marcantes na vida que uma mera data de calendário, momentos significantes em que nos é dado fazer revisões de objectivos e sua calendarização.
Não é pois disso que em principio se trata, sendo que este ano se vão acentuar os efeitos da alteração que, presumo e acredito, se está a operar no panorama nacional no sentido de uma politica de verdade. Só isto nos fará repensar a razoabilidade de algumas das ambições que a imaginação nos traz e a que uns resistem melhor que outros.
A crise orçamental que despoletou uma série de reformas geradoras de incompreensões e conflitos atingirá o ponto ómega no final de 2007, altura em que será possível avaliar a validade e a suficiência das medidas adoptadas.
Acreditando que sim, mas nunca com carácter definitivo, e porque então estaremos a meio de um ciclo eleitoral, sem especulações a propósito de qualquer possível intencionalidade prévia, esperamos uma inversão temporária da tendência de estagnação que nos atormenta há anos.
Mas cada vez mais se impõe uma atenção redobrada, que não nos deixemos cair na tentação de pensar que tudo está feito e que não possa até haver reversão de algumas medidas anunciadas. Não podemos acreditar cegamente em ninguém, nem em sindicatos que falam em solidariedade mas praticam o egoísmo mais feroz, o que não deixa de estar na sua natureza.
Também no panorama local nos não podemos demitir das responsabilidades no exercício de uma política transparente. Mesmo fraca tem de ser levada a sério a opinião pública, os direitos e obrigações dos órgãos deliberativos que com o seu carácter colectivo possam assegurar mais clareza.
Além de se pugnar para que as coisas deixem de ser feitas em cima do joelho, que não apareçam soluções como resultado de actos de mágica, tem que se envolver a sociedade, em especial os eleitos, na definição do futuro.
As decisões têm que ser explicitadas, sejam tomadas por órgãos unipessoais ou colectivos. Não podem provir de poderes insondáveis. Neste caso escamoteiam-se os propósitos, celebra-se o efémero e institucionaliza-se a veneração. Coloca-se a demissão e a subserviência no lugar da dignidade.
Carregam-se os cartuxos no silêncio dos gabinetes porque em 2008/9 será preciso deitar alguns foguetes. Quem está condenado a só deitar fogo rasteiro são as juntas de freguesia, cada vez mais impotentes e inoperantes.
As aldeias estiolam perante a decadência do mundo rural, mantido artificialmente há muitos anos, mas que agora está no estertor final. À medida que os velhos morrem ou se debilitam, os novos procuram trabalhos economicamente viáveis.
A própria paisagem sofre a adulteração de se verem as vinhas transformadas em silvados, os campos em tojeiras, as boiças em amontoados de lenha queimada. As casas velhas não são recuperadas porque já não correspondem aos requisitos de hoje. Os processos burocráticos dificultam cada vez mais qualquer reabilitação.
Entidades várias assentam a sua mão sobre o território, criando espartilhos de que os fracos se não livram. Os poderosos torneiam a lei, aproveitam a informação privilegiada, as alterações feitas à medida das conveniências, todas as fontes de corrupção, clientelismo e suborno.
De algum modo acreditamos no declínio dos processos chantagiosos, no fortalecimento da opinião pública e no poder da crítica. Acreditamos que se venha a ter satisfação em ser honesto, em ser humilde e em adquirir sabedoria.
Acreditamos que os espíritos se iluminem com a mesma luz clara e resplandecente e que, ao iluminar os outros, com a sua força se suavizem as suas fúrias e se amenize o seu viver.Acreditamos que a miséria regredirá e que o belo e o sublime serão cada vez mais visíveis e ao alcance de mais pessoas. A desgraça deixará cada vez mais o seu lugar na evidência dos nossos espíritos ao estado de graça. A verdade emergirá brilhante do seu esconderijo de restolho e lama.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

Desculpem-me … a intrusão

Muitas serão as razões que poderia invocar para solicitar a cedência de algum espaço neste Jornal. Mas escrever aqui será uma tarefa assaz arriscada, quando não tenho qualquer intenção de beliscar o seu carácter, como é evidente.
Este Jornal é feito e dirige-se a pessoas que por vicissitudes várias tiveram destinos diferentes mas que tem em comum a sua origem e vivências de alguns ou muitos anos. Num Jornal que pretende agregar pessoas, das quais eu conheço poucas, que posso eu dizer?
Precisamente o que me atrai é a condição de grupo que tem suficientes ligações para se distinguir com nitidez de outros, mesmo geograficamente próximos. E de grupo que está disposto a lutar por manter muitas características distintivas e identificadores.
Preservar os trilhos espirituais antigos é tarefa decerto mais complexa e estimulante que preservar os trilhos da natureza, malgrado a importância destes. A maneira como as pessoas se relacionam, em face das investidas do mundo exterior a este espaço, sofrem alterações inevitáveis, mas acho que há suficiente empenho em aguentar esse património.
O tempo tem um efeito corrosivo tal, que praticamente a civilizações inteiras que deram o seu contributo para a civilização geral, se deixou de reconhecer o seu rasto. Mas não faltam exemplos de grupos restritos terem conseguido que a sua herança se mantenha viva.
Os Soajeiros, por sua própria iniciativa alteraram em muito as suas condições económicas com reflexos inevitáveis nos seus modos de vida. Também a politica e a economia que se praticam no exterior vão influenciando a sua vivência social.
Estamos pois já longe do doce remanso que em tempos idos caracterizaria uma existência quase idílica. O Soajo não é uma comunidade fechada pois veja-se a contribuição que os seus naturais vão dando em tantas paragens para diferentes grupos civilizacionais.
O Soajo, ao tornar-se uma comunidade tão alargada, sujeitou-se a influências múltiplas que terão tido repercussão na coesão do grupo dos Soajeiros. Alguns se terão “perdido” nos vastos caminhos do universo mas decerto se lembrarão dos velhos trilhos da montanha.
Além desta herança “vadia”, que decerto terá servido para alicerçar uma boa integração noutros meios, há um núcleo, chamemos-lhe “duro”, que há-de constituir o reservatório das mais genuínas tradições, dos mais lídimos sentimentos, das mais legítimas aspirações.
Desculpem-me … a intrusão, mas não é necessário a unanimidade para se reconhecer um património comum e agora que, além do material, tanto relevo se dá ao património imaterial, decerto haverá poucos espaços em que estes dois aspectos da questão estejam tão interligados, com um forte inter-conexão.
As diferenças têm que ser suavizadas pela adopção de perspectivas comuns quanto ao futuro, porque, se não se estiver de acordo quanto a isso, todo o passado se esboroará, quando ao cimento que o liga for sendo retirada a consistência pelo estado de banho-maria criado pela indefinição.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2007

As previsões possíveis para a vida do futuro

Vamos continuar pendurados da obtenção de uma energia limpa e inesgotável. É a miragem desta salvação que nos pode alimentar mais um ano de percurso rumo ao abismo que, à falta dela, nos está garantido. Mas mesmo que um dia acordemos, quem cá estiver, com a notícia mais importante de toda a história humana, nem assim todos os problemas ficarão resolvidos.
O efeito de estufa, o aumento de temperatura e a desregulação climática aí estão para nos atormentar com a ténue conforto dos ex-presidentes e responsáveis hoje sem responsabilidades. A já velha esperança na energia termonuclear pode não vir a tempo.
A energia nuclear suja obtida de materiais radioactivos, que tem sido o nosso pesadelo há mais de sessenta anos, não é a solução e os seus problemas reavivam-se na Coreia do Norte e no Irão. Para alguns volta a existir a visão do mal, que não absoluto, suficientemente tenebroso.
A manipulação das consciências vai continuar criando monstros onde seria presumível florescerem jardins. Cada vez haverá mais pessoas com ideias “límpidas” e certezas “absolutas” que quererão impor-se pela lei da fornalha, suprema lei dos tiranos mais perversa que a guilhotina, a bala, ou a cadeira eléctrica. O fogo purificador vai continuar a ser o alimento de todos os cultivadores de mistérios, que transformam em gases invisíveis todas as mazelas do universo.
Mas haja esperança que ainda há gente boa. Os monstros de há uns anos tornaram-se anjos protectores da humanidade. Alguns regimes árabes aparentemente passaram a tormenta do fundamentalismo. A China e a Índia ambicionam tão só tornarem-se potências económicas pacíficas. Outros países mais pequenos lutam pelo seu lugar na economia global.
Malgrado, o estertor de alguns fósseis, resistentes de um passado decrépito, produz algumas fracas imitações. Alguns países latino-americanos tardam a ter juízo e tornam-se fomentadores do narcotráfico. A África há-de continuar a ingloriamente alimentar régulos ditadores.
As mesmas aberrações, sociedades sem norte resultam de antigas influências tanto soviéticas como ocidentais. Os resquícios tanto do socialismo real como da ideologia liberal adaptaram-se à exploração dos recursos, ao seu cortejo de corrupções e distorções sociais.
A própria sociedade industrial se vê confrontada com o exagero da acumulação capitalista. Economias paralelas, dinheiro sujo, esquemas enleantes, permissividades sedutoras, informações de privilégio, decisões gizadas fora dos locais apropriados e dos contextos legais.
A sociedade do espectáculo que leva o homem público a ser uma marioneta nas mãos dos adoradores de imagens, dos malabaristas da palavra, dos ficcionistas dos destinos pré-concebidos, define regras pretensamente iguais, justas e universais.
O homem público num primeiro movimento cola-se ao lugar, ao tacho, à função, sem curar do seu desempenho, da sua substância, da sua caducidade. Se tem mais ambição transita entre eles, sem passos em falso, sem cair do patamar a que se pôde alcandorar. Até poderia ter tido mérito um dia, um só dia até, mas a sociedade paga toda a vida.
O homem público tornou-se sinónimo de parasita, que só o permanente enfoque da comunicação social na classe e a alternada atenção nos indivíduos permite dar algum brilho e esconder o cinzentismo. O homem comum é sempre dispensável de qualquer serviço em que trabalhe enquanto o público é essencial em qualquer poleiro em que se encontre.
Mas o homem público não exerce sozinho o poder, normalmente refugia-se em estruturas de assalto e conservação do poder e mesmo que nem o chegue a exercer efectivamente, contribuiu para o corpo que o exerce.
A corporização do poder que muitos idealistas imaginaram no começo do século XX como a solução para uma política justa e um mundo de paz faliu. O regresso a um passado idílico ou a um igualitarismo primitivo redundou em fracassos rotundos. As contradições internas enredaram estes sistemas.
Depois do estouro de tantos regimes, por dentro de si mesmos, resta ao homem ambicionar algo mais impessoal e inclusivo, com menos tendências e dispersão. Depois de um aparente abandono a que o homem foi sujeito pela implosão de sistemas artificiais assentes na rigorosa divisão do trabalho e de classes, grupos ou categorias, dêem-lhe hipocritamente o nome que queiram dar, o homem está condenado a procurar o seu caminho, a sua dignidade, o seu impreciso “lugar” no meio de uma anarquia que resta institucionalizada.
Com o declínio do poder das corporações os grupos foram perdendo a credibilidade, o respeito de outros grupos, a honorabilidade que era atribuída a alguns. Não faltarão as tentativas de recuperar o passado, criar uniões ocasionais, artificialismos regulamentados, racionalismos rígidos e impróprios da natureza humana. Não faltarão os perigosos iluminados, que não iluministas, prontos a levar à arreata os cegos de espírito e estes a quererem mandar para o fogo os que conservam alguma lucidez.A incerteza transferida da economia para a política vai ser agora o lugar em que o homem pode despontar, em que todos e não só os desfavorecidos vão ter que lutar e dar à sociedade mais do que o seu egoísmo permite. A dignidade perdida por muitos, porque assente em princípios erróneos, vai ter que, enfim, ser conquistada a pulso e defendida pela prática de cada um.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2007

Aborto/Clonagem/ Infertilidade, uma reflexão translinear sobre a Natalidade

A clonagem vai de vento em popa. Na América já haverá 150 animais clonados e uma Autoridade qualquer já disse que a sua carne é tão boa como a melhor dos apascentados no Planalto do Barroso.
Um dia destes outra “Autoridade” virá dizer que homem clonado não perde qualquer característica do uterino e até terá as suas vantagens. A mulher correrá apressada que, para dar seguimento aos seus impulsos libidinosos incontrolados, já não terá que assegurar a procriação. Ainda por cima a mulher alijará de si a responsabilidade de pôr cá neste mundo seres a que possivelmente só restará o sofrimento.
Os puristas das raças também agradecerão e com as suas manipulações genéticas vão procurar tirar dos africanos, asiáticos, euro-asiáticos e ameríndios as suas melhores características para construir um super humanóide capaz de se dedicar à guerra, desporto, jogo ou libido com a mesma alegria de um símio.
A civilização ocidental encontra-se num dilema tão brutal que, face à possibilidade de perder o domínio há séculos mantido, imagina e leva à prática toda a espécie de soluções. A ideia do aborto livre também se pode inserir na purificação das raças, seja qual for o princípio pelo qual esta é proclamada.
A mulher disposta a abortar é uma fraca, não suficientemente amadurecida, pelo que, assim sendo, fica também aberta a porta ao incentivo ao aborto praticado por quem não “soube” obter as condições económicas para criar os seus filhos. E os fracos não são reproduzíveis, argumentarão.
O aborto, colocado nesta perspectiva, está ao nível da clonagem, podendo ambos ser entendidos como tendo por objectivo a assumida, quase podemos dizer programada, uniformização do panorama social.
Sabemos quanto é necessário haver coerência na regulamentação social, não só quanto aos objectivos “políticos” a atingir, mas essencialmente quanto aos objectivos civilizacionais na plenitude da sua asserção.
O aborto social corresponde a uma tosquia prévia, à demissão por parte da sociedade de algumas das suas responsabilidades. Portanto a sociedade não pode classificar como crime aquilo que resulta da sua permissividade, que tem em vista tão só a optimização das funções sociais dos seus membros.
Então, coerentemente com este princípio, a sociedade deveria punir ao mesmo nível reprodutivo, isto é, com a infertilização, que hoje já nem é necessário que passe pela decapitação genital, para quem maltrate os filhos com os laivos de violência com que se tem visto tantos casos ultimamente.
O espectáculo é de tal modo indigno que, por mais que se vocifere nas praças tribunícias, não se consegue dar ao aborto livre ou clandestino um carácter tão degradante, aviltante, animalesco como aquele que nos entra em casa no quotidiano com violência gratuita sobre os filhos.
Enquanto casos como o de Letícia e Sara perdurarem não me digam que há escândalo maior do que este, que se permite que se utilize a capacidade procriadora para a adopção de comportamentos demoníacos.
Eu que sou a favor que se dê à mulher, e só a ela, a última palavra nas decisões que dizem respeito ao aborto, direi também que se dê à sociedade o direito à última palavra, se não quanto há existência deste energúmenas/os, pelo menos quanto à sua reprodutibilidade.
Uma decisão tão grave como a de permitir o aborto livre e condicionado ao tempo de gestação, não a questiono, mas deve merecer que se faça a reflexão sobre estes assuntos conexos da clonagem e da infertilização forçada, para que se não desvirtue o modelo civilizacional em que vivemos, para que se não continue a cometer crimes infinitamente mais gravosos que aquele que se pretende agora despenalizar.
A mulher, na minha perspectiva, deve assumir como sua a função procriadora por excelência, deve-se negar ao homem/mulher qualquer possibilidade de auto reprodução, assim como se deve negar a capacidade reprodutora quando quaisquer dos intervenientes se não mostre digno de a assumir com todas as suas consequências e essencialmente com a obrigação de ser leal para o ser que nasce.Deve-se dar à mulher tempo para pensar na responsabilidade de ter um filho, não se pode perdoar ao homem ou à mulher a ignomínia, a baixeza de um comportamento desleal com um ser dependente e indefeso.

O Espírito de um lugar esquecido

Na luta incessante entre o passado e o porvir, entre uma identidade perdida e uma nova identidade a adquirir, em que nos deparamos impotentes perante o peso da nossa ascendência e o vazio do nosso futuro, inquirimos o espírito deste lugar de Ponte a que nos sentimos umbilicalmente ligados.
Também ele está perplexo, tão baralhado, podemos dizer que se pela e nos devolve rapidamente a questão, aliás, numa linguagem que já nos custa a entender. Sentimo-nos ainda mais confundidos, incapazes de lhe dar a pretendida resposta, de lhe fornecer uma saída, de lhe apontar um caminho.
As nossas linguagens já são tão diferentes que a minha primeira suspeita é que não vamos poder dialogar eficazmente. No fundo a linguagem traduz formas diversas de organização social e económica, de associação, de distribuição de esforços, de concentração de capital.
O velho lugar de Ponte, após muitas transformações Centro Histórico de Ponte de Lima já, no seu espírito, nos olha estranhos, desprendidos, perigosos, diabólicos. Também nós o olhamos estupefactos, como se fora a primeira vez. Se não fosse uma réstia de amor diríamos quanto é mais fácil construir tudo de novo.
Resistimos e tentamos familiarizarmo-nos de novo com ele, com este espírito do lugar que julgávamos conhecer. De tão próximo que críamos saber o que ele sabe, sentir como ele sente, emocionarmo-nos como ele se emociona, ter os mesmos sentimentos que lhe sustentam o ser.
Apalermamo-nos porque o achamos mais resignado ainda do que nós, mais alquebrado que um carvalho centenário, mais insensível que uma pedra da ponte, mais pasmado que uma galinha, mais ignorante do futuro que um animal de pasto.
O Centro Histórico está em manifesto conflito com o futuro mas conformado com a perda eminente da centralidade que os diversos poderes dispersam, da segurança que as suas muralhas outrora garantiam. O tempo, se não corrói as pedras, vai delapidando o edifício, vai-lhe sugando o sangue, vai esvaziando a alma, vai-lhe enfraquecendo a sua capacidade de reacção.
As pedras dão-lhe a patine dos séculos mas coarctam-lhe a plasticidade. As novas práticas são as proporcionadas pela maleabilidade dos novos materiais. Hoje brinca-se com “Legos”, trabalha-se com moldes.
São também novas formas de organização que polarizam as energias, sacralizam outros ritmos e rotinas, dão novos brilhos às vivências. Mas exigem outros espaços, outras panorâmicas, outras condições menos inóspitas e menos naturais, ambientes mais climatizados e artificiais.
São os centros de gravidade que se deslocalizam, criam-se novas correntes, novos fluxos convergindo para novas potencialidades. Vence-se acreditando nas próprias forças mas congregando outras à sua volta. A novidade é naturalmente atraente. Mas a força e lógica do que é novo não são copiáveis para o que é velho.
Coloca-se um dilema ao Centro Histórico de Ponte de Lima: Ou não se faz nada porque o ritmo de desertificação é imparável e os apreciadores de ruínas agradecem, ou se adapta ao futuro e resiste aos movimentos desagregadores.
O Centro Histórico era o palco da vida de alguns funcionários e proprietários mas de muitos artífices, comerciantes, prestadores de serviços. Muitos dos ofícios foram trucidados pelo progresso técnico, outros pela legislação ambiental e regulamentar que os deslocou. Mas outros ainda pela dificuldade ou proibição de circulação automóvel.
Incentivou-se uma autêntica lixiviação por via legislativa que pretendeu dar aos centros históricos uma salubridade laboratorial. Em seguimento destas políticas, para coroar o ramalhete, promoveu-se uma política zoológica de turismo. Pretendeu-se enjaular os nativos em redomas assépticas e deixar as ruas para os passeios displicentes dos turistas.
Esta pretensão de copiar modelos que tem a sua razão de ser em cidades monumentais em que a pressão turística é grande, o afluxo de milhões e as zonas históricas já há muitos anos passaram a zonas museus mas que aqui não têm qualquer viabilidade, só se justifica por excesso de parvoíce.
Para que o turista cá venha chega tão só que possa passear num meio seguro e natural, presenciar um modo de vida normal, conhecer uma terra com “algum” significado, de preferência ficar com uma recordação agradável. De resto que não vá em dívida e se arranje um modo honesto de ele deixar cá ficar algum.
A criação de um qualquer artificialismo é na minha opinião contraproducente para a captação desta importante indústria. Estando nós vocacionados para um turismo específico, não se justifica a imposição de grandes sacrifícios até porque os benefícios que podem advir estão longe de serem compensatórios.
Mas o fundamental aqui é que o artificialismo, que se possa criar à volta de uma realidade que vale por si, em nada a favorece. O erro de pretender submeter o Centro Histórico a uma disciplina rígida, pela qual são coarctados praticamente todos os direitos dos seus habitantes, vai pagar-se caro.
Ponte de Lima está a passar a ser só mais uma terra sem automóveis, sem gente, sem crianças, com pedras lisas no chão, com cães às poucas janelas abertas, com fantasmas atravessando a noite deserta.O espírito do lugar deambula triste por entre paredes nuas, com a melancolia de quem vê cada vez mais longínquo o dia em que possa readquirir a vitalidade de outros tempos, quando não era objecto turístico, nem se falava de noções como dormitório, centro comercial ou o próprio centro histórico.