sexta-feira, 31 de julho de 2009

A hipoteca do futuro

Possivelmente um dia todos veremos o mundo da mesma maneira. Tal afirmação pode ser um absurdo, tanto como pode vir a ter algo de verdadeiro. Efectivamente ver o mundo da mesma maneira não é estarmos de acordo sobre tudo, percorrermos todos o mesmo percurso, procedermos de forma a copiar todos os outros. É apenas um compromisso pessoal leal.
Ver o mundo da mesma maneira nem é sequer termos todos igual responsabilidade porque temos diferentes funções, somos escolhidos ou assumimos essas funções na maioria dos casos sem a intervenção directa ou sequer indirecta da maioria dos outros. Mas é fazermos com que os nossos erros não comprometam os outros e não nos escondermos debaixo de qualquer guarda-chuva pessoal ou colectivo.
Temos que, desde logo, afastar dos nossos propósitos qualquer tentativa de obter comportamentos uniformes. A diversidade será maior numas sociedades do que noutras, mas o caminho não é regressar a uma hipotética unicidade que possa ter existido, antes chegar a uma situação em que a diversidade já nada tenha a ver com hipotéticas origens sociais.
A diversidade é já hoje aceite, incentivada, benéfica em todos os aspectos da vida, desde o social ao profissional e toda a vida prática. Diferente é a desigualdade, entendida no seu aspecto mais grave que é a diferença de base, de nascença até àquela que deriva da utilização de meios desonestos, mesmo que a aparente legalidade esconda uma evidente ilegitimidade.
Só teremos uma visão única do mundo quando não houver um litígio permanente entre a legalidade e a legitimidade. Interesses suspeitos ainda fazem que o legal muitas vezes não seja legítimo e por vezes o que seria legítimo ainda não é legal. É essencial a semelhança entre estas duas visões para resolvermos muitos dos conflitos que nos percorrem o nosso espírito. Ao agravar-se a diferença está em causa a razoabilidade e a condescendência no nosso relacionamento com os outros.
Chegaremos talvez ao ideal no dia em que ao olhar para o outro não necessitemos de saber quanto ele ganha, em que as nossas diferentes opções de vida se não devem às diferenças de rendimentos, em que cada um gerirá os seus proventos e não necessitará de tirar proveito de mim, nem eu olharei com concupiscência para o que houver no seu bolso.
O dinheiro, como elemento representativo, simboliza o princípio e o fim de toda a desigualdade, mas é essencial como elemento de troca. O problema é o seu entesouramento. Com dinheiro apostamos efectivamente e sem subterfúgios na competição com o objectivo de obter vantagens e não termos que apostar todos os dias na sobrevivência. Claro que mesmo sem dinheiro os animais conseguem formas de domínio.
Obviar a todas as formas de desigualdade congénitas é colocar a partilha onde há a exclusividade, a colaboração onde há competição. Não podemos acabar com o dinheiro, mas também não necessitamos de acabar com ele desde que fixemos regras precisas para o seu uso e entesouramento. Tal não passa por acabar com a bolsa ou por outras ideias retrógradas, mas por recentrar a riqueza sobre o trabalho.
A riqueza que assenta na posse de bens (titulados ou não), ou de dinheiro é temporária e mesmo ilusória. Os bens de utilidade imediata são riqueza efectiva mas são poucos, a maioria exige uma ou várias conversões para que se obtenha um bem de uso e isso implica a aplicação de trabalho numa ou em mais fases de transformação. Esse trabalho é que é a verdadeira mais valia. É irrelevante o valor atribuído aos bens naturais. Por outro lado os títulos representam no geral combinações de bens de características e com incorporação de trabalho diversos.
O preço dos bens originais anteriores ao trabalho é determinado pela guerra ou por outra qualquer forma de domínio e pode ser resolúvel por via pacífica como o prova a constituição da Comissão Europeia do Carvão e do Aço que, formada depois do fim da 2ª guerra mundial, veio resolver uma questão secular de conflito permanente. Resolvido este, concluímos que só o trabalho vem a dar valor à matéria bruta. O trabalho livre porque a escravatura é apropriação semelhante à dos bens naturais.
O dinheiro entesourado é uma hipoteca sobre o futuro. Sem futuro nada vale e o futuro, tendo de pagar tanto para sustentar o presente, derrapando sobre a ávida riqueza de hoje um juro tão usurário, mais tarde ou mais cedo impõe uma retirada de valor à hipoteca. O futuro é capaz de retirar credibilidade aos valores creditados sobre ele. Os títulos que representam esse futuro são facilmente desvalorizados.
Depreciam-se os bens que se esperava fossem os geradores da riqueza futura. Deprecia-se o próprio dinheiro se não tiver um Estado forte que o segure como referência. Quanto menos expectativas menos rentabilidade futura é esperada e mais sobrecarga se exerce sobre o trabalho de hoje. Este, não podendo corresponder, faz diminuir a renda significativamente.
Mas, sendo hoje o dinheiro o valor de referência, não se deprecia por ele mesmo, caindo a depreciação sobre os bens por serem geradores de menor valia. Se o trabalho envolvido no processo de transformação desses bens não aceita ser depreciado então é o capital que vê reduzidos os seus rendimentos. Se o dinheiro se depreciasse também o trabalho o seria.
Em cada momento não há distinção entre capital industrial e capital financeiro porque as transferências são fáceis. Foi a conversão do capital industrial em títulos que o tornou ainda mais vulnerável do que o capital financeiro. Este pode reduzir a sua rentabilidade mas tenderá a desequilibrar em seu favor qualquer partilha da hipoteca sobre o futuro. Todo o capital financeiro depende do trabalho futuro.

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