sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

As nossas empresas, os “Call Center” e os espanhóis

Nos negócios, na vida económica, era hábito privilegiar determinados valores para servir de base à postura de cada interveniente. A boa condução do negócio dependia em última análise de garantias pessoais que muitas vezes não iam para além da palavra, do aperto de mão. E tanto chegava, a não ser que um cataclismo, uma guerra viesse baralhar tudo e tudo colocar na estaca zero.
O negociante apresentava-se com as suas duas faces, que ninguém se pode orgulhar de não as ter, unidas numa só cara. Quando o negociante se fazia representar por alguém, essa pessoa defendia por norma os mesmos princípios, tais eram as indicações que lhe eram dadas para não por em causa princípios quase universalmente aceites.
À medida que o negociante foi sendo substituído por sociedades e em particular por sociedades anónimas, esses rostos em que se viam duas faces mas em que se reconhecia uma só cara passaram a não ter traços definidos, a esconderem-se na sombra do anonimato. Hoje as grandes empresas têm as faces que forem precisas para que o negócio tenha sucesso.
Uma das faces de uma empresa actual é a do vendedor que tudo faz para cumprir os objectivos que lhe definirem, sem cuidar de fazer um negócio sério. Dá-se mesmo esse trabalho a indivíduos recrutados à peça nos chamados “Call Center” para chatearem a toda a hora a população indefesa, propondo os mais rocambolescos negócios em que eles querem passar por samaritanos para que nós não tenhamos dificuldades em ser passarinhos.
São negócios falaciosos que não envolvem grandes gastos para a empresa porque não tem necessidade sequer de mandar os seus vendedores porta a porta. É perfeitamente abusivo que se alterem contratos existentes através de uma simples conversa telefónica em que muitas vezes não fica sequer claramente expressa a vontade do cliente.
Todos os contratos que se estabelecem por esta via, sejam novos ou alterações a outros já existentes, tem sempre tantas cláusulas que nunca são todas bem explicadas às pessoas e tal facto só por si é suficiente quase sempre para retirar as vantagens com que o negócio é impreterivelmente apresentado. Prometem-se rebuçados mas para os incautos está guardado um sabor a fel.
Quando se dá por ela, que se caiu num negócio do conto do vigário, e se pretende corrigir a situação, a verdade é que isso normalmente se consegue sem grandes custos. Telefona-se e aparece já uma outra face, compreensiva em geral, pronta a ouvir, a responder e a responsabilizar-se pelos abusos cometidos. É uma atitude dúplice que se aproveita da ignorância alheia.
Se a trapaça pega a empresa fica a ganhar e para que ela ganhe é óbvio que alguém há-de perder. Se o logro é detectado a empresa ganha menos, o cidadão perde menos, mas passa por um mau momento de indisposição, que é ter sido enganado e para os mais sensíveis ver que tanta gente está a cada momento a ser vítima deste embuste.
As empresas desculpam-se com o excesso de concorrência, com o uso de outros meios ainda mais desonestos por parte de muitos competidores, com a perca de clientela e a diminuição dos lucros, com a falta de normas orientadoras nesta matéria, com o baixo custo da utilização do telefone, com a criação de emprego nos tais centros de chamadas, afinal tão simpáticos à inglesa.
As empresas desculpam-se mas isso é o mínimo que se pode fazer quando se tem uma cara com duas faces e se quer fazer de cada uma um rosto de um ser bicéfalo em que uma parte responde pelos erros da outra. Mas é também indesculpável que uma empresa não preze a unidade de todos os seus serviços, mesmo os contratados e não responda com uma só cara e a uma só voz.
O problema está em que as grandes empresas são cada vez maiores e cada vez mais absorventes em relação a toda a actividade económica. Aos monopólios antigos sucederam-se empresas com dificuldade de conviver em livre concorrência. Os consumidores estão cada vez mais dependentes de poderosas máquinas empresariais que tudo fazem para aumentar os seus proventos.
A promiscuidade que constitui a transferência de governantes para a administração das empresas e vice-versa leva ainda a uma suspeição maior daqueles que não possuem qualquer poder em relação à legitimidade de certos procedimentos que as empresas adoptam para terem sucesso na competição global. Embora o discurso seja sempre em defesa do consumidor há razões para crer que nem todos somos honestos.
Informalmente defende-se muito a ideia de que nós precisamos de grandes empresas, sólidas e lucrativas para concorrer, não a nível só português, mas pelo menos a nível ibérico. No entanto é de questionar se somos nós que temos de contribuir com pagamentos extras para este capitalismo selvagem.
Afinal é sempre o acenar com o medo dos espanhóis, homens sempre predispostos a fazer de nós uns serôdios sem ensino e sem cabeça para nos governarmos. Mas duvido que eles alguma vez quisessem pagar a nossa inoperância. A realidade é que, sem nunca gostarmos deles nos negócios, já é com eles que nós mais comerciamos. E afinal é só isso que eles querem.