sexta-feira, 9 de novembro de 2007

A pobreza de ontem, de hoje e … a do mundo real

Há dois aspectos com particular relevância na vivência humana: A sobrevivência física e o sentimento de segurança. Nestas duas vertentes gasta a política muito do seu esforço, que, aliás, nunca será demais.
Por força do desenvolvimento económico e civilizacional outras necessidades se têm acrescentado de modo a formar um todo em relação à satisfação do qual se define um índice de bem-estar. E também outros índices com parâmetros mais convencionais, a um dos quais se dá, um pouco subjectivamente, o nome de pobreza, melhor dizendo, de deficit económico.
Há uns anos atrás a ambição medianamente aceite pela população passava por não estar sujeito à fome e ter uma “casinha” para viver. Era uma expectativa comedida que tinha que ver com a efectiva situação de pobreza que então se vivia e era o mínimo considerado para abandonar essa situação. Ainda por cima um sentimento de segurança ajudava a colmatar aquele deficit.
O mal é que esse tal sentimento de segurança é que explica a sobrevivência do Estado Novo durante quase cinco décadas. A ditadura não garantiu qualquer situação de bem-estar permanente mas utilizou a seu favor a situação exterior em certos períodos para “justificar” a sua manutenção.
A força política exclusiva da altura tudo fazia para que a muito generalizada situação de deficit económico não fosse tida como situação de pobreza. Mas esta era tal que, em especial com o racionamento nos anos de guerra e nos maus anos agrícolas do período sequente, foram frequentes as situações de fome. Algumas situações posteriores foram um pouco mais amenizadas com ajuda internacional.
Pelo contrário, quem tinha as necessidades de sobrevivência garantidas, por beneficiar de um sentimento de segurança, já era considerado numa situação de riqueza. O dia a dia não revelava porém grande diferença, pelo que também os conflitos derivados de qualquer sentimento de inveja não eram frequentes.
As situações de pobreza, sempre mitigadas, e riqueza, sempre não ostensiva, interligavam-se num patamar muito baixo, sendo que esta última se atingia com apenas a posse de poucos hectares de terra ou de algum outro meio equivalente de produção. Toda a gente aceitava que houvessem uns mais pobres e outros mais ricos do que nós.
Hoje os objectivos mínimos das pessoas estão a um nível muito mais elevado e há uma grande confusão entre as situações de pobreza e as situações de falta de bem-estar. Ninguém num regime democrático tem por função acalmar as expectativas das pessoas, antes pelo contrário. Também os que estão em situação de riqueza não se coíbem de a exibir.
Não havendo tanto comedimento nas expectativas e colocando a situação de riqueza a uma altura mais inatingível, o patamar em que as situações de pobreza e riqueza se interligam está muito mais alto e é muito mais ambíguo. Todos os outros factores que influenciam o sentimento de bem-estar individual interferem afinal muito mais do que o da sobrevivência pura e simples.
As modas, as relações sociais, a alteração de modelos comparativos por força da mobilidade social leva a que surjam muitas oscilações no decorrer do tempo e nos vários patamares sociais. Em Portugal as camadas sociais são agora em muito maior número do que há meio século, o que leva a que a nossa percepção de médias e medianas é muito mais problemática.
O tempo é uma realidade que tem hoje uma dinâmica muito acrescida. As pessoas têm bastante dificuldade em acompanhar a evolução mas no geral já não parecem apanhadas de surpresa. É na dificuldade em compreender os passos intermédios que se encontra a explicação para a forma tão desajustada como é interpretada a realidade de hoje. O tempo passado foi vivido demasiado depressa.
Por vezes as pessoas falam como nada se tivesse passado, ingenuamente ou não, vivem numa perplexidade extrema. Não se compreende que as mesmas pessoas se façam de pobres para receber e, quase em simultâneo, de ricas para poderem ser sobranceiras. Equivocamente diz-se que há mais pobres, mas também se inflaciona o número de ricos quando convém. Que, novos-ricos, raramente o são a sério.
Atingir o patamar da sobrevivência física foi um sonho para gerações e gerações de humanos e continua a sê-lo em muitas partes do mundo. A maioria dos residentes no mundo real dos pobres nem sequer pode usufruir de qualquer sentimento de segurança que de certa forma os compense. Lá a pobreza é bem visível. Infelizmente muitos de nós, com uma quase natural displicência, achamos esta pobreza congénita e estas diferenciações lastimáveis mas irremediáveis.
O pior de tudo é que a determinação do nosso patamar relativamente alto de pobreza nada ajuda e antes prejudica a maneira como nós vemos o mundo. Um sentimento apurado de justiça levar-nos-ia a ajudar esses povos a aceder a um patamar de pobreza pelo menos semelhante ao nosso. Mas demitimo-nos facilmente perante a impossibilidade prática imediata disso acontecer.
Nem um maior contacto das pessoas com as realidades exteriores, nem o reconhecimento da influência mútua dos acontecimentos nas várias partes do globo, nem podermos vir a ser vítimas de ondas de choque provenientes de terras longínquas, nos leva a dar mais atenção a esta diferença, afrouxando as nossas próprias expectativas e diminuindo o egoísmo do mundo ocidental.
Alguns de nós pode estar em situação de deficit económico. Mas pobres, pobres são os do Darfur em África e os de tantas outras partes do mundo. Olhemos para eles, para que alguém olhe por eles!