sexta-feira, 8 de abril de 2011

Ideias, ondas, correntes

Sempre se deu um grande importância a ter ideias. Conseguir ter ideias originais nunca foi fácil. Porém tudo mudou nas últimas décadas. As ideias circulam agora por aí em todos os meios possíveis e imaginários e à distância de uma mão. Repentinamente ideias já velhas são enroupadas doutro modo e já parecem nascidas há pouco. A comunicabilidade aumentou exponencialmente. Hoje é tão fácil obter uma ideia como encontrar e meter no carrinho o objecto que se procura num supermercado numa qualquer esquina perto de si. Os meios de comunicação já não se preocupam em dar notícias, mas sim em espalhar ideias. As notícias também utilizam ideias, como é evidente, mas estas não são usadas com imparcialidade de modo a que nos transmitam uma imagem real. Há hoje um modo de descrever factos que tende sempre para o reforço de uma ideia pré-existente, o que não revela qualquer criatividade. Colocam-se na notícia ideias que circulam por aí, venham ou não a propósito, e dá-se assim uma interpretação e uma justificação dos factos que dispensam qualquer esforço intelectual adicional. O que interessa é ter umas ideias para despejar à mesa do café, da secretária ou nos encontros fortuitos que se nos deparam. Atrevemo-nos a pesar ideias só porque elas aparecem referidas na notícia. Atrevemo-nos a determinar o seu valor sem que no nosso mapeamento mental existam as noções básicas que enformam o problema em questão. Temos direito a pronunciarmo-nos sobre tudo aquilo que nos diz respeito é verdade. Não temos tempo para tirar todos os cursos do mundo que, teoricamente, nos possam habilitar a ter um pronunciamento acertado e assertivo sobre qualquer assunto que nos diga respeito. Mesmo com o perigo de errarmos, mesmo utilizando apenas as tais ideias que por aí se difundem, temos todo o direito de nos pronunciarmos. Essa forma de agir até tem uma vantagem. A realidade muda, novos acontecimentos ocorrem, novas opiniões se formam e desse modo estamos sempre prontos a recolher novas ideias sem curar de saber da sua compatibilidade com aquelas que antes tínhamos. Dispensamo-nos de qualquer esforço intelectual de elaboração dum discurso próprio e de assimilação coerente dessas ideias. Assim nunca chegamos a definir conceitos que nos possam ajudar a compreender a realidade e quaisquer ideias anteriores são facilmente descartáveis. Se necessário recorremos ao velho truque do “enganaram-nos”. Tal justifica o deitar fora todas as ideias que tínhamos coladas no nosso mapa mental para fazer parte do nosso argumentário do dia-a-dia e recolher aí outras. Hoje todo o candidato a manipulador e demagogo sabe que assim é e tenta utilizar os meios técnicos disponíveis para difundir as “suas” ideias. Estar em maioria nos orgãos de informação, conseguir dominar a agenda política, isto é, colocar lá os assuntos mais favoráveis e a sua visão mesmo que distorcida deles, ter os repetidores bastantes para levar as suas ideias a todos as camadas sociais, é o grande passo para aquela difusão de ideias elaboradas à medida. Para este efeito há regras próprias, porque o discurso não é imutável, é necessário começar de um modo e ir abrindo espaço à introdução daquelas ideias mais duras que realmente interessam à agenda escondida. Não interessam minimamente que as ideias sejam esclarecedoras, interessa sim que sejam colocadas num enquadramento sugestivo, de modo a encadeá-las, se possível, com outras já antes difundidas. A manipulação tem a ver com a lenta reorientação do sentido dessas ideias, com o seu lento reenquadramento, com uma subtil introdução num contexto adequado. A este fenómeno de uma sucessão de ideias concordantes e concomitantes designa-se por onda. Nós, os que nos submetemos às ondas, já não conseguimos ter o domínio total do nosso mapeamento mental. Do mesmo modo quem formou a onda e quem contribui para ela perde muitas vezes a capacidade de a reverter ou redireccionar. Normalmente só um embate brusco da realidade consegue destruir uma onda bem montada. Numa onda os conceitos adquirem uma configuração própria, no extremo a verdade pode ser a mentira. Desmontar a onda por via intelectual pode ser um esforço inglório porque implica um trabalho longo de análise de conceitos, da sua articulação, um desmontar da dinâmica social que lhe está subjacente. Montar uma onda contrária, capaz de vir a suplantar a que prevalecia anteriormente pode também não garantir o sucesso. Normalmente é a ocorrência de factos anómalos, imprevistos e negados por quem alimenta a onda em voga que pode levar a um revigoramento súbito de uma outra onda até aí inerte que pode inverter a relação de forças. Uma pequena onda que se forma em tempos mais desfavoráveis em oposição a uma outra maior tem possibilidades de marcar presença quando as condições se tornarem melhores. Quando tal não acontece, quando não aparece uma onda pronta a substituir a anterior, dizemos que ocorre o vazio. Como até quem beneficia com a grande onda dominante tem horror ao vazio incentiva sempre o nascimento de algum movimento de ideias contrário, alguma onda alternativa. No entanto não são as ondas que nos deviam interessar, mas sim as correntes de opinião e de pensamento necessárias para que uma comunidade projecte o seu futuro. As ondas são fenómenos passageiros, pouco estruturados e degenerativos. As correntes de opinião são fenómenos mais sólidos a que as pessoas se sentem vinculadas, em que as ideias têm um sentido preciso, que criam elos sociais. As correntes de pensamento são fenómenos mais vastos que permitem uma linha prolongada de actuação. Certas correntes podem-se tornar a prazo travões por desactualizadas, outras vezes remetem para aventureirismos despropositados. No entanto são as correntes de pensamento que permitem que se lute por ideais bem estruturados. Sem essa linha de actuação que possibilite o esforço colectivo não há progresso humano. A ansiedade actual deriva de estarmos sujeitos ao efeito das ondas e a não haver fortes correntes de pensamento.

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