sexta-feira, 5 de maio de 2006

Sarrabulho, o manjar dos Deuses

1º. Dia – a matança

Do porco, suíno de espécie e bácoro de nascença, aproveita-se quase tudo. O sarrabulho ou sarrabulhada, se entendermos este vocábulo mais apropriado para designarmos este manjar digno dos Deuses, é como um teste ao sabor do dito.
O porco, porque se conservava com facilidade salgado, era, antes da invenção e divulgação da arca frigorífica, a dispensa do lavrador. Para adubar as batatas e couves, ia-se à salgadeira buscar um bocado de toucinho, um osso da costela ou ao fumeiro tirar uma chouriça, que o presunto era para mais tarde, para a Páscoa ou para a festa da aldeia.
Mas todo o lavrador que se prezava, antes de guardar estas economias, convidava os seus amigos para aquela tal sarrabulhada, da qual só sairiam quando estivessem tão satisfeitos como os amigos abades.
Mas alguns amigos leigos tinham que, no dia anterior, ajudar à matança. Tirado o porco do chiqueiro, prendíamo-lo por uma boa corda, estendia-se ao longo de um carro de vacas, no qual já se tinha um só fueiro, e enrolava-se a corda à sua volta para segurar bem o animal. E nós lá estávamos.
Espetada a faca apropriada no lugar devido, de modo a atingir ao de leve o coração, o sangue espicha abundantemente e apanha-se em alguidares de barro.
Algum do sangue vai para um alguidar onde coalhará pois se destina a fazer o chamado verde. O restante é recolhido num outro alguidar em que antecipadamente se pôs algum vinho tinto ou vinagre, sendo sempre mexido ao cair para precisamente não coalhar.
Morto o dito, pega-se num feixe de colmo ou carqueja, pega-se-lhe fogo e, com a extremidade a arder, há que lhe dar uma boa esfrega, que ele se é bom é sem pêlo e bem tostadinho.
Lava-se depois com sabão e raspa-se com pedaços de telha, mesmo de pedra ou facas mal afiadas para se lhe tirar da pele, das orelhas e dos pezunhos as impurezas que possam ter ficado.
Então todo o couro do porco é devidamente passado com uma salmoura de bom vinho tinto e alho, não esquecendo de se lhe cortar ao meio as orelhas e de lhe abrir os pezunhos, para melhor levarem o devido unguento.
Dá-se-lhe a volta para o pôr à feição dum faca bem afiada que, com a ajuda de um cutelo, de uma foice ou até de uma machada, lhe há-de por as tripas à mostra e abri-lo da cabeça ao rabo, para lhe tirar o fato.
Esta é a operação mais delicada, não vá alguma tripa rebentar e estragar o apetite a alguém mais delicado. Aberto o suficiente o animal, é-lhe retirado cuidadosamente o fato, desligando previamente as tripas e atando as suas extremidades.
Extrai-se primeiro o bucho e as tripas que são encaminhadas para a água corrente de modo a serem convenientemente lavadas e limpas para terem, também no sarrabulho, a sua utilidade.
Mas antes, desligam-se cuidadosamente as tripas umas das outras e retira-se o rodenho que vai ser usado para as chouriças de verde e para rojar e fazer pingue.
Em seguida tira-se de uma só vez a colada, conjunto das miudezas do porco constituídas pela língua, o coração, o fígado e o bofe ou pulmões, delícias preciosas que a seu modo hão-de acompanhar a nossa sarrabulhada. Os rins tirar-se-ão aqui também.
Tirado o fato completo, é cuidadosamente retirado, com a ajuda de uma concha, o sangue que se conservou sem coalhar na cavidade pulmonar do bicho e é junto ao restante ou conservado à parte, que há quem o aprecie em particular para o sarrabulho. Passa-se todo o sangue por um coador.
Convenientemente limpo, já sem entranhas, toma o peso ao animal, coloca-se numa velha e rija padiola, antigo instrumento de lavoura usado também para transportar erva ou mato.
Atravessa-se um dos fueiros do carro de perna a perna, preso no nervo anterior e passa-se-lhe uma corda. Em alternativa também se pode atar a corda directamente ao osso da bacia do animal. E lá vai ele, todo pimpão, para escorrer na adega durante a noite.
Em seguida puxa-se a corda e levanta-se o bicho segurando-o de cabeça para baixo no gancho apropriado do tecto da adega e junta-se-lhe a colada. É tarefa para uns homens, conforme o seu peso, mas porco que não tenha umas boas seis arrobas ainda é novato para estas andanças.
Decora-se então com uns ramos de loureiro, que mesmo na morte há que ter brio no bicho e não deixar que as moscas o conspurquem.
Entretanto as mulheres ou os homens, se os houver, já trataram de lavar devidamente o bucho e as tripas, retirando-se-lhes as imundices. As tripas são viradas do avesso e esfregadas numa pedra com sal e limão. Depois reviram-se novamente e deixam-se algum tempo a marinar com sal e limão para que se lhes saia algum cheiro que queira persistir.

1º. Dia – os preparos

Passados os maus cheiros, pica-se muito miudinhas várias cebolas, uns alhos, uns ramos de salsa e rodenho quanto baste. Tudo bem picado, juntam-se a estes elementos sal, pimenta, e algum sangue e mistura-se bem.
Ata-se uma ponta de uma tripa fina e a mistura atrás obtida é nela metida, apertando-se levemente a massa de modo a não forçar, que se não quer que a tripa rebente nessa ocasião, nem mais tarde ao cozer. Guardam-se então estas chouriças de verde porque estão quase prontas.
Deita-se uma quantidade substancial de farinha de milho com algum sal, pimenta e cominhos na maceira de amassar o pão e mistura-se bem. Enfarinham-se algumas tripas nessa mistura. Viram-se depois com a ajuda de uma varinha de loureiro. Já estão preparados os farinhotos.
Chouriças de verde, farinhotos e o bucho deita-se tudo junto para cozer numa panela com água já a ferver.
À farinha milha da maceira junta-se alguma farinha centeia, um pouco de cebola e salsa cortadas miudinhas, pimenta e cominhos e mistura-se bem. Junta-se-lhes água da panela que cozeu as chouriças, escaldando a farinha e amassando como quem faz pão.
À massa assim obtida junta-se sangue, amassando sempre. Obtida uma massa homogénea, enrola-se com as duas mãos em pequenos cilindros que se passam em farinha de milho seca e vão para cozerem na mesma panela em que se cozeram as chouriças. Estão prontas as belouras ou boletos.
O sangue coalhado, dito verde, que está num alguidar é cortado à faca e é introduzido com algum sal na água a ferver de uma outra panela. Para que este verde fique bem poroso, introduz-se um ferro, previamente em brasa, nessa água e mexe-se chamando pelo dito porco: russo, russo, russo …
(Esta será mesmo crendice, mas não faz mal a ninguém acreditar nela).
Estando pronto e devidamente cozido é tudo posto a arrefecer na maceira em cima de ramos de loureiro, e à espera das cozinheiras do dia seguinte.

2º. Dia – a sarrabulhada

Na manhã seguinte, bem cedo, há que descer o dito cujo para cima de uma mesa e passar à tarefa de separar as suas partes mais nobres. Primeiro decapita-se o bicho que a cabeça é a sua parte mais dura. Mais tarde divide-se em pelo menos duas partes iguais, com cada uma a sua orelha.
A seguir corta-se também ao meio o resto do animal com uma boa faca, um cutelo ou uma machada. São retirados os dois presuntos que vão direitinhos para a salgadeira. Retiram-se também as mãos, os chamados presuntos da pá, que podem ter o mesmo fim.
Em seguida desossa-se a carne que cobre as costelas e retiram-se o lombo e os lombelos. Se a fome já apertar e houver uma boa braseira já a fumegar, cortam-se umas fêveras, deita-se-lhes algum sal e põem-se a assar. Para matar o bicho, que a manhã ainda é grande, comem-se bem assadinhas com uns nacos de broa de milho e um verde branco para regar.
Depois é deixar as cozinheiras tirar aquilo que lhes aprouver, que o resto fica para fazer chouriças de carne ou vai para a salgadeira. Elas já tiveram também que fazer o seu trabalho. Ir ao galinheiro buscar uma boa galinha, de pele amarelinha, bem rechonchuda, que esteja a pôr ovos na ocasião e, claro, dar-lhe o mesmo fim.
O arroz de sarrabulho à boa maneira minhota leva a sua parte de pernante, de cornante e de foçante. Já temos o pernante e o foçante, o cornante é melhor ir ao talho: lerca, lombelo, óculo ou vazio grosso, também chamado fralda ou aba, ou simplesmente capa da costela resolvem o problema.
À dispensa vai-se buscar um bom chouriço de carne caseiro que se fez das fêveras que “sobraram” do sarrabulho da anterior matança do porco. E vamos para o lume, que vão sendo horas.
Numa boa panela aquece-se água e espera-se que ferva. Junta-se-lhe uma cebola espetada com cravinho, louro, sal, pimenta, salsa e, claro, as carnes: peito da galinha, a carne de vaca, parte da colada do porco, ossos de suão, chouriço de carne.
Estando tudo bem cozido retiram-se as carnes e desfiam-se todas, excepto a colada que vai ter, dentro do sarrabulho, outro fim. A água do cozido é coada para que não fiquem eventualmente fragmentos de ossos e restos dos condimentos.
Tempera-se com um pouco de noz moscada e deita-se-lhe o arroz carolino. Estando este quase cozido é que se lhe vão juntar as carnes desfiadas, o sangue, os cominhos e o sumo de limão. Rectifica-se o sal e os restantes temperos.
Para a rojoada corta-se carne fresca de fêvera de porco em quadrados, junta-se entrecosto em pedaços e tempera-se tudo com pimenta e pimentão-doce, sal, louro, alho e vinho branco. Faz-se esta marinada logo que possível para que a carne possa ficar umas horas a ganhar gosto.
Num forno põem-se batatas a assar com banha ou azeite, sal, pimenta e pimentão-doce, cebola, salsa e louro. No mesmo forno põem-se também umas castanhas, se for tempo delas, que depois de assadas se descascam.
Se não houver forno, as batatas são alouradas num tacho. Se só houverem castanhas congeladas, se estiverem lancetadas, põem-se a fritar num tacho cobertas de óleo. Noutro tacho com um pouco de banha e azeite bem quentes deita-se a marinada que estava a ganhar tempero e mexem-se os rojões repetidamente.
O fígado, o coração, o bucho, o verde e as belouras são cortados em fatias. Juntam-se às chouriças de verde e aos farinhotos para serem todos passados num tacho com banha ou azeite. Corta-se o boche em pedaços pequenos.
Decora-se uma travessa com os rojões, o entrecosto, as batatinhas, as castanhas, as fatias de fígado, o coração, o bucho e o verde, os pedaços de boche e as rodelas de belouras, as chouriças de verde e os farinhotos. Encima-se a decoração com umas rodelas de limão e salsa.
Numa terrina deita-se o arroz bem soltinho, acabado de cozer, e decora-se com uma rodela de limão e um molho de salsa. Come-se logo bem quente, antes que arrefeça. É de fartar, vilanagem!