sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Não é a justiça que pode moralizar o negócio

Há na história uma atitude fundamentalista contra o negócio, atribuindo-lhe a fonte de todos os vícios, de todos os males sociais. Outros mais comedidos atacam tão só a promiscuidade entre política e o negócio, deixando a este um papel fundamental na dinâmica económica. Outros preocupam-se em especial com o facto da justiça não desempenhar o papel que acham que deveria ter na moralização do negócio. Os poucos fundamentalistas de sinal contrário, aqueles que a isso se atrevem, são contra a política porque tudo se devia deixar a cargo do negócio.
Ressalve-se no entanto que esta última é a ideia dominante que transparece, se tomarmos em consideração apenas a espuma dos dias, aquilo que dizem todos aqueles que persistem em querer o povo ignaro. A sabedoria geral já engloba a ideia de que temos que viver com a política e com o negócio, que cada um destes mundos deve ter regras próprias, a sua ligação deve ser transparente e a justiça deve encarregar-se das violações aos seus preceitos. Não se pode é ser governante e negociante ao mesmo tempo e usando os mesmos instrumentos.
O caso do sucateiro Manuel Godinho será no futuro um bom caso de estudo porque comporta muitos dos cambiantes possíveis na violação de regras de conduta nos negócios. Mas também dará para testar a conformidade das Leis com uma prática negocial concorrencial e da prática dos agentes da justiça com as Leis vigentes. Não haverá dúvidas que este caso envolve em si mesmo vários casos que passam pela corrupção de funcionários públicos e de empregados de empresas, pelo suborno de gestores e pelo uso da influência de políticos.
Na economia só há crime se alguém é prejudicado para que outrem seja beneficiado. Não se pode aplicar à economia uma ética abstracta, uma construção legislativa que essencialmente não tenha em conta a natureza dos valores envolvidos. A distorção da concorrência, o prejuízo do Estado, o roubo são os crimes que se convertem em valor. O que está em causa é sempre o prejuízo dum terceiro concorrente, do Estado enquanto angariador de impostos ou dum parceiro de negócio ludibriado na sua relação.
Manuel Godinho fez intervir nos seus negócios todos os agentes possíveis, uns com influência directa, outros com indirecta. Na relação com o Estado temos os funcionários públicos, em particular os das finanças, que, caso tenham cometido erros, mesmo que não tivessem recebido nada por isso, devem pagar por tal. Trata-se de falhas calculadas, de omissões seleccionadas, de procedimentos incorrectamente executados. Há depois outros agentes, como os do trânsito, subornados para facilitarem a movimentação das viaturas.
Do mesmo modo os fiéis de armazém que deixam levantar mais sucata do que a que consta das respectivas guias está a lesar a sua empresa. Os gestores que favorecem alguém vendendo barato e dessa forma prejudicam a empresa em que trabalham, façam-no por negligência ou dolo, devem ser igualmente penalizados. A questão é que dos produtos de que se trata não existe no geral valor contabilístico nas empresas e os sucateiros andam todos ao mesmo. Favorecer um deles ao mesmo preço só pode ser lesivo de uma sã concorrência.
Os políticos que eventualmente indiquem um contacto fazem o que qualquer pessoa faria, aquele que tenta influenciar esse contacto e tira disso proveito já comete um crime pela ética dominante. Porém se recebe uma gratificação não solicitada é questionável se cometerá crime ou se é só o Estado que saiu lesado no pagamento de imposto. Até porque aqui ninguém sai directamente lesado, ainda estamos em fase pré negocial.
O lobbying é uma actividade que vai mais longe do que a simples facilitação de contactos e está regulamentada em muitos países. Em Portugal não está devidamente enquadrada em termos legais. Caso contrário poderíamos saber quem a ela se poderia dedicar. No entanto, e mediante as suas prerrogativas, parece que não estará longe das possibilidades dos advogados. Já para os políticos é uma imoralidade. Não são eleitos ou nomeados por outros eleitos para fazer negócio.
Também a legalidade dos actos praticados pelos homens de negócio tem de estar clara, embora muitos tentem lançar a confusão dizendo que todos os seus actos visam o lucro da empresa, às vezes a sua sobrevivência, a dinamização da economia, o investimento produtivo. Mas na verdade é um erro acometer contra o enriquecimento ilícito quando há tantas dúvidas sobre a forma correcta de enriquecer. A diferença entre o engenho e o vício é difícil de estabelecer. A corrupção activa que parte de um homem de negócio parece-nos menos lesivo do que se partisse dos agentes contrários, quais abutres à espera da presa.
Todos enaltecemos os empreendedores, mas em simultâneo lançamos dúvidas sobre a forma como amealharam tanto financiamento. Questionar a sua legalidade é entrar no jogo do sistema justicialista tão em voga. E neste sistema, como no sistema legal de justiça, são mais os que passam na malha do que aqueles que são apanhados. Talvez a justiça ande atrás do caso exemplar que sirva para atemorizar os que querem seguir caminhos estabelecidos à séculos. A justiça nunca é sistemática, só apanha uma minoria do peixe.
Aliás a justiça não tem outra pretensão que não seja esta. Muito mais eficaz é prevenir a injustiça. A justiça é pouco compatível com o empenho de quem quer vencer onde pode competir com os meios de que dispõe. A justiça é coisa de que se pode falar pouco quando há uma tão grande diferença de meios entre os protagonistas e há dependências comprometedoras. Um dos sítios onde o nosso sistema falha é no facto dos agentes do Estado serem fracos, porque o Estado é desleixado, criador de desigualdades, contraditor entre o incentivo e a caridade.
Quando alguém quer desenvolver um negócio necessita de arte e engenho e com sorte terá sucesso. Se quer chegar depressa aonde outros levam anos tem que utilizar todos os argumentos disponíveis. Porém isto contribui para dirigir demasiado os holofotes para si mesmo, o que terá sido o que aconteceu neste caso. Depois fazer esta mistura explosiva de mensageiros, facilitadores, encobridores, dissolutos parece ser um suicídio. Mas eu só condenaria o Sr. Godinho se ele para desenvolver o negócio tivesse recorrido ao incentivo ou à caridade do Estado. A justiça não vai moralizar o negócio. Só pode castigar os corrompidos.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

O justicialismo não favorece a verdadeira justiça

O justicialismo é uma doutrina muito divulgada que satisfaz sobremaneira os nossos espíritos vingativos e castigadores. Sendo de génese popular já subiu todos os degraus da inteligência nacional e deu origem a um sistema tão coerente como muitos outros, com alicerces na realidade que fazem inveja àqueles que nunca se firmaram e já caíram no esquecimento da maioria.
A doutrina é velha mas só agora se pode dizer bem implementada e com alguma eficácia. O sistema que corporiza esta doutrina conseguiu o apoio de amplas camadas populares e eruditas, umas autodidactas, outras formadas nas mais ilustres Universidades. Todos se renderam à forma expedita como o justicialismo averigua e condena, fazendo disto um espectáculo entusiasmante.
O sistema assenta na jurisprudência de que os orgãos de comunicação social são os fiéis depositários. São estes que possibilitarem a colocação em prática desta doutrina. Eles estão no centro nevrálgico porque passam por si o âmbito do sistema, os limites da sua acção, as penas a aplicar, as possibilidades de remissão e perdão. O sistema judicial é livre para acompanhar o sistema justicialista, mas se o não fizer este segue o seu caminho autónomo.
A averiguação dos factos faz-se de modo sério mas também de forma a rentabilizar o investimento feito. A comunicação social define os processos que são válidos para descobrir a verdade. Servem segredos de alcova, o coscuvilhar de toda a vida privada e pública, porque à partida nada está arredado de ter significado para um processo. O próprio sistema judicial dá com gosto o seu contributo para esta averiguação justicialista. O facto de todos poderem participar dá uma garantia acrescida de que nada escapará que tenha significado.
Também é na comunicação social que se define toda a matéria da acusação. Esta nunca pode pecar por defeito, antes que peque por excesso. Todos os contributos de todas as proveniências, desde alcoviteiras a delatores, são acrescentados de modo a traçar perfis psicológicos e sociológicos o mais condicentes com a realidade. Isto ajuda sobremaneira a recorrer àquela velha norma, não escrita como todas as outras, de que, se o acusado não confessa mas tem todas as características de quem era capaz de cometer um dado crime, é mais que provável que o tivesse feito. Condena-se segundo o “código” justicialista.
Aos acusados é dada o grande prazer de poderem falar para todas as rádios e televisões, jornais e revistas e até para os blogs mais na berra. A exposição pública tem desvantagens, mas também vantagens a explorar. E ao passo que ao comum dos mortais só são dados uns cinco minutos de glória, estes podem contar com um dia e na melhor das hipóteses com uma semana, até serem substituídos por outros e esquecidos. Há sempre um novo processo em gestação, a preparar-se para romper a casca do ovo e explodir no universo de algum.
Aos acusados cabe-lhes a tarefa gratificante, mesmo que já no anonimato, de desmontar a acusação, sem o que estarão condenados a suportar a vingança social. Nunca se livrarão de uma suspeição latente e sempre ávida de objecto, mas podem sempre atenuar a gravidade da acusação e arranjar algumas atenuantes, afinal também eles são vítimas sociais. Também eles têm que aprender a gerir as suas aparições nos média, não podem ser em excesso. A melhor cura é o tempo.
Mas o mais importante deste sistema é que ao primeiro rumor já todos os intervenientes estão condenados. A pena é para se aplicar logo e com a severidade exemplar, não se corra o risco de três semanas depois estar tudo esquecido. O sistema justicialista não é complacente com ninguém e quanto mais alto estiverem os acusados na escala social mais empenho existe em aplicar esta forma peculiar de justiça. Todos achamos que o sistema judicial, aquele que tem orgãos próprios, funcionários e juízes, age em sentido divergente com este.
O sistema justicialista formou-se, cresceu, está numa certa maturidade. Nasceu como uma forma de reagirmos e encontrarmos um paliativo para o real desleixo legal e prático que atribuímos ao sistema judicial. Corresponde a uma exigência de efeito imediato que este sistema não permite. Mesmo que se fique pelos efeitos psicológicos, não nos podem ser assacadas culpas de a realidade se não compadecer normalmente com os nossos desejos.
No sistema judicial andaram-se anos e anos a pensar como se haveriam de reforçar os direitos das pessoas. Legislou-se no sentido de diminuir as penas e de permitir toda a espécie de actos processuais que facilitem a defesa dos acusados. De súbito todos levam as mãos à cabeça e dizem que se exagerou, que agora só chega à barra dos tribunais quem quer, só é condenado quem permitir que o seja. Perante isto o sistema justicialista ganhou o protagonismo principal e contribui para desacreditar cada vez mais o sistema em que deveríamos acreditar.
O problema é que já não temos paciência, já não cedemos tempo nem espaço ao antigo sistema. Quando este necessita de alguma acção mais visível, quando se torna pública a existência dum processo, logo todas as pessoas, quase sem excepção, querem saber tudo sobre ele, para no sistema justicialista levantar um processo paralelo. Nisto reside o nosso erro de querermos emitir logo uma sentença. Podemos pugnar por melhor justiça, mas não podemos querer ser nós a aplicá-la, muito menos já.
O problema é também que o sistema de justiça se demite das suas obrigações. As informações passam para o sistema justicialista num conluio comprometedor. Quando seria necessário que todos respeitassem os actos judiciais, tal contribui para dar razão aos que pretender retirar o que resta de credibilidade às únicas pessoas capazes de aplicar uma justiça mais rápida e eficaz, menos comprometida e conspurcada por tarar sociais momentâneas, os juízes.
Os juízes podem queixar-se de que necessitavam de processos de actuação mais expeditos, de tipologias mais vastas, que lhes fosse dada a possibilidade de aplicarem uma justiça menos dependente da descrição pormenorizada do que é permitido e do que é proibido, uma justiça que atenda à verosimilhança dos actos, e que não permita que se invoque qualquer omissão da Lei. Os juízes podem queixar-se do seu medo, de, na dúvida, serem levados a não aplicar o rigor da Lei, mas tal sucede porque não vêm na sociedade apoio para fazerem o contrário. Mudar o sistema judicial? Se os juristas acham que se construiu um sistema muito bonito, com tanto floreado, vai-se deitar tudo abaixo? Deixe-se ficar e colabore-se com o triunfante sistema paralelo do justicialismo, parece pensar toda a gente.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

A nossa difícil relação com o poder – a nostalgia

Neste País tão cheio de gente nostálgica falar de nostalgia é terapêutico, se a análise for minimamente consistente. É normal que a pessoas guardem na memória e lhes sirva de referência aquilo que de bom ocorreu no seu passado. Só que o seu cultivo pode ser excessivo e assumir contornos de endeusamento, de modo a fazer que o próprio se esqueça de outros momentos importantes e, o que é pior, o leva a fechar os olhos àquilo que se vive hoje e é diferente.
A nostalgia dos bons momentos pode levar à rejeição ou aversão daquilo que no passado ou no presente está em contradição com esses momentos mais felizes. Nem sempre estamos preparados para aceitar o menos bom. Outras vezes colocamos mesmo no nosso tempo interior e em referência a um dado período um buraco negro atroz. Mas seria para nós benéfico se investigarmos a razão porque encontramos no nosso passado ocasiões em que vivemos situações medíocres ou mesmo desprezíveis.
Também o tempo colectivo nos deixa a nostalgia daqueles momentos de que nos deram conhecimento no tempo da escolaridade ou na propaganda do antigo regime. A própria forma como obtivemos notícia desse passado levou muitos de nós a renegá-lo agora ou pelo mesmo a desvalorizá-lo significativamente. E nada mais importante para a nossa própria higiene mental do que saber com a exactidão possível o real valor dum passado que tanta influência exerce sobre o nosso presente.
O facto de nos terem pintado um dado cenário edílico leva-nos a ter uma nostalgia dum tempo que afinal não vivemos, mas de que sentimos necessidade. Até porque o mesmo acontece com quem ganhou aversão a esse passado, que o apresenta como a justificação para todas as nossas carências actuais, para a nossa baixeza e mesquinhez, para a forma reles com que nos tratamos uns aos outros, para a nossa incapacidade de separamos o trigo do joio.
Já quanto ao tempo colectivo em que nós próprios participamos, que coincide com o nosso tempo individual, a ideia que sobre ele temos depende muito da valoração que damos à nossa própria acção. A abstracção com que conseguimos ver esse tempo colectivo depende muito de nós, da nossa formação, das nossas intenções, mas temos que se aceitar como perfeitamente humano que interpretemos o colectivo confundindo-o com o pessoal. Só que não é intelectualmente honesto.
A nostalgia reforça qualquer afirmação porque dá um cariz pessoal mesmo ao colectivo com a força que isso implica numa sociedade em que o individualismo prevalece. Esta visão do colectivo como uma emanação do pessoal é um grande erro se cultivada por preguiça intelectual, por economia sentimental. O facto de este tipo de vivência nos limitar a atenção ao presente e nos estreitar o caminho do futuro é subalternizado.
A nostalgia é um sentimento que aprisiona, que se reforça com a passividade, que aumenta com a desilusão, que elimina o voluntarismo, que corrói silenciosamente as energias necessárias a uma atitude positiva perante o futuro. Quando recordamos um momento passado, e quantas vezes o fazemos para obter informação que nos ajuda a perceber o presente, e a memória nos traz um sentimento é uma simplificação confrangedora. Se for a nostalgia é uma limitação comprometedora.
A nostalgia deixa-nos sem argumentos lógicos. É o resultado de uma apreciação subjectiva, perfeitamente datada e localizada em que o distanciamento entre nós e a realidade colectiva possivelmente não é o mesmo de agora. Havia muito menos poderes e salvo o da polícia política eram menos obsessivos. Porém os casos de nostalgia pessoal normalmente só são compreensíveis num determinado contexto. Aliás todos nós percebemos isto e temos períodos da nossa vida que apreciamos mais.
Para agravar esta maneira de ter memória do passado somos levados a definir nele períodos que requerem uma certa consolidação. O mais normal é aceitarmos a divisão culturalmente instalada com infância, adolescência, juventude, maioridade e outras subdivisões menores. Já quanto à memória do colectivo temos de aceitar as grandes divisões que a história nos impõe.
Há imensa gente a falar de uma qualquer nostalgia que sente de um poder particularmente benévolo com que conviveu ou cuja memória lhe enaltecem. E no geral não é por terem ficado mais pobres, por serem mais infelizes, por terem menos poder. Quem não viveu directamente pode ser vítima de efabulação mas não se pode ignorar que há pessoas que têm consciência de uma realidade vivida.
A nostalgia complica em muito a nossa relação com o poder porque este se dispersou, tem muitas mais fontes e exercesse em muitos mais domínios do que no passado. O poder como que nos persegue e imiscui-se em cada vez mais aspectos da nossa vida, em geral com as desculpas que nos quer defender, que não será decerto de extraterrestres, será dos outros que somos afinal nós mesmos. Caso evidente é o uso cinto de segurança.
Por muito que às vezes possamos entender que ambicionamos regressar a um poder paternal ou maternal, hábil em tornar ténues os poderes paralelos que outrora se exerciam, por mais poderes que nos vamos apercebendo que existem, o poder do dinheiro, das corporações, dos marginais, dos homossexuais, das seitas secretas e nem tanto, dos políticos, dos intermediários, do comércio por grosso, dos financeiros, de lobbies de toda a ordem, não nos podemos assustar e fugir à luta.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Uma despedida … até um dia destes!

Não é impunemente que nos vimos, embora muitas vezes esporadicamente, durante pelo menos vinte anos. Que se exerce o poder numa comunidade fechada, peculiarmente aberta ao mundo de forma que em cada momento só nos vissem por uma janela estreita e devidamente seleccionada. Isto é, sempre estivemos abertos ao mundo, mas por outras janelas que entretanto se foram fechando e somos agora vistos quase só por uma janela que Daniel Campelo abriu.
Daniel Campelo deixou marcas. Marcas naqueles que encontramos e naqueles que nos visitam e antes de nos verem já o viram a ele à janela. Também deixou marcas na paisagem, mas não tantas. Uma vez um casal passeava na Ponte Medieval e, antes de se me dirigirem, falavam um para o outro na obra que Campelo tinha feito ali mesmo, debaixo dos seus pés. Queriam saber se o rio alguma vez tinha passado naquela ponte, mas eu pedi-lhes desculpa e antes de lhes responder disse que a Ponte tinha mais de 600 anos e até o lajedo era anterior a Campelo. Campelo não tem culpa, mas até equívocos destes se criaram.
Daniel Campelo não criou uma nova comunidade, mas não há dúvida que assumiu o lugar de líder natural da comunidade existente. Marcou mesmo a nossa identidade e até quebrou uma certa resistência urbana à uniformidade. O bem geral é sempre um refúgio que serve aos políticos para se justificarem. Não há no entanto progresso sem ideias pessoais, a não ser que queiramos que elas se desenvolvam apenas lá fora e aqui todos tenhamos que aceitar o unanimismo. Atrevo-me a um abalanço geral mesmo reconhecendo que nem sempre acompanhei o seu desempenho com a mesma atenção.
A nossa relação com o poder nem sempre é fácil. E Daniel Campelo foi durante 16 anos a personalização do poder. Não há nada de acintoso nas críticas políticas que se lhe possam fazer. Se há algo de pessoal tem a ver com o gosto de cada um e também Daniel Campelo, por mais aceites que as suas ideias tenham sido nesta comunidade limiana, não pode exigir que todos gostem do que ele gosta. Assim na nossa relação com ele enquanto poder, houve momentos de euforia e de asfixia, de aproximação e evidente distanciamento.
Daniel Campelo entrou na gestão autárquica pela mão de Fernando Calheiros há vinte anos numa altura em que o cavaquismo estava no seu auge e ambicionava tudo levar à sua frente. Roubada uma vereação quase inteira ao CDS, o PSD lançou-se à conquista de uma Câmara na qual, aliás, sempre tinha estado a partilhar o poder e concitou contra si todas as outras forças políticas que se uniram, prescindindo da sua representação e elegeram o CDS que habilmente continuou a juntar a si uma vasta selecção de apoios de origem multipartidário.
As relações políticas de Daniel Campelo sempre foram melhores com o PS do que com o PSD e levaram aos célebres orçamentos do queijo limiano. Estes deram origem a episódios que, para o bem e para o mal, para o louvor e para o ridículo, levaram a um mediatismo nacional pouco habitual para um autarca. Para mim, maugrado a hipocrisia de muitos políticos, a imagem de Ponte de Lima ficou diminuída, afunilada. Só dirigindo os holofotes de imediato para jardins e velhos monumentos e esquecendo o restante, é que esta questão foi sendo esquecida.
Cada um sabe dos seus sentimentos pessoais mas eu sou amigo do mundo rural. Esquecendo a desgraçada vida dos antigos lavradores, agradava-me o antigo equilíbrio aqui existente. No entanto defender o ruralismo como Daniel Campelo o faz é um absurdo, de um conservadorismo atroz. A autarquia poderia ter feito muito mais para obviar aos aspectos negativos que o impacto do progresso alheio na nossa estrutura secular teve. Não chega fazer da defesa dos despojos uma teoria, o ruralismo. Até porque a nossa identidade já não é rural, embora tenha algo de rústico. Já só estamos plantados no ambiente rural.
A fábrica do queijo lutou para cá sobreviver mesmo sem leite, tal a incúria de todas as autoridades e o crime do corporativismo salazarista. A vida rural que assentava na pequena produção leiteira já havia levado a machadada definitiva por motivos de monopólio primeiro e depois económicos, higiénicos, de organização. Daniel Campelo apareceu como o defensor de um mundo rural já moribundo. Acho que foi a primeira mentira que fez pensar a Campelo que as mentiras também podem ser aproveitadas para obter efeitos políticos.
Melhor teria feito Daniel Campelo se tivesse comprado uma quinta e com pouco custo mantê-la a produzir segundo as práticas seculares. Era uma forma de preservar para a gente nova uma visão idílica do passado. Antes comprou quintas e quintas e manteve umas ao abandono, outras plantou-lhes jardins e subverteu todo e qualquer princípio de defesa da tradição. A capa de defensor do mundo rural não corresponde ao conteúdo.
Mas a defesa do ruralismo teve decerto outros intuitos de carácter político. Convém que se mantenha uma certa subserviência que está associada à ruralidade. Neste meio deste povoamento disperso e deste individualismo extremo, as exigências das pessoas são poucas e postas com moderação. Até os próprios autarcas se deixam contagiar por este ambiente pouco exigente. Mas há uma correspondência efectiva e um elogio a fazer em termos de exigência no que se refere à gestão financeira e patrimonial a partir de uma segura gestão corrente.
Permita-se-me um conselho: Quando se vê que muitos autarcas do Norte são chamados a exercer funções no Governo e pouco depois regressam ficamos apreensivos. Será que a gestão autárquica lhes fecha os horizontes, não estão preparados para verem além do seu quintal, da sua paróquia. Andará por aqui provincianismo, parolice, que pecado é este? Tendo Daniel Campelo a ambição de exercer um cargo com uma influência mais vasta, será que seguiria estes exemplos se a oportunidade lhe surgir? Esperemos que não. Um abraço amigo! Até sempre!