sexta-feira, 4 de março de 2011

Méritos e deméritos da meritocracia

Um conceito que tem tido o aplauso da direita e da esquerda sociais e políticas, não há nisto qualquer divergência, é a meritocracia. É um conceito especialmente apreciado, o que já não acontece com outros como partilha, lealdade, solidariedade, igualdade e muitos mais com mérito social indiscutível. No entanto há quem dê à meritocracia a qualidade de poder eliminar muitos dos males sociais. Segundo tais opiniões se a meritocracia presidisse à gestão da sociedade haveria maior satisfação e uma felicidade mais efectiva. Se uns acreditam por ingenuidade haverá outros que o fazem por nítido interesse.
É incontestável que é da realidade que os teóricos extraem ideias como esta da meritocracia para com elas, purificadas na sua imaginação, construírem um mundo ideal. O senão é que essa realidade só tem em conta a ponta da pirâmide social. A realidade tem-se encarregado de desmentir o valor da aplicação prática de muitas destas ideias que se supõem puras, porque o universo todo a que elas se aplicariam é disforme. Ao mesmo tempo ter-se-iam de muitos outros valores e não aplicar somente alguns. A aplicação de um só conceito tem levado a resultados desastrosos. As ditas ideias puras deixam-se contagiar por aquelas que subestimamos como a lascívia ou a inveja.
A meritocracia tem mérito, não a depreciemos, porém, tal como qualquer outro conceito, nele incluímos ideias que se podem analisar pelo mérito da sua contribuição para esse mesmo conceito, mas que também se analisam pelo seu próprio mérito. Ora os defensores da meritocracia, para dar crédito ao seu conceito, mas também para justificar a pirâmide social, colocam a igualdade de oportunidades como premissa. A igualdade de oportunidades é assim uma ideia igualmente meritória, que se conceptualiza deste modo como só fazendo sentido se na sua sequência se verificarem processos em que a meritocracia é o princípio aplicável, como se a pirâmide fosse toda assim construída.
Sendo a sociedade um edifício necessariamente diversificado e com uma hierarquia, mesmo que só funcional, seria a igualdade de oportunidades a tornar legítima toda a divergência posterior. Assim, se colocarmos ou retirarmos mérito ao conceito de igualdade de oportunidades, estamos a fazer o mesmo ao conceito de meritocracia. Na realidade todos os teóricos da meritocracia sustentam que a igualdade de oportunidades é suficiente para que sobre ela se construa todo o edifício social, podendo assim fazer com que toda a restante evolução pessoal e social se desligue de qualquer outra preocupação, em especial da de igualdade.
Podermos partir de uma igualdade de oportunidades teórica sem garantia de qualquer convergência ou sequer solidariedade em relação à chegada? A única sustentação teórica para a igualdade de oportunidades assim definida é o facto de nenhum lugar de chegada no topo da hierarquia social está vedado a quem parte de qualquer um dos lugares da base social. Assim a necessidade da meritocracia para garantir que um lugar de topo seja ocupado por quem merece é evidente, o que, no entanto não dá a garantia do respeito doutros valores.
Os teóricos da meritocracia sustentam a pouca relevância social da perca doutras igualdades para justificar a ênfase dado à sua igualdade de oportunidades. Será esta suficientemente importante para valer por si e por si sustentar a meritocracia? Mesmo dando de barato a questão do que é relevante, a igualdade de oportunidades não resiste a uma análise dos próprios méritos. São muitas as razões aduzíveis para retirar à igualdade de oportunidades o carácter duma base absoluta que permita relativizar todas as desigualdades a que está sujeito o percurso pessoal e social de cada indivíduo e da sociedade.
Em primeiro lugar porque não é possível fixar em qualquer ocasião da vida um momento que possa assemelhar-se ao lançamento em igualdade de circunstâncias de uma corrida de atletismo. Pelo nascimento já temos um passado genético, neurológico, psicossomático que nos diferencia e nos coloca em diferentes blocos dum hipotético ponto de partida. Em segundo porque os ambientes familiares são profundamente diferentes, as tradições culturais são diversificadas e o ambiente e a cultura familiar são determinantes na construção do indivíduo e dos ambientes sociais.
É verdade que a frequência de creches, jardins e escolas contribuem para uma certa convergência na uniformidade, para uma socialização em circunstâncias mais iguais, mas tal não garante que surjam crianças igualmente dotadas e preparadas. Mesmo as tentativas feitas em regimes totalitários, retirando as crianças do seu ambiente familiar para as desvincular de uma cultura ancestral que toda a família transporta, não tiveram qualquer sucesso. A igualdade de oportunidades é pois um esforço meritório que a sociedade deve promover com bom senso e sem extremismos no sentido de proporcionar a todas as famílias um mínimo de condições para criar, desenvolver e socializar os seus filhos.
Mesmo que se conseguissem condições que trouxessem vantagens para todos e se fizesse dessa igualdade um ponto de honra, tal não desresponsabilizaria a sociedade de promover outras medidas que garantam durante a vida outras igualdades. A igualdade de partida tem que ser vista com a mesma relatividade doutras igualdades. Todas as igualdades são importantes e não se compensam mutuamente. A meritocracia, perdida esta base teórica, sustentar-se-á por si? Claro que não. Mas teoricamente será o melhor princípio para justificar a selecção de pessoas, se com ele não quisermos justificar todas as desigualdades abissais existentes hoje na sociedade.
De qualquer forma a meritocracia tem os seus defeitos intrínsecos. Os instrumentos de que se serve para medir, a forma de avaliar e os elementos escolhidos para aferir do mérito são sempre controversos. Depois é impossível destrinçar o mérito doutros factores. Num percurso individual há sempre uma mão que é dada por alguém, um empurrão providencial que projecta os dotados de “mérito” para um sucesso meritório. A meritocracia não pode justificar tudo, mas também não pode ignorar os males que pode provocar. Hoje acusa-se a comunicação social de criar falsos ídolos. Porém a solução não é calar a comunicação, é preparar as pessoas para essa exposição.

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