sexta-feira, 22 de abril de 2011

É isto que eu não quero!

Estes tempos de exacerbada turbulência política são caracterizados por um mau uso da língua portuguesa que corrompe cérebros, uns atrás dos outros. Os problemas são sempre colocados na mesma forma simplista. Passa-se por cima das verdadeiras causas como gato sobre brasas. Vai-se imediatamente para as conclusões que, regra geral, se reduzem a um ataque com o máximo de agressividade verbal ao outro contendor político. Em vez de argumentos aduzem-se uns tantos termos de conteúdo abstracto como verdade, coerência, frontalidade, lealdade em contraponto com mentira, inconstância, hipocrisia, traição. Tudo conceitos distorcidos e fora de contexto com que se pretende uma pretensa elevação do discurso.
Usam-se termos que por si representam uma grande agressividade mas também se empregam alguns mais subtis que agridem mais que outros já muito gastos. Mas a agressividade também tem a ver com a construção verbal, com a forma como nos expressarmos. Até usando as mesmas palavras é possível construir frases distintas. Contam a ordem das palavras, a entoação e a veemência que lhes damos especialmente se usamos o modo oral, mas que são aspectos também transmissíveis na expressão escrita. Além disso pode tornar-se acintosa uma forma de dizer mais branda quando a repetimos até à exaustão. Uma das estratégias do combate político é conseguir o máximo possível de repetidores.
A forma faz parte integrante da agressividade. Por exemplo as expressões “Não é isto que eu quero” e “É isto que eu não quero”, aparentemente iguais, pressupõem uma continuidade do discurso diferente e, mesmo que o discurso acabe aqui, pressupõem significados diferentes. Se as usarmos na política optaremos decerto a segunda frase por mais gravosa. Efectivamente quando eu digo “É isto que eu não quero” estou a ser peremptório, a afirmar expressamente que “isto”, seja o que for de que se trate, é coisa que está fora do meu pensamento aceitar, comprar, sujeitar-me a. As hipóteses podem ser muitas, mas aquela que passa por aceitar “isto” está colocada fora de questão.
Já se eu disser “Não é isto que eu quero” não sou suficientemente veemente, não afasto em absoluto a aceitação “disto”. Só digo que, não sendo “isto” que coloco como primeira escolha, pode vir a ser a opção viável e aceitável. Pois com este sentido de tolerância e versatilidade nunca seria adoptada no nosso discurso político. Quem a usasse neste sentido seria tido por titubeante, cheio de incertezas, quando não de receio ou medo. No nosso discurso de homens decididos e cheios de certezas, não entram frases tão pouco assertivas. Temos que ser duros, agressivos, impiedosos. O “não” tem que estar bem junto ao “quero” para que seja clara a sua anulação. O “não” é em política o termo mais usado.
Além do curto-circuito argumentativo esta construção verbal visa os mesmos objectivos. Escolhem-se as expressões mais fortes, mais contundentes, pelo que hoje já se não conversa com quem tenha ideias diferentes. A palavra está hoje prenhe de ódio, por mais doces que nos mostremos. Estamos repletos de esquemas mentais perversos que transportam tudo para a zona negra do nosso espírito. O apelo a valores abstractos, o acinte posto nas palavras, a repetição são a parte mais visível do mau uso das possibilidades da linguagem. Mas afinal cada qual só responde como pode porque a não resposta é a morte imediata.
Há preguiça em quem aceita estes esquemas, há astúcia em quem os constrói. Muitos são esquemas anacrónicos, foram incutidos no nosso pensamento pelo salazarismo. São de fácil reprodução. Transmitem-se de geração para geração. Os radicais propuseram lavagens ao cérebro e todas falharam. Limparam-se os dados, mas não se limpou o modo de pensar. A assimilação dos esquemas mentais já testados é mais imediata. Não se construíram os instrumentos intelectuais que possibilitariam outra forma de pensar.
Não nos devemos conformar, mas a realidade é que o pensamento dominante é o pensar “pequeno”. Somos dominados pelas expectativas e pelos interesses e, para este efeito, até é irrelevante distinguirmos entre estas duas categorias mentais. Para simplificar referimo-nos normalmente a interesses como aqueles factores que condicionam o nosso comportamento. È na convenção do respeito pelos interesses de todos que assenta a democracia. Quem não respeita esta convenção que tem como consequência o facto de um homem valer um voto, também está pronta a patrocinar as tais lavagens ao cérebro e a fracassar.
Porém aceitar a defesa dos interesses de todos não é aceitar a forma de pensar dominante. Felizmente que é cada vez menor a fobia em relação a quem pensa diferente. Há uns tempos quem pensasse diferente era logo acusado de pretender pôr em causa os interesses alheios. Se as expectativas e interesses pessoais, grupais ou de qualquer ordem menor do que a comunidade no seu todo, podem ser postos em cheque pela alteração da forma de pensar, o objectivo principal é levar as pessoas a aceitar ver para além do seu mundo restrito e possam contribuir para a formação de uma nova e solidária vontade colectiva.
Em parte os políticos são vítimas do imediatismo, da necessidade de ter respostas prontas para adversários contumazes. No entanto não é caso para serem desculpabilizados. Nem nos devemos iludir por aqueles que aparecem com discursos aparentemente limpos e que chamam a atenção para o pensamento mais titubeante doutros. A destreza no discurso político pode ser importante mas não é decisiva. O mais importante é o interesse em jogo, a compatibilidade entre os nossos próprios valores, os que são embandeirados pelos políticos e aqueles que na verdade estão por detrás da sua actuação

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