sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Um bom vizinho é meio caminho

É uma ideia generalizada que a grande construção em altura, típica das grandes cidades, deu cabo das relações de vizinhança. Mas esta constatação é tão só o resultado de nós procurarmos fora de nós mesmos a justificação para todos os factos, inclusive para a existência ou para a eliminação dos sentimentos que vulgarmente nos animam.
Se houvesse vontade para tal, o facto de um prédio ter trinta andares decerto que não seria impeditivo de que se estabelecessem relações de vizinhança, pelo menos entre as pessoas dos andares mais próximos. Se recuarmos cinquenta anos veremos que nos prédios que já nessa altura existiam se estabeleciam relações diferentes das de hoje. A porteira conhecia todos e todos se conheciam entre si.
O crescimento dos prédios tem razões económicas e os mais calculistas dizem que os nossos sentimentos também as têm. Mas mesmo aceitando isso, tal não quer dizer que esses processos tenham uma conexão entre si. As mudanças nas relações de vizinhança têm origem na mudança da estrutura do tecido social, na alteração do cimento que dá consistência à sociedade. Nos prédios, seja qual for a altura, o cimento é o mesmo.
As relações de vizinhança ocupavam um lugar primordial nas relações humanas, quase sempre em importância logo a seguir às relações familiares. Até nas sociedades cujo tecido não era muito homogéneo todos procuravam fazer com que essas relações fossem positivas. Hoje estão relegadas para o final da lista, para o domínio do esporádico e perto mesmo do que é de evitar. Gerou-se um processo de criação de indiferença para com o vizinho, de ignorância do próximo.
As relações de vizinhança integram-se naquele grupo que hoje as pessoas entendem de relações de dependência e portanto rejeitam. Ninguém quer ser, nem sequer se quer mostrar dependente doutrem. Não se importam em perder o sentimento de segurança que derivava da união entre os vizinhos, sendo as pessoas cada vez mais favoráveis a um individualismo extremo suportado por um Estado forte e protector.
A vizinhança era o lugar por onde passava a construção de quase todas as outras relações que se estabeleciam entre as pessoas. Entendia-se que esse era um caminho seguro. Hoje essas relações começam, desenvolvem-se e acabam em domínios transversais que se diluem na sociedade, tem os seus pontos de maior concentração em novos centros de interesse que podem ser longínquos, morar na Internet, raramente na proximidade.
A escolha das relações que nos interessa desenvolver começa hoje num estado de ainda muita juventude e parte-se do princípio que elas podem assumir um carácter muito temporário. As relações de vizinhança são daquelas que, quando se estabelecem, há mais dificuldades e é mais doloroso rompê-las. Pelo que as pessoas entendem que o melhor é não investir muito nelas.
Outrora, além do empenho que a maioria das pessoas tinha em criar e manter boas relações, ao menos algumas, qualquer pessoa estranha, oriunda de outro meio, era absorvida ou, pelo menos, rapidamente se dava ao conhecimento e, num processo de assimilação com mais ou menos sucesso, também acabava por fazer parte integrante da comunidade residente.
Hoje estabeleceu-se um direito de reserva que, é bom que se diga, corresponde em muito à dificuldade de pessoas com percursos diversos e oriundas de diferentes meios têm de se darem a conhecer e de se abrirem aos outros. Hoje todos nós temos percursos com etapas que obedeceram a diferentes perspectivas, com expectativas satisfeitas ou desilusões aceites de modo desigual.
Igualmente temos perspectivas em relação ao futuro que passam muito mais por aqueles centros de interesses em que nós nos vamos ancorando. A maneira como encaramos a velhice também contribui para este alheamento em relação à vizinhança. Talvez quando lá chegarmos nos arrependamos mas também já estamos desiludidos sobre a hipótese de termos o apoio que outrora a família e a vizinhança emprestava aos velhos.
Quase todas as pessoas, mas em particular as que se sentem mais independentes, até por uma questão de gestão do tempo, tentam arrumar a questão e fecham-se à curiosidade alheia. Somos demasiados complexos, com interesses diversificados, cultivando relações precisas e praticamente objectivas desde o seu início. As pessoas podem-nos ser agradáveis, mas não como vizinhos.
As relações de vizinhança, pela generalidade e abertura a que normalmente estão associadas, são as primeiras a serem rejeitadas por se não enquadrarem naquelas mais selectivas que hoje privilegiamos. Esta selectividade entende-se também cada vez mais como dispensa de se estabelecerem relações cruzadas entre as pessoas, devido à inexistência de grupos homogéneos.
As relações de vizinhança de hoje parecem ser mais autênticas do que quaisquer outras. Elas não têm necessidade de hipocrisia e daí a sua aparente crueldade. Elas reflectem tão só toda a complexidade de que são constituídas as vidas individuais, em que o sentimento de partilha já não pode ser o que era. A desconfiança reinante na sociedade não é propícia a confiarmos em quem, por acaso, está em maior proximidade.
Ainda podemos fazer algo para quebrar esse gelo? A proximidade ainda é a melhor condição para estabelecer contactos com pessoas com as quais de outra forma nos não relacionaríamos. Acima de tudo podemos estabelecer todo o tipo de outras relações sociais, mas são as relações de vizinhança que mais dizem sobre o nosso carácter. Quem tem bom carácter é um bom vizinho. Quem o não tem …

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