sexta-feira, 30 de julho de 2010

O murete da vergonha

A Câmara Municipal de Ponte de Lima entendeu construir, sem adoptar qualquer procedimento legal, um murete que barbaramente intersecta a Ponte Medieval. Alguém diz que será despicienda a opinião de uns tantos curiosos, entre os quais me posso incluir. Se a questão extravasa em muito a nossa competência, a ponte é um monumento nacional, ela fere a nossa sensibilidade e temos todo o direito de o manifestar. O facto de haver autoridades competentes para fiscalizar actos desta natureza não proíbe as chamadas forças de bloqueio de chamarem a atenção para os mesmos. Além disso quem pretender produzir efeitos políticos está no seu pleníssimo direito. As forças de bloqueio que pretendem bloquear a crítica é que não são aceitáveis, antes desprezíveis.
Quando pretendemos discorrer sobre a actividade pública devemos ser indiferentes a causar ou não prejuízo ao poder instituído. Estando numa sociedade livre, não necessitamos de recorrer a subterfúgios. Aliás devemos ser claros e manifestarmos com frontalidade a nossa oposição, quando for caso disso. Um assunto da importância deste murete merece um reparo em forma ao que tentaram fazer ou, para quem o entenda fazer, um aplauso àquilo que ia ser feito. É a imagem da Vila que está em causa, como Vila respeitadora do seu próprio património ou como Vila que está disposta a pôr em causa todo o seu passado para encontrar soluções para os problemas do presente.
Também concordemos em que um acto praticado por um edil camarário não tem a natureza doutro acto praticado por um varredor ou por um feirante. Um vereador pode e deve ser mais responsável e por esse motivo é natural que se sujeite a ataques mais virulentos. Venham ou não esses ataques na sequência de outros, para quem não está interessado em jogos políticos, cada acto tem que ser visto pelo seu próprio valor. Se houver quem pense que actos destes são suficientes para justificar a perca de um mandato também está no seu direito, afinal atrás deste erro outro virá, não estamos perante pessoas que facilmente enveredem por outro caminho, que tenham a humildade suficiente para recuar.
O murete é da responsabilidade de quem o mandou executar, mas também de quem estes anos todos se tem calado perante a criação de um poder quase absoluto. Podemos dizer que nada acontece por acaso, antes tem uma lógica própria. Mas a responsabilidade pelo murete também é do arquitecto, do engenheiro ou doutro qualquer técnico que tenha elaborado o projecto para o arranjo urbanístico que envolve a Ponte Medieval. No entanto não esperemos que haja projecto nem que a Câmara explique o seu modo de tomar decisões e os métodos adoptados na sua acção. A Lei já não é muito exigente para os autarcas e estes desprezam as forças de bloqueio.
A questão do murete tem repercussões que vão muito para além da efémera vida de todos nós. Mais de seiscentos anos contemplam aquelas pedras e deveríamos ter um maior respeito para com elas. Sempre se permitiu que lá cravassem espias e segurassem cordas das tendas dos feirantes, mas nunca ninguém se achou ofendido. Porém ao surgirem uns buracos feitos por feirantes nas pedras novas do chão da Alameda de S. João logo se manifestou a justa indignação. É gente que só sabe olhar para o chão, assim olhasse também para o ar e para as barbaridades que gente com mais responsabilidade vai executando.
A questão do murete é de uma gravidade inqualificável e não faz da Câmara vítima senão de si própria. É uma vergonha que pretendam atribuir a quem faz críticas à Câmara o epíteto de marginal que vegeta ou de possuidor de uma tara persecutória, qual atento caçador de imperfeições. A Câmara tem beneficiado todos estes anos da falta de civismo, de uma anestesia colectiva, de uma propaganda que avassala a oposição. A Câmara tem todo o direito de querer tirar proveito dos erros dos seus adversários, mas não se pode melindrar por estes quererem tirar as suas ilações das suas próprias asneiras.
Ninguém elege um Câmara para que os seus membros façam o que lhes dá na real gana, assim como a oposição não existe para vegetar. Afinal todos temos de nos justificar permanentemente. Isso é muito mais importante do que andar a criticar o comportamento alheio, muito menos com a leviandade com que muitos o fazem. Todas as ofensas gratuitas a quem detém o poder ou a quem diverge da opinião do “senhor” são de rejeitar pelas mentes sadias que não aceitam forças de bloqueio costumeiras ou não, de qualquer natureza. Esta de começar qualquer defesa com um ataque usando terminologia assassina é deplorável.
Não podemos em simultâneo dizer que há razões para critica, mas que não há o direito de criticar. A critica é mesmo uma busca permanente e a sensibilidade apura-se com o tempo, mas não o deixando passar acriticamente. Nem todos podemos aprender fazendo, pelo que a maioria tem que aprender criticando. E mesmo quem faz deve ser o seu primeiro crítico. Não há pessoas infalíveis, muito menos aquelas que não tem qualquer preparação técnica para decidir. No caso da actuação das nossas autarquias todos gostaríamos de não ter grandes críticas a fazer. Mas a modéstia também não ficaria nada mal nos autarcas.
Eu assumo ser daqueles que fazem críticas permanentemente. Mas faço-o, não a visar as pessoas, mas essencialmente os métodos. Quando estes não são os indicados levam quase sempre a resultados desastrosos. Se as pessoas são atingidas, são-no de forma indirecta, mas isso será inevitável. Mas isso também só acontece porque o dar demasiado poder a uma pessoa é daqueles métodos que quase sempre leva ao desastre. As coisas tornam-se ainda mais graves quando as pessoas têm experiência do exercício dum poder autoritário, mas não têm experiência de um método democrático de tomada de decisões.
O autoritarismo é um vício, mas essencialmente uma falta de método. Quem age de modo arbitrário não é necessariamente para ter gozo nisso, antes é por uma limitação qualquer, diferente da mera falta de discernimento. Acontece que quem sobe demasiado alto para as suas possibilidades se sente deslumbrado e ofuscado por tanta luz. A imodéstia não é boa conselheira. A frontalidade e a verticalidade não abundam no meio e por esse motivo muitos se sentem desresponsabilizados de as assumir. Uma opinião pública sadia exigiria muito mais.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

A necessidade de uma nova aliança

Desde Marx que se passou a pensar ser a história humana uma luta entre o trabalho e os detentores dos meios de produção, os possuidores do capital. Estes, independentemente da sua origem, encontraram sempre várias maneiras de justificar a sua posse, para além da primordial violência. Além disso os capitalistas sempre se viram a si próprios como iguais, mas na realidade são cada vez mais evidentes as diferenças entre as várias formas possíveis de utilizar o capital, cada vez mais nítido o papel de cada um no chamado mercado.
Já tem surgido conflitos entre as várias formas de ser capitalista, mas não de forma suficiente para criar uma separação esclarecedora que seria benéfica para aqueles que vêm no capital uma forma de promover o desenvolvimento a favor de toda a sociedade. Esta situação coloca novos problemas do lado do trabalho, hoje mais consciente de que necessita de uma aliança com o capital inovador e promotor de iniciativas empresariais, mas que não pode deixar que o limitem a mais uma força do mercado. O trabalho é a razão de todo o valor.
Tradicionalmente os que estavam do lado do trabalho sempre viram no capital uma forma de exploração e procuraram obstar a ela, em especial aqueles que não tinham quaisquer meios de subsistência. O objectivo último dos trabalhadores, definido pelos teóricos marxistas, seria organizarem-se para produzir só para si e para a sociedade e não para sustentar classes parasitárias ou para a acumulação capitalista. Entretanto todas as tentativas feitas para concretizar essa ideia falharam.
Anteriormente à industrialização, nas sociedades tradicionais, praticamente não havia acumulação porque os bens tinham uma renda garantida, mas não a suficiente para permitir a aquisição de outros bens. A riqueza fundiária adquiria-se pela violência e não pela compra. Só as sociedades mais ricas conseguiram uma razoável acumulação nessa era pré-industrial. Isto permitiu-lhes obras grandiosas, mas que não produziam quaisquer rendas aos seus promotores.
A acumulação capitalista é característica da sociedade industrial, o que pressupõe que a subsistência é garantida por um número limitado de pessoas, disponibilizando-se assim uma reserva de mão de obra para produzir outros bens e uns tantos fora desse espaço de necessidade, que puderam mesmo prescindir da renda de bens fundiários e se assenhoram da mais valia incorporada nos bens produzidos pela máquina industrial, em última instancia à custa do trabalho.
Parte do valor dessa mais valia conseguida na produção é usada pelos capitalistas na sua subsistência, no supérfluo e outra parte na aquisição de novos bens rentáveis, num processo de acumulação sucessiva. Se este tipo de desenvolvimento capitalista até levou à melhoria das condições de vida dos trabalhadores, mais levou à melhoria de vida dos capitalistas e a uma acumulação extraordinária de capital, como nunca antes se vira.
O aumento do capital levou também a uma disponibilidade deste para fins não produtivos e à alteração da natureza das crises próprias do capitalismo. Nos primórdios do marxismo haviam crises na economia quando havia excessos de produção para a capacidade aquisitiva. Neste estado de maturação do capitalismo as crises derivam do inverso, da inexistência de bens produtivos em que seja possível aplicar todo o capital acumulado.
O sistema financeiro bem procura inventar aplicações para o dinheiro existente, retirando-se do seu papel de intermediário activo para um papel passivo, para não ter responsabilidades directas. Cada vez mais o sistema financeiro alicia as pessoas para aplicações em fundos constituídos por títulos de divida doutras instituições, acções e produtos de que não pode garantir a rentabilidade, deixando assim quem aplica o dinheiro a ver o seu valor dependente directamente de factores estranhos à acção do próprio intermediário.
O actual sistema capitalista está orientado para a rentabilidade abstracta, se assim se pode dizer, do dinheiro e não para a rentabilidade do trabalho e do capital que nele investe, o capital industrial. Durante um certo tempo isso foi possível, porém com o tempo foram enxugando os meios de obter a rentabilidade necessária para que se possa dizer que vai conseguindo obter os seus objectivos de modo não fraudulento. Na verdade não é credível que todos consigam aceder aos produtos que dêem rentabilidade. Também por isso o ataque às dividas soberanas porque essa é uma forma de obter alguma rentabilidade extra, emprestando dinheiro a Países em estado de necessidade.
Se um País não pode emitir moeda, ou se, mesmo podendo, tem uma dívida contraída em moeda estrangeira, tem dificuldade em recorrer a empréstimos para suprir as suas carências e torna-se vulnerável à chantagem destinada a aumentar a rentabilidade do dinheiro. Os Estados deixaram de poder recorrer à guerra para se financiarem ou para anular as suas dívidas. Os Estados ainda não sabem lidar com esta poderosa força que é o dinheiro sem dono visível.
Nos domínios da economia o capital financeiro tem grande mobilidade e tem uma circulação cada vez mais livre em todo o mundo. Por sua vez o capital industrial está cada vez mais prisioneiro e ainda passou a ter que suportar parte dos rendimentos do capital financeiro. O capital industrial está limitado a repercutir os seus custos sobre os preços dos seus produtos e/ou sobre os preços do trabalho e por isso só tem como saída a deslocalização, à procura de mais fácil produção. Por vezes até parece que, na sua voracidade incontrolada, o capital financeiro vai matar o capital industrial.
O trabalho tem que procurar novas alianças com o capital com cara e com nome, que reconhece o seu valor, pese embora muitas vezes a cara que apresenta não seja muito apropriada e o nome levante muitas dúvidas. Essas alianças só serão possíveis porque parte do capital, o capital industrial e aquele que está repartido pelas classes intermédias, já é vítima da voracidade do capital financeiro que está na mão dos que manobram os cordéis do sistema. Este já consegue causar prejuízos àqueles. Os Estados não têm que se preocupar com a rentabilidade de um capital abstracto, antes tem que definir estratégias que associem o trabalho e o capital industrial na construção do futuro.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Que Viva Saramago!

Há encontros que não se solicitam, mas também se não rejeitam, Houvera eu de me encontrar, não me encontrando, com quem veio ao meu encontro, fisicamente não vindo, antes escrevendo aquilo que não houvera sido escrito, senão dito algures ou imaginado por quem sobre Deus sempre se interrogou, pese embora n’Ele não acredite, e até rejeite como Ele nos é apresentado, outra forma ainda Deus não encontrou de se manifestar senão pelo testemunho de outros homens como nós, a um dos quais, Jesus Cristo, a Igreja dá lugar destacado, que viveu entre nós, sendo e não sendo como nós, de nós se demarcando, purificado pelo baptismo que também nos deixou, terão as águas sido entretanto contaminadas, e de quem Saramago se apresenta como descrente, Anti mesmo, não tanto pelo que ele se atribuiu, artes de mensageiro com acesso directo à fonte de todas as coisas, visíveis e invisíveis, não foi ele capaz de manter a glória da sua Igreja, não a defendendo dessa cambada que, pelos tempos fora, se tem banqueteado á sua sombra, tomado conta das suas cadeiras, dos bastões, das coroas e doutros símbolos dum poder que Jesus Cristo nunca teve, nem foi tentado a ter, não se sabe que vaidade leva estas figuras a apresentarem-se faustosamente como representantes de quem morreu na cruz, e a darem tão má imagem de Cristo e de Deus, a quererem somente lugares de destaque entre os poderosos deste mundo, para disfarçar dizem que o seu mundo é outro, Saramago diz que as chaves, se as houvesse, estariam em fracas mãos.
Saramago está entre aqueles que da Lei da Morte se foi libertando, Posto que posterior a Camões, e não sabemos ao certo a sentença deste, mas é de crer que ele o receberá lá entre os Imortais, Saramago só nos deixou as suas cinzas, assim sendo não vai ter lugar no Panteão Nacional, neste só recebem gente de carne e osso, não se discute o seu estado, não sei onde isto está escrito, decerto que um Lara qualquer o há-de descobrir, Numa Terra de tantos salamaleques, tantas dobraduras de joelhos, tantos beija-mãos, não é de crer que Saramago tenha passado desta para a outra banda sem a devida nota de culpa com que há-de ser apresentado a julgamento final, que para já, por obra e graça das testemunhas abonatórias da sua má conduta que abundam por estas bandas, irá decerto ficar por uns séculos em Banho Maria, que outros neste mundo também vão ficando, uns presos, outros com pulseira electrónica, outros sem outra marca que aquela que lhes atormenta a consciência e não sabem quando será o seu julgamento, quando se livrarão dos esbirros que os acusam, Vai que Saramago também não ajudou nada a simplificar as coisas, nem uma demarcação da ditadura do proletariado, com que se entusiasmou até há pouco, ao menos que o tivesse feito depois da queda do muro de Berlim, após o que muitos abriram os olhos, ele veio a dar algumas marteladas na ferradura, mas lá foi ajudando a espetar bem os pregos que hão-de continuar a trazer boa parte deste povo agarrado a velhas e ultrapassadas ideias, sejam de direita ou dita esquerda, nada ajudando a vencer o neo-liberalismo triunfante, que este é que se aproveita, e Marx não virá cá, nem Saramago acreditaria, rever as suas doutrinas, para combater o domínio do capital sem dono doutro modo, o proletariado de hoje esvaiu-se.
Contradições há em todo o lado, e Saramago empenhou-se bem em encontrá-las nos Evangelhos, no procedimento de Reis e Sacerdotes, descrevendo o ambiente hipócrita em que a maioria dos poderosos viveria, usando uma ironia a vários níveis subtil, arma eficaz de quem não se deixa enrolar pelo discurso de poderosos de todos os calibres, A ironia é sempre uma barreira para aqueles que são incapazes de partilhar os mesmos valores de Humanidade, que Saramago os tinha, mesmo que não os vejamos pelos mesmos critérios, Saramago irónico não é o mesmo que Saramago justiceiro, aplicador implacável da ditadura do proletariado aos escribas do DN, os jornalistas eram e ainda continuam a ser vulneráveis à manipulação de informação, falta saber se Saramago foi algoz ou vítima, transferiu-se, abandonou a luta de classes, deixou a imprensa como campo privilegiado de luta das muitas forças que no mundo se digladiam, e tais forças são possuidoras de muita violência, senão não eram forças, aqui a parte lúdica só está nas últimas páginas, seja o soduku ou as palavras cruzadas, Umas forças manifestam-se, e até se vangloriam, outras há que se escondem, enquanto não estão em condições de desferir golpes fatais, os golpes de Saramago não o foram, a ditadura ficou por implementar, chegou para que nos fartássemos da teoria que diz que a violência é conforme àqueles a quem serve, maléfica se vinda doutra parte, prodigiosa se do nosso lado, ora a pintam de vermelho ora de azul, afinal o nosso caminho tem que ser outro, a violência é tanto mais nefasta quanto mais gratuita for, os critérios clarificam a violência, não deixam de ser contestáveis, no entanto o mundo vau avançando com estes contributos contraditórios, a luta de ideias em que Saramago se envolve ajuda, não sabemos quando se avaliará o contributo que cada um lhe dá, o de Saramago está dado, questione-se ou não a justiça dos seus critérios de aplicação da violência que Deus nos colocou em mãos, porém ele contestou outras violências até chamou à Bíblia um manual de maus costumes, também nos pôs a voar na passarola, esta avaliamos nós com alta nota, que o seu brilho literário suplanta em muito o papel que lhe coube desempenhar na vida profissional, Na verdade nós temos sempre dois lados, que nem sempre os podemos mostrar em simultâneo, se não que passe uns anos para que se dilua na memória alheia aquilo que era do domínio da necessidade, e portanto nos possa vir a envergonhar, feita pensamento, feita teoria, mas que dela nos faz prisioneiros, que não se iludam aqueles que se dizem livres e são escravos de si mesmos, da sua carne e dos seus ossos, que aqueles que nos prometeram a libertação, se esta só vem com a morte, é fácil prometer aquilo que não estão obrigados a cumprir, que Saramago preferiu a Imortalidade libertadora à Eternidade castradora.
Que Saramago viva na Imortalidade!

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Precisamos de vender, mas não vendamos a alma

O País precisa de vender. O País tem que apostar na produção de bens transaccionáveis. O País virou-se para o consumo desmiolado com o pretexto de que os outros consumem mais do que nós, mas nem produz o que consome. Depois produzimos coisas que se não vendem e aparentemente não nos dão qualquer vantagem, como as auto-estradas. A maioria dos serviços não se vende além fronteiras, a não ser que emigremos. Há uma imensidade de sectores da economia que não servem este propósito de venda de algo ao estrangeiro, que é aquilo de que nós precisamos como de pão para a boca.
Estas afirmações assim feitas, sem que com elas se pretenda tirar outras conclusões, são verdadeiras. No entanto não o são se a intenção de quem as profere é ocultar outras verdades. E neste ponto nós temos essa qualidade inata de exímios ocultadores. Acreditamos que certas afirmações bombásticas são capazes de impedir que se coloquem perspectivas realistas e que se siga uma lógica correcta de pensamento. Há quem queira ocultar que o investimento é necessário e que se não tivéssemos auto-estradas estaríamos pior.
É verdade, há necessidade de exportarmos mais e de substituir algumas importações, mas não extrapolemos de imediato para outros domínios. Coloquemos já o problema de saber por onde começar, como se fará a escolha. Em princípio o dilema pôr-se-á entre exportações com mais valias tecnologias ou com pouca ou nenhuma tecnologia. Estas seriam as mais vantajosas para a produção de emprego, as primeiras trariam mais valor mas seriam irrelevantes no ataque ao desemprego.
Há uns anos atrás não haveria economistas sensatos que dissessem que a aposta não passaria pela primeira opção. Só essa seria capaz de nos pôr a competir com as economias mais avançadas e de nos fornecer mais valor acrescentado. As indústrias de trabalho intensivo estariam destinadas há muito a serem transferidas para o terceiro mundo. E foram. Só que o desenvolvimento entretanto verificado não foi suficiente para arranjar emprego às pessoas dispensadas daquelas indústrias.
Para cúmulo a grande maioria dessas pessoas são de meia idade e transferidas nas últimas décadas do sector primário da agricultura, sem preparação especial, sem empregabilidade nos sectores de ponta que, para espanto dos mais crédulos, também zarpam para o terceiro mundo, menos ignorante do que muitos pensavam. Na teoria temos duas opções, na prática nem tanto. Na realidade estamos entre duas espadas e não temos solução para vencer quaisquer delas.
Estamos entre o combate ao deficit e o combate ao desemprego. Se os senhores do dinheiro não fossem tão radicais diminuiriam a pressão sobre a solução do deficit, mas não parece ser essa a sua intenção. Se os empregados não fossem tão exigentes aceitariam um trabalho qualquer em qualquer condição, mas parece que a sua dignidade lhes não permite isso. Tudo tem limites e não sendo admissíveis salários dezenas de vezes superiores a outros, os discursos morais têm que ser repensados. As disparidades na economia dificultam-nos o raciocínio.
O Estado tem mais armas para combater o deficit do que para combater directamente o desemprego. Em grande medida só se pode dedicar ao segundo combate depois de ter sucesso no primeiro. Na perspectiva do combate ao deficit assume particular relevância o aumento das exportações seja de que natureza for. Mas preferencialmente de mercadorias com alto valor acrescentado. Também será importante a diminuição das importações, em especial no sector energético, por substituição da energia fóssil importada pela energia renovável de produção nacional. Mas não é assim que de modo significativo combateremos o desemprego.
A conversão energética é mesmo um dos pontos seguros numa estratégia consistente, além da aposta nos produtos tecnologicamente mais avançados. Estas são verdades não ocultáveis no momento presente. É uma aposta que tem que ser feita, mesmo que produza pouco efeito no combate ao desemprego. Na realidade essa aposta não é suficiente para definir uma estratégia global capaz de incluir também o combate ao desemprego nas suas ideias mestras.
A quem poderemos nós entregar a tarefa árdua de definir com mais precisão essa estratégia global que o País sempre deve ter para sucesso da sua população e orientação de empresários, economistas, políticos e outros responsáveis que se sentem sem rumo e sem ânimo a executar tarefas rotineiras e algumas já sem sentido? Sem inverter a lógica do combate os deficits, o do Estado e o da economia nacional, algo tem que ser feito para combater o desemprego e algo se terá que fazer para que os investimentos estimulem a economia.
As novas regras em preparação para controlar a posse e a utilização do dinheiro também vão condicionar as nossas opções. No entanto parece definitivamente perdida a independência do capital industrial perante o capital financeiro, mais rentável e volátil. A desregulamentação suicida foi uma cedência ao capital financeiro. A interferência deste no domínio do trabalho e da produção levou à procura do máximo de rentabilidade e a um desequilíbrio na estrutura económica. Em tudo passou a haver competição, esqueceu-se a colaboração, a confiança e a cooperação.
O País precisa de trabalho, mas não a qualquer preço. O valor acrescentado tem que contribuir para os trabalhadores de forma digna, para o capital de forma justa, para o Estado de forma equilibrada de modo a poder proporcionar benefício social. Se o valor acrescentado não cumpre estes três objectivos então o trabalho pode ser um logro. Uma estratégia viável não pode passar por vender a qualquer preço, trabalhar sem dignidade, investir sem mérito produtivo.
O País precisa de gente sensata, não de vendedores de ilusões, de incendiários, de experimentalistas e aventureiros. Se um pouco de ilusão é necessário para chegar à Índia, nunca ninguém pensou em lá chegar de canoa. Chegou-se lá após estudos feitos, experiências devidamente fundamentadas e arrojo nas alturas próprias. Nunca precisamos de vender a alma para realizar tantos feitos históricos. Não a vendamos agora.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

O drama do desemprego em tempo de globalização

A substituição do trabalho humano pela força motriz no séc. XVIII e pela robótica no séc. XX foram processos que encheram de inquietação os trabalhadores, mas que a sociedade ocidental foi resolvendo sem grandes sobressaltos. Se uns até pensaram que a motorização e a automação iriam retirar ao homem o trabalho, libertando-o, outros alertaram para que a falta de postos de trabalho humano não seria uma benesse, mas antes um problema por contribuir para retirar dignidade ao homem.
Situação como aquela que se previu nessas ocasiões surgiu agora, não pelas vias mencionadas, que são etapas já assimiladas pela economia, antes por efeito de uma nova divisão internacional do trabalho resultado da globalização que fez transitar as indústrias de trabalho intensivo para países com uma população a viver ainda fora da economia mercantil.
A globalização foi aceite por todos por razões diversas. Uns pensaram que seria maneira de aumentar o seu mercado. Outros pensaram que seria a ocasião ideal para sermos solidários. Outros ainda agiram por razões políticas e que esta seria a melhor maneira de imprimir à política um caris de pensamento único. A verdade é que se entrou num caminho sem retrocesso e que a vozes dos chauvinistas se perdem cada vez mais.
Que a globalização traria desemprego era coisa também esperada. Que este problema assumisse o carácter de crise não estava na mente de todos. Porém alguns já a tinham por inevitável. Só não previram talvez que a crise fosse tão complexa. A forma pela qual os Estados nela estão envolvidos é nova e não tem soluções imediatas. Os Estados tidos até agora por garantes, passaram a devedores. Sucedeu agora uma imposição de adaptação a mudanças rápidas para as quais não estávamos preparados.
De repente uma direita estúpida, cretina mesmo, passou a chamar de malandros, parasitas a todos aqueles a quem a possibilidade de trabalhar não é dada. Acima de tudo uma parte substancial da população, sem qualquer culpa na situação de desemprego em que está, é misturada com franjas avessas ao trabalho. Hipocritamente a direita dirá que quem não deve não teme, que só se sente quem tem culpas, mas os efeitos perversos que pretende atingir com essa retórica repulsiva é a depreciação do trabalho, a tentativa de forçar a disponibilidade para trabalhar a quaisquer preço e em quaisquer condições.
Não é tolerável aos espíritos sãos, que se não deixam subornar pelas ideias provenientes de mentes perversas, que perante uma situação de desemprego continuado que se prevê vá perdurar durante muito tempo, se continue a insultar aqueles que reivindicam o direito a um trabalho digno. A ânsia capitalista de rentabilizar o dinheiro não procura novas bases económicas., tão só se vira para os velhos métodos de drenagem dos rendimentos de trabalho.
A excessiva acumulação capitalista e a diminuição dos juros levaram a um estado de esquizofrenia. Há um imenso capital a remunerar e não há criação de rendimentos suficientes para isso. Aumenta a pressão sobre o trabalho como fonte última e mais segura de produção de rendimentos. A descoberta de que o sistema capitalista pode gerar dinheiro sem ser a partir do trabalho saldou-se por um desastre ao levar o capital a devorar a sua própria cauda.
O sistema capitalista consegue fazer transitar de mãos para mãos avultadas verbas. Os lucros a que esses movimentos dão origem têm que vir de algum sistema produtivo ou em alternativa alguém terá que os perder. No fundo parece ser um procedimento suicida para o sistema, mas que é benéfico para alguém que individualmente o manipula. A função social do dinheiro não passa pela especulação, mas esta instalou-se como procedimento inultrapassável. No entanto a ambição máxima do capital é obter uma renda.
A economia mercantil libertou o capital e o trabalho em simultâneo. O dinheiro tornou-se essencial para pagar o trabalho, o que não acontecia com a renda. A economia capitalista veio a instituir a supremacia do capital financeiro sobre outras formas de capital menos móvel e por arrastamento sobre o trabalho. No entanto as várias formas de capital ainda se digladiam par obter o seu quinhão de rendimento. O trabalho libertou-se da renda exigida pelo capital fundiário para se subordinar directamente ao capital e à sua política de desemprego. Os trabalhadores pagavam a renda em espécie e eram pouco mais do que escravos. Agora recebem o salário em dinheiro, mas sem qualquer garantia de futuro.
A globalização é o tempo do capital financeiro e da subalternização absoluta do trabalho. Subitamente este ficou sem interlocutor identificado, visível, unitário. Sabia-se quem era o proprietário do capital fundiário, do capital industrial sob os seus vários modos, mas já não se conhecem os novos proprietários, os donos vagamente identificados ou as incógnitas do capital financeiro. O trabalho é cada vez mais pressionado sem que a direita, que ajuda a fazê-lo, e pensa ainda em termos de renda, saiba ao certo para quem ela própria trabalha.
Já que não podemos regressar aos velhos nacionalismos, e ainda bem, exige-se de nós uma atitude patriótica de defesa do nosso trabalho, da sua valorização, porque o capital já não é nosso. Só que não podemos esperar que o capital financeiro se condoa com a nossa situação e nos permita ter os postos de trabalho de que necessitamos. Para o trabalho era imensamente mais fácil lidar com o capital industrial, que tinha rosto. Agora não sabemos a quem nos dirigir, a quem nos queixarmos. A verdade é que antes nos querem no desemprego que a trabalhar por valores que, por via da nova divisão internacional do trabalho e da avidez do capital, se tornaram excessivos.