sexta-feira, 9 de julho de 2010

Precisamos de vender, mas não vendamos a alma

O País precisa de vender. O País tem que apostar na produção de bens transaccionáveis. O País virou-se para o consumo desmiolado com o pretexto de que os outros consumem mais do que nós, mas nem produz o que consome. Depois produzimos coisas que se não vendem e aparentemente não nos dão qualquer vantagem, como as auto-estradas. A maioria dos serviços não se vende além fronteiras, a não ser que emigremos. Há uma imensidade de sectores da economia que não servem este propósito de venda de algo ao estrangeiro, que é aquilo de que nós precisamos como de pão para a boca.
Estas afirmações assim feitas, sem que com elas se pretenda tirar outras conclusões, são verdadeiras. No entanto não o são se a intenção de quem as profere é ocultar outras verdades. E neste ponto nós temos essa qualidade inata de exímios ocultadores. Acreditamos que certas afirmações bombásticas são capazes de impedir que se coloquem perspectivas realistas e que se siga uma lógica correcta de pensamento. Há quem queira ocultar que o investimento é necessário e que se não tivéssemos auto-estradas estaríamos pior.
É verdade, há necessidade de exportarmos mais e de substituir algumas importações, mas não extrapolemos de imediato para outros domínios. Coloquemos já o problema de saber por onde começar, como se fará a escolha. Em princípio o dilema pôr-se-á entre exportações com mais valias tecnologias ou com pouca ou nenhuma tecnologia. Estas seriam as mais vantajosas para a produção de emprego, as primeiras trariam mais valor mas seriam irrelevantes no ataque ao desemprego.
Há uns anos atrás não haveria economistas sensatos que dissessem que a aposta não passaria pela primeira opção. Só essa seria capaz de nos pôr a competir com as economias mais avançadas e de nos fornecer mais valor acrescentado. As indústrias de trabalho intensivo estariam destinadas há muito a serem transferidas para o terceiro mundo. E foram. Só que o desenvolvimento entretanto verificado não foi suficiente para arranjar emprego às pessoas dispensadas daquelas indústrias.
Para cúmulo a grande maioria dessas pessoas são de meia idade e transferidas nas últimas décadas do sector primário da agricultura, sem preparação especial, sem empregabilidade nos sectores de ponta que, para espanto dos mais crédulos, também zarpam para o terceiro mundo, menos ignorante do que muitos pensavam. Na teoria temos duas opções, na prática nem tanto. Na realidade estamos entre duas espadas e não temos solução para vencer quaisquer delas.
Estamos entre o combate ao deficit e o combate ao desemprego. Se os senhores do dinheiro não fossem tão radicais diminuiriam a pressão sobre a solução do deficit, mas não parece ser essa a sua intenção. Se os empregados não fossem tão exigentes aceitariam um trabalho qualquer em qualquer condição, mas parece que a sua dignidade lhes não permite isso. Tudo tem limites e não sendo admissíveis salários dezenas de vezes superiores a outros, os discursos morais têm que ser repensados. As disparidades na economia dificultam-nos o raciocínio.
O Estado tem mais armas para combater o deficit do que para combater directamente o desemprego. Em grande medida só se pode dedicar ao segundo combate depois de ter sucesso no primeiro. Na perspectiva do combate ao deficit assume particular relevância o aumento das exportações seja de que natureza for. Mas preferencialmente de mercadorias com alto valor acrescentado. Também será importante a diminuição das importações, em especial no sector energético, por substituição da energia fóssil importada pela energia renovável de produção nacional. Mas não é assim que de modo significativo combateremos o desemprego.
A conversão energética é mesmo um dos pontos seguros numa estratégia consistente, além da aposta nos produtos tecnologicamente mais avançados. Estas são verdades não ocultáveis no momento presente. É uma aposta que tem que ser feita, mesmo que produza pouco efeito no combate ao desemprego. Na realidade essa aposta não é suficiente para definir uma estratégia global capaz de incluir também o combate ao desemprego nas suas ideias mestras.
A quem poderemos nós entregar a tarefa árdua de definir com mais precisão essa estratégia global que o País sempre deve ter para sucesso da sua população e orientação de empresários, economistas, políticos e outros responsáveis que se sentem sem rumo e sem ânimo a executar tarefas rotineiras e algumas já sem sentido? Sem inverter a lógica do combate os deficits, o do Estado e o da economia nacional, algo tem que ser feito para combater o desemprego e algo se terá que fazer para que os investimentos estimulem a economia.
As novas regras em preparação para controlar a posse e a utilização do dinheiro também vão condicionar as nossas opções. No entanto parece definitivamente perdida a independência do capital industrial perante o capital financeiro, mais rentável e volátil. A desregulamentação suicida foi uma cedência ao capital financeiro. A interferência deste no domínio do trabalho e da produção levou à procura do máximo de rentabilidade e a um desequilíbrio na estrutura económica. Em tudo passou a haver competição, esqueceu-se a colaboração, a confiança e a cooperação.
O País precisa de trabalho, mas não a qualquer preço. O valor acrescentado tem que contribuir para os trabalhadores de forma digna, para o capital de forma justa, para o Estado de forma equilibrada de modo a poder proporcionar benefício social. Se o valor acrescentado não cumpre estes três objectivos então o trabalho pode ser um logro. Uma estratégia viável não pode passar por vender a qualquer preço, trabalhar sem dignidade, investir sem mérito produtivo.
O País precisa de gente sensata, não de vendedores de ilusões, de incendiários, de experimentalistas e aventureiros. Se um pouco de ilusão é necessário para chegar à Índia, nunca ninguém pensou em lá chegar de canoa. Chegou-se lá após estudos feitos, experiências devidamente fundamentadas e arrojo nas alturas próprias. Nunca precisamos de vender a alma para realizar tantos feitos históricos. Não a vendamos agora.

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