sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Roubar é a quem o tem

Custa-me sinceramente utilizar esta palavra tão áspera e contundente, demasiado pesada no meu contexto referencial, no entanto hoje usada socialmente sem a carga de outrora. Efectivamente quando alguém era apelidado de ladrão, era acusado de roubar, a não ser verdade era uma das grandes ofensas que se podia fazer a alguém honesto. Hoje já não é assim porque os ladrões têm bons advogados e entregam a estes as questões de honra.
Se mesmo assim uso a palavra roubar é porque pretendo remeter para os assuntos de extrema gravidade casos como os que me suscitaram esta referência. É ou não um roubo levar para casa uns milhões de bónus por cumprir determinadas metas empresariais? É ou não um roubo levar para casa reformas de centenas de milhares e indemnizações de milhões após curtos períodos de prestação de trabalho?
A expressão “roubar é a quem o tem” também está desgastada pelo seu uso tão vulgar pelo que se tornou socialmente inócua. Ela queria dizer que roubar a quem pouco tem pode causar um mal irreparável e seria mais condenável, roubar a quem o tem seria mais tolerável, e no extremo roubar a quem tem muito seria socialmente irrelevante. Claro que hoje as coisas estão invertidas porque quem tem pouco ou mesmo alguma coisa não tem o suficiente para recorrer à justiça, à “boa” justiça.
A expressão “roubar é a quem o tem” pretenderia desculpabilizar quem roubasse a quem muito tem e nesta asserção continua a fazer algum sentido, à revelia do que está socialmente aceite. Assim pensam aqueles gestores que levam maquias imensas para casa a pretexto de cláusulas abusivas dos seus contratos de trabalho. Só estão a retirar um pouco aos accionistas, na maioria capitalistas, de que a parte que detém de uma empresa só constitui uma parcela da sua fortuna.
Esquecemo-nos que há uns pequenos accionistas lesados por tabela, mas essencialmente esquecemo-nos que os clientes à força de empresas que exercem a sua actividade a nível de monopólio ou oligopólio são os mais prejudicados. Não faltará quem contraponha argumentos a todos os argumentos expendidos, como se tais valores de bónus ou outras recompensas representasse, se revertido, um diminuto desconto na facturação total da empresa.
Nenhuma das explicações dadas é convincente, a verdade é que se fica sem saber quem é mais prejudicado, se grandes accionistas, pequenos accionistas ou clientes em geral. Para a economia em geral dizem que estas situações contribuem para um clima competitivo que é benéfico. Também há quem diga que a economia paralela é benéfica e até há quem pense que a corrupção é uma forma de redistribuição meritória. O que parece evidente é que, como estas, também aquela realidade que nos ocupa contribui para o desregulamento social.
Não seria necessário que lhe chamássemos roubo para que o fenómeno não fosse grave e revelador do incentivo que a economia faz, o dinheiro, aos piores sentimentos humanos. O desgaste da palavra, a eliminação de antigas conexões quando os patrimónios eram finitos e havia honra da parte dos dois lados que celebravam um contrato, não incluindo nele cláusulas leoninas, só podem ser suprimidos colocando nessa palavra mais veemência e mais convicção.
Porém nós também dizemos ser um roubo aquilo que certos futebolistas ganham e eles nada se chateiam com isso. Também os gestores já se não chateiam porque se atribuem artes de malabaristas do dinheiro, que conseguem a sua reprodução com dribles de toda a ordem. O que é apanhado no meio desse turbilhão financeiro, trabalho, bens, serviços, clientes, são puros instrumentos para a obtenção do bem supremo, o dinheiro
E nós, os que acedemos ao vil metal com dificuldade, temos de estar calados? Não temos, mas de nada nos vale falar. Chamar roubo não tem qualquer efeito porque para o sistema judicial não o é. Manifestar a nossa indignação também não produz qualquer efeito porque o sistema político não a leva a sério. Teremos nós que nos conformar com o tentarmos causar algum dano nessas pessoas projectando sobre eles aquela terrível arma que é a inveja? Ou até esta também já terá perdido as suas qualidades?
Outrora dizia-se que certas pessoas tolhiam, em particular com o olhar. Então as virtualidades da inveja ter-se-ão perdido? Como eu nunca as possuí não posso dizer nada. Diziam outrora que esse não era um mal de que o próprio fosse culpado, se os seus olhares tolhiam, faziam-no sem deliberação prévia. De qualquer modo, além de manifestar a minha indignação, faço um apelo a quem tenha esse poder, que o exerça para bem de todos.
A não ser que esse poder só se possa exercer pelo olhar directo a essa gente. Então nada feito porque essa gente não nos passa debaixo d’olho amiúdo. Tal gente está demasiado longe de nós para que o nosso olhar as fulmine. Porém mais grave ainda é que esses que deste desbrago beneficiam são aqueles que nos querem impingir o malfadado liberalismo, a fonte de todos estes males.
Para fechar, atingido o cúmulo da responsabilidade, temos instituições que, para o bem e para o mal, eram os alicerces morais que sustentaram um limite razoável à voracidade no negros anos do salazarismo, que hoje se demitiram de uma intervenção mais global a nível de toda a estrutura social e se limitam a pretenderem aumentar o dizimo para 20 %.
Além da hipocrisia que se manifesta na autorização dada a muitas dessas pessoas, expoentes do capitalismo mais desenfreado, para falarem como exemplos das virtudes mais louváveis, há uma tentativa de branqueamento dos mais condenáveis instintos, outrora chamados de “pecados”. Sem autoridades morais, são as velhas armas o recurso possível.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Será possível castigar o fogo posto?

Nos dias de hoje o fogo posto tornou-se um dos crimes mais vulgares. A crer na afirmação das pessoas mais envolvidas no seu combate, a origem da grande maioria dos incêndios florestais está nas mãos criminosas. Não podendo nós acreditar haver assim tantas pessoas capazes de arcar com esse epíteto de incendiários, só podemos concluir que esse crime já tem muitas atenuantes na consciência social. E quando assim é temos que rever o que sabemos sobre a matéria.
Para os que acreditam que o problema está no homem, que terá entrado numa fase descendente de consciência social, já só existe uma solução que será colocar atrás de cada homem um outro a fiscalizá-lo permanentemente. No entanto esta pretensa solução só agravaria a questão. Com efeito, independentemente de qual deles é o bom e o mau, o que assumisse a tarefa de tomar conta do outro, com alguma probabilidade, seria tentado a cometer um duplo crime de cometer o crime original e o de o atribuir ao outro para dele se livrar.
A solução tem que ser outra e tem que obedecer a uma economia de meios. Então policiemo-nos a nós próprios em vez de sermos os polícias dos outros. Em primeiro lugar cada um de nós tem que admitir a possibilidade de que lhe passe pela cabeça a tentação de cometer um crime desta natureza porque a maioria de nós está longe de viver em perfeita harmonia consigo mesmo e com os outros. Já ninguém ousa pensar em ter um mundo harmonioso só para si. No entanto é a essa parte que ainda é capaz de harmonia a que nós nos agarramos.
Nós importamos para dentro de nós a desarmonia reinante. A nossa força passa por conseguirmos não exportar ainda mais desarmonia para o meio ambiente. É por nossa iniciativa que se instalou o desequilíbrio que se vê na natureza porque em nós se instalou um sentimento de desprezo que as simples palavras de boas intenções não escondem. Na mentalidade suburbana que prolifera na maioria de nós encontraremos as causas civilizacionais que determinaram esta mudança de atitude.
O que brilha para nós é o ouro, não as pedras rústicas das nossas serras e aldeias. Veneramos a cidade que tem em si a riqueza e desprezamos a ruralidade pobre, atractiva só para devaneios esporádicos. A harmonia outrora existente no meio rural, o perfeito enquadramento do homem com a natureza, levava a que todas as intervenções do homem na natureza tivessem uma naturalidade e uma sustentabilidade adequadas.
Cortava-se o mato, apanhavam-se o garaveto, podava-se a rama, eliminavam-se os infestantes porque tudo tinha utilidade e a monte era necessário para mandar para lá o gado nos meses em que havia culturas em desenvolvimento. Também se faziam queimadas, mas selectivas e nas zonas não arborizadas. Nenhum palmo de terreno era deixado ao abandono. O Estado encarregava-se das suas próprias florestas e espaços.
Em suma, a actividade económica fazia a gestão integral do espaço, encontrando utilização e retirando proveito de todos os materiais naturais e daqueles que ia introduzindo por via da cultura dos terrenos. Além da procura de novas formas de gestão e da introdução de novas culturas não se terem revelado frutíferas, a gestão dos resíduos florestais e o seu aproveitamento como bio-massa tem sido um caminho já sugerido, mas que economicamente ainda se não tornou viável.
Podemos dizer que no nosso País tudo mudou a partir dos finais dos anos sessenta. Tornaram-se vulgares os grandes incêndios, mesmo às portas das grandes cidades. As matas do Estado também começaram a arder. O Estado demitiu-se, não soube ou não pude intervir de forma eficaz. Tentar virar tudo para a acção policial também seria suicidário, porque seria ineficaz com os meios de que poderia dispor. O aumento da mobilidade das pessoas e a perca das relações de proximidade tornou impossível às populações locais o controlo do seu próprio território.
O fulcro da actividade económica deslocou-se, reduzindo o produto agrícola a proveito marginal e retirando grande parte da população dos campos e das matas. O próprio Estado se retirou da actividade florestal, também aí de certo modo expulso como o foi, em especial depois do 25 de Abril, de outras actividades económicas ligadas à agricultura com a extinção dos organismos corporativos de gestão, muitos deles transformados em associações geridas por particulares. O comércio invadiu e de certo modo alterou e destruiu muita actividade rural.
Muitas das mudanças verificadas são irreversíveis. A redistribuição da população, se a houver, não é de molde a satisfazer o interesse da defesa do equilíbrio entre o homem e a natureza. Também os poderes locais não se mostram interessados em gerir este problema, porque não tem meios financeiros para tal e porque os meios que reivindica ao poder central têm, por norma, outros destinos. Os interesses empresariais não encontram forma de se satisfazerem se tiverem que corresponder a determinadas exigências legais.
Todo o espaço territorial tem valor, mas a sua rentabilidade não justifica os cuidados que seriam necessários para o sustentar. A simples imposição de obrigações legais aos proprietários de terra é de duvidosa justeza e eficácia até porque o maior proprietário continua a ser o Estado. Depois, na consciência social está instalada a ideia de que há mesmo situações que só se resolvem com o fogo. A única forma de resolver a questão é em muitos casos a feitura de fogos controlados em época segura, se é que ainda a há.
Felizmente que se vai cumprindo a obrigatoriedade de limpar os cinquenta metros em redor das habitações. No entanto a ligeireza com que se analisa esta questão, tirando uns dois ou três meses no Verão, ajuda a que na consciência social se não instale uma ideia da perigosidade dos incêndios e de defesa do ambiente, ideia que tem sido tão mal tratada. Não será com fundamentalismos nesta área, que só isola defensores do ambiente, que se defende este, mas com a criação de uma maior proximidade do homem, de todos, com a natureza.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Merece este Estado que alguém o defenda?

Defender o Estado parece à primeira vista um anacronismo. A primeira razão é que o Estado é um ser bruto, mesmo o mais bruto dos seres. Muitas vezes actuou de uma forma desumana, absolutamente contrária àquela que o bom senso recomendaria. Possuidor da maior concentração de força, historicamente recorreu a ela com pretextos ridículos, sempre assentes em valores racistas e vontade de rapina sobre outros povos e países. E continua a haver forças que querem regressar a esse passado.
Muitas das entidades antecessoras do Estado ponham entraves à liberdade pessoal a todos os níveis. Os Estados modernos resultaram de muitas lutas para unificar territórios e assim eliminaram muitos pequenos poderes que sempre se quiseram manter. Porém, conseguida uma certa harmonia territorial e racial, a tentação foi continuar essa saga unificadora e dominadora o que levou a fins trágicos. Por esta razão foi tão promissor o liberalismo que primeiro apareceu a querer, com o seu “laissez faire, laissez passer”, que, sem necessidade de unificação política, não fossem colocados entraves à circulação de pessoas e bens.
O totalitarismo venceu em muitos países, mas após a sua derrota o liberalismo renasceu como uma nova esperança. O liberalismo de hoje já é mais estruturado, pois defende um Estado pequeno mas forte, dotado de poderes irrenunciáveis num âmbito limitado de questões. Porém ao não interferir no desenvolvimento das forças económicas, ao permitir que estas próprias controlem outros sectores da sociedade, mostra-se incapaz de impor a sua doutrina e a sua forma de funcionamento a toda a sociedade. Se o seu Estado é mínimo, os poderes que se criam sob a sua protecção são imensos.
Se esta noção do Estado resolve alguns problemas, cria pois outros porque as forças económicas, dotadas das energias acumuladas ao longo dos tempos, geram desigualdades intoleráveis e dão lugar a iniquidades que nunca tinham sido criadas em tempos mais recuados, mesmo quando a maioria dos homens nem liberdade de se movimentarem possuíam. A crença, ainda muito divulgada, que um Estado forte, por estar provavelmente nas mãos das forças sociais mais poderosas, mais contribuiria para agravar a exploração e a acumulação capitalista, faz com que muitos prefiram o Estado liberal ao Estado intervencionista.
A não intervenção do Estado nunca é absoluta, só assume um cariz tendencial. Na prática, sob a capa da não intervenção há forças imensas, umas velhas outras entretanto criadas que exercem o verdadeiro controlo da sociedade. A intervenção do Estado impõem-se, não no sentido da intervenção favorável à actuação livre das forças do mercado, mas sim no sentido de uma intervenção que pondere e assim corrija o peso que as forças de diferente natureza que actuam no mercado têm em diferentes contextos, de modo a que nenhum deles assuma carácter absoluto e absorvente.
Uma exigência premente dos dias de hoje é um Estado forte, não arbitrário na sua actuação, capaz de exercer poderes soberanos na altura própria e na medida adequada e de se não deixar dominar por forças sociais que temporariamente detenham maior relevância e poder, sejam elas de cariz económico, corporativo ou sindical. Sem um Estado forte, mas também dotado de instrumentos de intervenção eficazes, a injustiça prolifera e atinge sectores cada vez mais vastos da população e das actividades sociais.
A maioria das pessoas tem com o Estado uma relação de vista curta, pouco mais que interesseira, no que o interesse tem de mais imediato. Querem que o Estado esteja à ordem, pronto e seja eficaz para apoiar quando dele precisam. Querem que o Estado se oculte, se demita de actuar quando os seus interesses são contraditórios com os deles. O Estado é assim classificado de bom ou mau, conforme o circunstancialismo económico seja ou não favorável. É uma análise redutora, que esquece os benefícios que, mesmo a funcionar mal, usufruímos do Estado e é uma atitude que também retira eficácia à nossa intervenção social.
A nossa relação com o Estado é contraditória. A importância que lhe damos em momentos de crise e em épocas de “vacas gordas” é sempre diferente e isso depende do nosso posicionamento social. As necessidades sociais não são necessariamente as nossas. Na nossa relação com o Estado é essencial sabermos distinguir quais as nossas necessidades pessoais e quais as que a sociedade em geral vai vivendo, sem que nos deixemos enrolar por grupos de interesse específicos. No entanto há grupos que, sem razão, conseguem sobrepor os seus interesses aos nossos. Há imensa gente a defender causas alheias.
Dar apoio aos outros é uma causa justa, quando justificada. Querer que o Estado desempenhe funções que agradem à maioria é meritório. No entanto até aí o nosso pensamento pode já estar viciado. A nossa relação com o Estado está hoje contaminada por todos um descritivo de más práticas deste. É evidente que mesmo as boas intenções têm, ao serem colocadas em prática, efeitos perversos. Além de podermos ser vítimas da contingência, há uma intencionalidade que devemos entender, sem ficar por ela obcecado.
Exigir-se-ia de nós uma relação mais racional com o Estado. Em primeiro lugar reconhecendo as diferentes características deste em relação a outros grupos humanos. O Estado não é apenas mais um interveniente social colocado ao nível de outros interesses particulares ou colectivos. Em segundo lugar reconhecendo sempre ao Estado poderes mais amplos de que os dos outros orgãos da sociedade em qualquer domínio em que está mandatado para intervir, mesmo que esporadicamente. Em terceiro lugar adoptando uma forma democrática de eleger os seus orgãos de modo a lhes dar estabilidade e coerência interna.
O Estado não deve ter poderes absolutos, nem se lhes deve ser reivindicado qualquer origem sobrenatural ou divina. O Estado não deve ser manietado, nem renunciar ou transferir poderes soberanos. No geral sabemos o que o Estado não deve ser, mas temos dificuldade em definirmos-lhe os contornos. O Estado vai sendo, sem ser nada sublime. Um Estado assim, que não está na mão de ninguém, mas também não é conduzido num rumo certo merece ser defendido?

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Tudo tem um preço, menos a honra?

Tudo tem um preço, menos a honra, afirmou-o há tempos uma capitalista de referência da nossa praça. Tal sentença era a propósito da venda da já de todos nós conhecida a Brasileira Vivo pela Portuguesa PT à Espanhola Telefónica. Nesta triangulação transatlântica havia interesses, influências que estavam em jogo, bens presentes e futuros, talvez ainda não descobertos. A Vivo em si mesmo era um bem material, sujeito a cálculo de valorização, mas a que a nossa subjectividade de curiosos dá um valor acrescido. Merecia um preço.
No entanto aquela afirmação peremptória de quem tanto sabe do mundo e dos negócios também se podia referir ao negócio do abate dos sobreiros da Herdade da Vargem Fresca, às influências que valem negócios e aos negócios que só se alcançam comprando consciências. Cada um que calcule os riscos em que incorre e avalie o que fará dos seus conhecimentos e das influências que pode disponibilizar, que sempre será bom fazê-lo a troco de alguma paga por parte de quem queira fazer negócios. Há quem viva disso e não seja criminoso.
Por suborno, corrupção e outros qualificativos afins se designa o preço que é pago no mundo dos negócios a quem não se dão credencias para participar. Há quem não mereça um preço só por ser marginal. Mas mesmo a esses muitas vezes se tem que atribuir um preço. Não é a subjectividade dos elementos de valor dum negócio nem o desconhecimento da existência de alguns outros elementos ocultos que permitem que muitas pessoas vejam em tudo indícios de suborno e corrupção. Quando o espírito persecutório monta arraiais é difícil discernir nesse nevoeiro.
No caso em apreço não se terão levantado suspeitas deste tipo, mas, à falta doutro tema, pretende-se inocular na questão o vírus da incoerência. Recordemos que o preço da Vivo atingiu antes o valor que a maioria dos accionistas da PT acharam justo e assim estes se disponibilizaram a vender. Só o malvado Estado se interpôs e a oposição ao Estado e a oposição ao Governo aliaram-se a contestarem procedimentos e decisões. A Direita acha que há Estado a mais, a Esquerda (dita) acha que há Governo a mais, que o Estado, esse é pequeno, não dá suporte à ditadura do proletariado.
O negócio da venda da Vivo veio a desenvolver-se noutros moldes, com mais proveito económico para os accionistas da PT e com mais proveito estratégico para a Administração. A PT pôde negociar paralelamente a entrada no capital doutro operador de comunicações do Brasil com um perfil mais próximo do seu e com possibilidades de desenvolvimento a que a PT dará decerto um contributo maior. Este negócio, assim formatado, foi manifestamente melhor, só por evidente má fé poderá ser desvalorizado.
Pois caiu o Carmo e a Trindade, que afinal o Governo foi incoerente, cedeu, aceitou um negócio em tudo semelhante ao que antes havia rejeitado. Para estes políticos esta retórica é indispensável, sabendo eles que ela se desenvolve em circuito fechado, que só esporadicamente apanhará algum incauto. Estes políticos têm horror ao silêncio. Manifestar uma opinião é uma obrigação. Porém não vá haver más interpretações, o melhor é ser contra. Mas porquê?
A estratégia destes políticos é reduzir tudo a um nivelamento das responsabilidades, fazendo o Estado prisioneiro de processos que obedecem a uma coerência formal e permitindo que os particulares façam negócio utilizando os seus expeditos processos de compra e venda com realização imediata. Para eles quando o Estado rentabiliza um negócio não está a desempenhar as suas funções, quando visa dar mais poder aos centros de decisão cá sedeados ainda anda mais longe dessas suas funções mínimas.
Quando se não pode ser contra o conteúdo é-se contra a forma, mesmo quando nenhuma outra forma fosse capaz de garantir a obtenção dos mesmos resultados. Porém é vulgar ouvir certos políticos dizer que fariam o mesmo de modo diferente, o que é manifestamente impossível em processos negociais que nunca voltam à estaca zero e têm os seus ritmos e sequências. Porém quem têm fé pode sempre acreditar em que esse modo diferente de fazer seria melhor.
O farisaísmo, velha designação para aqueles que conseguem dar a ideia de um rigor que não é mais que aparente, é a qualidade mais cultivada nos dias de hoje por uma certa classe política que tem em Pacheco Pereira o seu ídolo mais destacado. Para esses políticos nos outros só existem graves incoerências, sendo eles de um rigor e de uma lisura a toda a prova, prova que porventura nunca lhes será dado fazer. A política, assim vista, quase não passa de um entretimento de quem vai dizendo para não estar calado, mas que irrita cada vez mais as pessoas e as não motiva à participação cívica e política.
Os jovens não compreendem as nuances que hoje se apresentam aos seus olhos, vêm que para seguir uma carreira política ou tão só para acompanhar a política se vêm remetidos para a manipulação de ideias de modo a tornar o seu discurso integrado na ordem do dia, o que muitas vezes não passa de uma verborreia sem sentido. A disciplina mental que muitos velhos se impõem para poderem dizer que mantêm uma coerência verbal não é sustentável na mente dos jovens que se sentem perdidos perante um futuro delineado por estes argonautas de bússola já avariada.
Os poucos jovens que se interessam pela política são hoje velhos nas ideias, na forma discursiva, na temática abordada. Parece que esgotados os temas ditos fracturantes como a homossexualidade, a sida, a droga, o preservativo, as relações sexuais livres, o divertimento, a noite, a mesada familiar, não há assuntos de interesse no horizonte. Outros assuntos perderam relevância porque só vinham á ribalta puxados por aqueles, como todas as causas humanitárias hoje quase esquecidas, senão viradas ao invés.
A juventude é uma imensidão de gente à deriva, que no geral sabe rejeitar o velho embora não faça nascer o novo. O futuro está armadilhado, mas não se lhe pode virar a cara. Até aqueles que enveredaram pelo negócio estão hoje sem rumo, num mundo em que as referências também se vão perdendo sem honra, que, ao contrário do que diz o chefe da estirpe mais antiga do nosso capitalismo, também tem um preço. Mesmo sem vender a honra é com dinheiro que se abafa a desonra própria.