segunda-feira, 4 de setembro de 2006

As Feiras Novas são uma festa “Única”

Os cavalos no imaginário da minha infância

Na minha infância as Feiras Novas tinham o prodígio dos cavalos. Não eram só mais uma feira. Eram uma feira diferente, tinha cavalos. Cavalos de ferro e pau mas fundamentalmente cavalos de carne e osso como nós.
Na véspera já os preparativos iam adiantados, já havia carrossel e carrinhos, dizia eu à minha mãe que me acordasse bem cedo que eu queria ver os cavalinhos.
E assim era, ainda era noite e já eu os ouvia no seu suave trote a descerem a nossa avenida. E não mais conseguia dormir, à espera que a minha mãe se levantasse para que eu pudesse sair para os ver cavalgar a caminho da festa.
Logo que podia, esgueirava-me para cima do muro, onde ficava extasiado, que já me não apetecia sequer o pequeno-almoço. Este era um espectáculo único que eu sabia que só se repetiria dali a um ano e que eu não podia perder.
Eram belos os cavalos mas mais belos ainda os seus potros pequenos. Os seus relinchos encantavam-me. Tanto me apetecia saltar do alto do muro para cima de um deles e ir também com eles para a festa.
A alegria era tanta que eu pensava que eles gostavam da festa tanto como eu. Eram tantos potros que vinham do lado da Serra de Arga que todos passavam por aqui. Todos estavam contentes mesmo os que não traziam consigo a mãe.
Só depois troavam nos ares os foguetes dando início à festa. Petardos poderosos acordavam os mais distraídos, que não era o meu caso. Tivesse eu a liberdade destes cavalinhos para ir já para a festa.
A minha primeira visita ao chegar às Feiras Novas é, e sempre foi, à feira dos cavalinhos. Para mim o nosso duro e submisso garrano é uma referência obrigatória nas nossas festas anuais.
Estes garranos ainda hoje andam livres todo o ano nas serras à nossa volta. Juntam os aqui neste sábado de Feiras Novas para fazerem as suas trocas e lhes dar novo destino. Este cavalo há-de continuar a ter um lugar no nosso futuro.
Hoje raças mais elaboradas, de uma outra beleza, são trazidas para a feira. Raças que antigamente eram raras e que quando apareciam eram motivo da curiosidade geral. Hoje há quase uma inversão dessa atenção, o curioso é o que subsiste.
Se também a variedade dá colorido à feira, nenhum outro cavalo ainda conseguiu retirar o lugar e ofuscar o papel da nossa maior atracção: o bravo garrano. As suas qualidades são únicas e há quem lute pela sua preservação.

A importância da feira do gado nas Feiras Novas

Mas nós também temos outra feira de gado, mas que se realiza todos os quinze dias: a feira de gado bovino. Feira milenar, já foi o sustentáculo de todas as feiras, o entreposto de toda a riqueza. O gado era o mealheiro dos ricos e dos menos pobres.
Predominavam as vacas piscas, com os seus grandes cornos, luzidios se o dono era esmerado. Eram às centenas, perfiladas na devida ordem para que se pudessem ver bem pela frente e por trás. Eram motivo de bons negócios, mas também de grandes rixas quando alguém se sentia traído.
Há muito tempo que nas festas há um concurso para estas e outras raças e os mais belos animais das redondezas aparecem para a competição. Predomina agora o gado galego mas vêem vacas barrosãs e também cachenas e outras de proveniência exótica.
As cachenas são, na minha ignorância, uma espécie de subespécie das piscas, do género barrosão, características por serem mais pequenas, com cornos afiados, por se criarem nos montes com facilidade e produzirem pouca carne e crescerem com a lentidão que as caracteriza. Mas o resultado é fabuloso.

A animação matinal nas Feiras Novas

Vistos os cavalinhos e o desfile dos melhores bovinos há que continuar a festa. A manhã é mais dedicada ao comércio, mas os bombos, os gigantones e as bandas de música vão criando o ambiente, a animação que há-de contagiar todos no resto do dia.
Gigantones e cabeçudos são velhos amigos. Sempre a mexer, sempre a rodopiar, com as gaita-de-foles e concertinas a acompanhar, segurando uma grande cabeça e roupa a condizer, também eu gostava de lá estar.
Bombos de todos os tamanhos e feitios, grandes maças a bater, caixas a ressoar, é um barulho ensurdecedor, de harmonia precária mas cujo ritmo desperta os mais distraídos e atrai multidões.
Juntam-se no Largo de Camões ao meio-dia e há que dar o máximo, que pode estar em causa o contrato para o ano e é necessário sacudir aqueles que ainda não tenham apetite para o almoço.
Bandas de música, das melhores do País, que no inicio da manhã se saúdam em pleno Largo de Camões, antes de subir aos respectivos coretos, mais apropriados para os seus acordes. Apresentam-se com os seus melhores trunfos perante este “júri” exigente, de gente experiente e que vem de todo o lado.
No bulício geral a harmonia da sua música parece-me, por vezes, um desperdício, mas os mais aficionados acercam-se dos coretos quanto podem para não perder pitada destes concertos. O sucesso das bandas medir-se-á, claro, pelas palmas que recebem. Mas também aqui há claques organizadas.
Entretanto, enquanto ainda esperamos pelos bombos, também podemos dar uma volta pela feira, ver as novidades que sempre aparecem. Em cada ano há sempre algo mais apelativo que nos leva a gastar algum dinheiro que também é obrigatório deixar cá algum.
Há partes da feira em que é bem melhor pensar em lá ir de manhã para escolher as novidades, antes que tudo se misture. O aperto vai sendo muito, que a festa já começou. No primeiro dia ainda se encontra muita gente que passou a noite anterior a dormir.
Com o estômago vazio, principalmente se assistimos ao troar incessante dos bombos, uma boa sarrabulhada é o melhor manjar para o aconchegar neste dia. Se o sarrabulho for à minha moda melhor, mas convenhamos que isso não é fácil. Então, se não tiver sido convidado por um amigo, vá a um restaurante, não lhe vou dizer qual, mas há muitos de qualidade.
Podia ter continuado a falar da minha infância, mas seria um pouco insípido agora que estamos na ocasião de saborear um bom verde tinto da região. Que, se eu o não bebia nessa idade, corria sem dúvida em maior quantidade do que hoje. Mas ainda há quem resista ao império da cerveja.

A etnografia elemento maior das Feiras Novas

Bem comidos e bebidos a preceito, vamos ao desfile etnográfico que ganhou há muitos anos o lugar mais nobre dentro da festa de sábado. Mais elaborado ou menos, sempre mostrou muito do que são as tradições desta terra magnífica. É a melhor forma de recordar distracções, afazeres e misteres que por força do progresso técnico se vão perdendo.
Já se não vai de cântaro à fonte, nem de bilha de leite para namorar, não se malham os cereais ou o feijão na eira, não se fia e cultiva o linho, não se vai de carro de bois carregar mato ao monte, não se oleia a chiadeira e se aparelham as vacas com a chieira de outrora.
Isto é reviver uma harmonia perdida em que as pessoas se enquadravam de modo mais ou menos perfeito e consentido numa estrutura que só em momentos de crise era pesada, que tinham o seu prazer em vir à feira de balaio à cabeça, coberto com a sua toalha de linho.
Muitos e muitos mais aspectos da vida rural nos surpreendem, uns que ainda subsistem em pequenas comunidades, mas em vias de extinção, outros já irremediavelmente perdidos. Quando já se não fazem as coisas na vida real, é necessário um grande esforço para dar naturalidade a esta representação, para que ela não descambe também no artificialismo.

O Desafio e o Remate de um dia de Feiras Novas

A festa continua no arraial e com a noite, por todo o lado, surgem concertinas, normalmente em grupos, rusgas preparadas por amigos, tocadores a acompanhar cantadores que não faltam à chamada, que o apelo é forte.
Aqui é melhor voltar à infância, porque aqui, se a tradição se mantém, não há representação mas já há muitas diferenças. Pela perspectiva da quantidade até há um reforço significativo derivado da acção de muitas associações na expansão dos instrumentos musicais mais difundidos, como a concertina e o cavaquinho.
As diferenças residem mais no canto, que aqui não acompanha esta evolução quantitativa e tem uma regressão qualitativa. Não só no canto ao desafio, naturalmente mais difícil, mas até no simples canto das velhas canções tradicionais. Não fora o cantar da Serra de Arga e já estávamos no ponto zero.
Na minha infância havia os cantadores profanos e aqueles outros, cujas referências que faziam às escrituras pressupunham haver neles alguma cultura de seminário. Estes cantadores davam um toque mais sério para aquilo que não pode ser brejeirice gratuita.
E havia grupos de cantadeiras habituadas a cantar no campo, enquanto executavam os trabalhos agrícolas, e que, acompanhadas às vezes por uma só concertina, já velha e fraca, ainda assim conseguiam encher a atmosfera de um canto sublime. Cantava-se muito pelos caminhos.
Como não tenho jeito para cantar, aqui deixo o desafio a outros porque é necessário vontade, saber e voz para levar adiante uma verdadeira recuperação da genuinidade das nossas cantorias, em especial de desafio. Enquanto vamos guardando o pouco que ainda temos.
A noite já corre para a madrugada e nós vamos assistir ao fogo de artifício, que, também por força da técnica, é bem diferente, agora mais esplendoroso que no passado, mais estridente nos seus petardos, mais luminoso nas suas cores.
Depois vem a noitada, um pouco de desvario, uma noite mais viva que em tempos idos, menos ingénua, mais participativa. Mas faltam os estabelecimentos abertos, o convívio mais familiar, os dançares de outrora, houvesse chuva ou frio.
O remate era um café de saco e chocolateira. O braseiro estava sempre bem vivo, pronto a ser reavivado a pedido dalgum cliente. Mas havia também um hidromel ou um bagaço puro daquele que aquece bem o estômago e o coração. Os mais fracos em qualquer lado procuram o seu agasalho numa velha manta ou cobertor.
Amanhã há mais. Com este ou com outro melhor remate. Com este ou outro melhor aconchego. Mas sempre com a ideia que o importante é o encontro e a partilha. E nada mais se pode exigir a alguém. Em cada momento, cada qual partilha só o que pode.