sábado, 12 de maio de 2007

A suspeição turva irremediavelmente o nosso espírito

É vulgar uma discussão acalorada sobre uma acusação determinada redundar num seguinte dilema em que uns pretendem que uma determinada norma é genérica o suficiente para englobar o caso e outros que essa norma tem uma aplicação restritiva e não lhe é aplicável.
Normalmente isto acontece assim porque todas as nossas divergências descambam para a existência ou não de dois pesos e duas medidas, para a existência de uma questão de favorecimento na aplicação da Lei.
Porque há a ideia, geralmente razoável, de que nada é inocente e há sempre alguém a beneficiar propositadamente destas dúvidas e pretendidas incoerências. Quem redige as leis ou quem as aplica é sempre acusado de, com algum propósito escondido, ora encobrir ora descobrir.
Para activar mais esta permanente suspeição temos ainda as normas legais que determinam que em caso de dúvida os suspeitos são inocentes, o que subjectivamente levará alguns a serem mais expeditos em tentar a sua sorte no desrespeito da Lei.
A suspeição assume às vezes um carácter quase obsessivo, em tudo vemos uma tentativa de enganar alguém. Mas na prática, para nosso desespero, o que mais se aplica é a conclusão de sermos todos inocentes, de alguma forma até vítimas de uns tantos mal intencionados.
Só que esta conclusão não é suficiente para nos deixar sossegados. Passado algum tempo lá voltamos às ideias antigas e vá de acusarmos tudo e todos de estarem conluiados no desrespeito da lei para obter benefícios indevidos. É uma conspiração que se urde no silêncio.
As suspeições retroactivas são as mais difíceis de esclarecer. Vêm normalmente à baila por comparação com casos recentes o que torna complicado fazer o enquadramento legislativo adequado.
Há ainda o perigo de estarmos a comparar casos em que a natureza só aparentemente é semelhante. As circunstâncias mudam, as opiniões mudam, são diferentes os valores em que o legislador se fundou para elaborar a legislação aplicável. O nosso juízo só pode por em dúvida aquilo que conhece.
A suspeição tem uma autonomia invejável. Faz o seu caminho por tudo que é sítio, por tudo que são épocas, mesmo as mais remotas, por todos os grupos, famílias e gerações. A suspeição corrói-nos as raízes.
Há uma necessidade premente de controlarmos a suspeição. Em vez de constituir aquele alerta que às vezes nos falta, corre o risco de se tornar um anestesiante que faz de nós inoperantes e cismáticos. Quanto mais suspeição manifestamos mais enganados somos.
Ninguém gosta que lhe vendam gato por lebre. Isso tanto vale para a actividade económica como para a social e política. Mas não podemos confundir todo o comércio com usura. Não vamos a lado nenhum enquanto não retirarmos do nosso espírito este farisaísmo doentio que herdamos.
Historicamente já houve tentativas de, começando pela actividade económica e perante a dificuldade de separar o legítimo do ilegítimo, se proibir tudo o que fosse para além da troca directa.
Ora se se confirma que o mal está no vil metal, não é acabando com ele mas seguindo-lhe as movimentações que podemos ter algum sucesso. Mas nós lançamos antes as nossas suspeições para os vizinhos e extasiamo-nos a olhar para aqueles que são efectivamente ricos, não se sabe como.
Quanto o mal não está na Lei e ela é desrespeitada sentimo-nos feridos com isso, com a impotência de a pôr em prática por parte de quem detém o poder. Mas quando o mal está nela, mais nos sentimos despeitados, porque percebemos que os poderosos chegam com os seus tentáculos à sua feitura.
Um clima de suspeição generalizada só termina quando a exigência e o rigor forem aplicados naquele acto de concepção e regulamentação da estrutura mais apropriada a uma boa convivência social, simplificando e limitando ao máximo a existência de dúvidas, preparando devidamente quem as deva passar à prática.
Os benefícios que alguém pode usufruir de alguma actividade, de alguma posse, no fundo o resultado de uma outra posse ou duma actividade anterior, devem estar devidamente regulamentados para que os benefícios ilegais possam ser perfeitamente identificados.
Mas as leis, mesmo as punitivas, não podem ser o reflexo de espíritos persecutórios e doentios, como por vezes os nossos correm o risco de ser. Na realidade nós comprazemo-nos quando alguém é apanhado nas malhas da Lei, vai a inquérito, é arguido, mas a partir daí já só nos vem a compaixão, condoemo-nos irremediavelmente, afinal quem é culpado de quê?
Na verdade os nossos estados de alma são tão variáveis, tão facilmente assumidos, que não resultam de raciocínios lógicos mas já quase os temos à mão para corresponderem aleatoriamente às incompreensões que se vão manifestando no nosso espírito.
A maioria de nós, com mais ou menos sacrifício, podemos ter que assumir vários papéis, em vários cenários, em diferentes contextos sociais, mas não está preparado para isso. Alguns há que são capazes de representar vários estados de alma e simultaneamente beneficiar de todas as situações através de qualquer imaginário artifício. Não suspeitemos de todos.