sexta-feira, 5 de junho de 2009

A nossa difícil relação com o poder – a partilha

Se a memória é o nosso grande suporte, se as expectativas são a nossa orientação, os sentimentos são elementos fundamentais na estruturação do nosso pensamento. Estes reflectem a nossa visão consolidada da realidade, mas também as influências que sofremos do meio em que vivemos, a nossa experiência de relação. Nós temos muitos sentimentos particulares, mas também sentimentos colectivos em número variável, uns partilhados outros não.
Há quem, para se não expor, não esteja disposto a partilhar os seus sentimentos, mesmo que estes sejam suficientemente genéricos para não comprometer. Em primeiro lugar porque a vida cria em nós alguns sentimentos contraditórios dificilmente destrinçáveis. Por outro lado sabemos que o mesmo contexto social não gera necessariamente os mesmos sentimentos em todas as pessoas. No entanto há pessoas que fazem opções e querem que os outros as partilhem, como se os seus sentimentos fossem os mais genuínos. Mas é o que acontece quando adoptamos sentimentos que só fazem sentido se partilhados.
As pessoas introvertidas por princípio não partilham. As extrovertidas fazem-na às vezes de forma desabrida. O problema surge quando ultrapassam o limite da liberdade alheia, mesmo que só no domínio da coacção moral sem atingir os extremos da violência. Como damos ao domínio político uma certa permissividade é por aí que confundimos o papel social de muitos sentimentos. Na verdade hoje faz-se muita política por via da coacção moral numa tentativa violenta de falsa partilha. Tal até leva a que pessoas extrovertidas de modo suficientemente comedido se tenham que retrair em ambientes sociais agressivos.
Os sentimentos que alimentamos comprometem-nos quando fazemos opções que encontram contextos sociais adversos nos quais não os podemos expor. Mas se desrespeitamos os sentimentos, tomando opções que os contradizem, criamos outro problema pessoal grave. O melhor caminho será sempre não nos sujeitarmos a ditaduras de maiorias ou de grupos sociais dominantes que pretendam radicalizar as diferenças entre as nossas posições, que pretendem criar fricções entre pessoas cujos sentimentos não confluem, mas que podem viver perfeitamente em comunidade. Só de um processo de compreensão mútua pode um dia surgir por processo intelectual o sentimento de partilha.
É do nosso processo de socialização que depende em muito a nossa capacidade de partilha de sentimentos mas também, se necessário, viver na diferença. A socialização não passa por visar a unanimidade a propósito de um qualquer sentimento mas por atingir o reconhecimento suficiente do grupo, da corrente de opinião, do sector cultural no qual nos achamos integrados. Ninguém se pode arrogar o direito de seleccionar em absoluto os sentimentos partilháveis, os valores genericamente aceites.
Dentro do processo de socialização a escolarização assume uma extrema importância. A escolarização permitiu a introdução na vivência das pessoas de novos e diversificados sentimentos. Os relacionamentos aumentaram e fazem-se em sentidos mais variados. As pessoas deixaram de ser vistas somente pelo seu carácter originário. A escolarização contribuiu ainda para que não seja possível caracterizar o nosso modo de ser por um só sentimento, para isso passamos a recorrer a vários em simultâneo.
Outro efeito da escolarização, mas também das novas condições de vida, é o progressivo abandono da exclusividade dos sentimentos recíprocos de natureza particular. Mas também há um outro efeito na maior vivência da vida colectiva e no aumento dos sentimentos partilhados. Estes deveriam levar a uma maior coesão social, o que só não acontece porque não se faz um esforço de cultivo do mais nobre dos sentimentos partilhados, que é a lealdade.
Partilhar sentimentos é partilhar poder. Numa sociedade tradicional o exercício do poder era mais evidente, os sentimentos mais incentivados eram os que reflectiam mais claramente as relações de poder e entre eles destaca-se a subserviência. Todos os sentimentos que se desenvolviam fora das relações de poder eram proibidos ou pouco tolerados. Fosse em relação ao poder familiar, fosse em relação ao poder laboral, havia de um lado dependência e do outro arbitrariedade. Não havia partilha de poder, não havia partilha de sentimentos.
Nos dias de hoje o poder é mais subtil, mais disperso, difuso mesmo, e é mais problemático encontrar os sentimentos mais apropriados à situação em que estamos envolvidos e interpretar, usando os sentimentos dos outros, a sua situação pessoal. A fartura dificulta e o tempo escasseia. Novos sentimentos proliferam quase sem paternidade e sem aceitação reconhecida. Além disso a nossa difícil relação com o poder traduz-se desde logo na nossa difícil relação com os sentimentos que ainda subsistem vindos da sociedade tradicional.
A escolarização também determinou uma maior diferenciação nos modos de vida e nos sentimentos das pessoas ao partir a sua vida em ciclos em vez de manter o percurso linear no qual um sentimento ora criado, era mantido, era adaptado a novas circunstâncias mas essencialmente a novas personagens e poderes. Antes faziam-se generalizações progressivas do poder familiar e tal permitia pensar num percurso linear para os sentimentos. Agora tenta-se subir escadas escalonadamente esgotando o usufruto de cada etapa.
Em vez de uma transição progressiva e lenta, a escolarização veio retirar as pessoas do exclusivo domínio familiar, até mesmo grupal, para que muitas vezes sozinhas façam frente aos vários poderes que na vida lhes vão surgindo, revelando assim também a diferente natureza destes e as diferentes formas de eles se afirmarem. No entanto a actual escolarização não chega para que as pessoas apostem decisivamente nos sentimentos partilhados em vez de optarem pela submissão humilhante ou pela rebeldia inconsequente.

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