sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

O casamento vai virar casaco multiusos?

O casamento não pode ser visto só pelo espectáculo que normalmente o envolve, pelo cerimonial e pelos circunstancialismos efémeros que o enroupam. E infelizmente o que o distingue de outras uniões é hoje pouco mais do que isso. O casamento, sendo um contrato público, não pode deixar de ser um compromisso a respeitar e que comporta um quadro uniforme de referências. Referências que possam ser compreendidas por todos. O casamento visa assegurar a estabilidade e exige para ele próprio uma noção estável.
O casamento nasceu como uma necessidade de organização social, como forma de resolver a promiscuidade sexual, a “fatalidade” do nascimento de filhos, a responsabilidade pela manutenção da família. Hoje, que o casamento, como instituição, está em crise, alargar o seu conceito não parece ser o melhor caminho. No entanto é precisamente esse facto da crise do casamento que faz com muitos o vejam como um facto sem importância que pode facilmente ser apropriado por pessoas que, em princípio, com ele nada teriam.
Os argumentos a favor do casamento já são poucos, há outras formas de garantir os mesmos objectivos. Os casais recorrem cada vez menos ao casamento por eventualmente este complicar a separação, sem dar contrapartidas significativas. Se o casamento assegura maior estabilidade não é estímulo suficiente para muitos e há pessoas que até vivem melhor sem o aperto das responsabilidades, sem constrangimentos sociais.
No entanto aparecem agora novos pretendentes ao casamento. Não para garantir uma dada prática sexual, não para melhor enquadrar eventuais filhos numa instituição estável, não para instituir formas de relacionamento responsável, mas sim para efeito da obtenção de um dado estatuto social, que os direitos já estão ou poderiam estar disponíveis de outra forma qualquer. Nada impede qualquer prática sexual, qualquer um pode ter filhos separadamente e ser responsável por eles, os compromissos são pessoais e uma questão de seriedade.
Falamos, como é evidente, dos homossexuais, da sua pretensão de terem um estatuto igual ao de qualquer casal heterossexual. Longe vão os tempos em que reclamavam direitos, inclusive em que reclamavam o direito de passarem despercebidos, de serem ignorados mesmo. Trata-se agora da reclamação de um direito positivo, de querer avançar no sentido de tornar igual qualquer tipo de prática sexual, que já nenhuma será característica de qualquer grupo. Já não querem só passar ignorados, querem fazer parte da organização social.
Será justo alargarmos aos homossexuais o estatuto do casamento? A tradição será um dos elementos a ter em conta, no sentido de que há conveniência em haver uma certa constança no significado da terminologia corrente. As referências comuns parecem ser demasiado marcadas para que nos permitamos fazer uma generalização que vai afastar algumas delas do que passará a ser o significado corrente do casamento. Não parece admissível que o casamento passe a valer para seres com características diferentes daqueles que é tradicional ver nele.
Uma sociedade criativa logo construiria um estatuto novo, uma nova parceria, que servisse os homossexuais e que tudo fosse claro para a população. Nele se poderia incluir direitos e deveres, permissões e obrigações, tudo o que se julgasse adequado a duas pessoas que eventualmente até poderiam ter um passado em que já tenham usufruído do estatuto do casamento e transferissem para esse novo estatuto parte das responsabilidades já contraídas com o estatuto anterior. O problema parece estar mais na escolha da palavra com a suficiente “dignidade” para substituir o casamento.
No entanto os homossexuais são perseverantes, querem mesmo poder ascender ao estatuto do casamento, que direitos iguais ser-lhes-iam garantidos por outra qualquer via. Os homossexuais não desistem porque constituem um dos poucos lobbies organizados em Portugal e tem membros influentes em várias classes profissionais, em especial entre os chamados trabalhadores intelectuais. Na imprensa, na política, nos meios artísticos, os homossexuais revelam-se um grupo destemido e aguerrido. E existem fortes lobbies noutros Países. Também nesta questão o que a Europa aceita teremos que aceitar.
O objectivo dos homossexuais coincide, embora com motivação oposta, com o objectivo daqueles que se lhe opõem de forma absoluta e não lhes reconhecem direitos específicos. Ao levar a discussão para o domínio do casamento e colocando as coisas em termos de casamento ou nada estamos a atrofiar o âmbito que uma discussão deste tipo justificaria. Não se coloca assim a possibilidade de atribuir outro nome a este enlace com características próprias, nem se coloca outra qualquer forma de resolver o problema e quando assim é só podemos dizer sim ou não à solução proposta, o que é pouco. Cá por mim nestes termos abstenho-me.
Numa sociedade que já não põe entraves a levar à prática a atracção sexual pelo mesmo sexo, cheira a falso puritanismo estar a colocar entraves à legalização, via contrato público, de uma relação monogâmica que entre os seus objectivos também terá a salvaguarda da sua estabilidade e da sua segurança. Será despropositado pôr em referendo uma questão de direito. Poder-se-ia colocar a questão das obrigações a exigir a quem estiver interessado nesse enlace, mas quando tão pouco se exige no casamento tradicional haverá pouco a questionar.
O melhor é mesmo referendar o nome. Não é questão de somenos e da linguagem não se conhece outro proprietário que não seja o povo. Aí eu votaria não. Todos lucraremos em que a linguagem seja clara e não leve a equívocos. Lançar a confusão com a utilização de um termo que passaria a ser ambivalente só serve a quem quer retirar direitos ou a quem quer abusivamente um estatuto que historicamente lhe não cabe. O casamento não pode ser capote para corpos com atracções tão antagónicas.

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