A verdade é que não vimos sempre o Natal da mesma maneira. O nosso modo de ver o passado em geral vai-se modificando e vamos fazendo o apelo aos nossos sentimentos para continuar a enquadrar certos factos e acontecimentos na nossa vida. Tenhamos vivido mais emoções agradáveis ou mais emoções desagradáveis, temos hoje outra forma de ler o que então aconteceu. De qualquer modo, consigamos ou não efectuar essa releitura com sucesso, o passado não se pode renegar assim de um dia para o outro, embora muitos o façam por razões superficiais que não resistem a uma ponderação mais atempada dos próprios.
O Natal é daqueles episódios de que temos motivos para esquecer alguns, louvar outros e olhar com indiferença para muitos mais, mas se fizermos uma súmula de todos eles continuaremos decerto a ter do Natal uma visão positiva. Podemos dizer que o Natal é a festa para a qual mais pessoas contribuem, mais dinheiro gastam, mas também mais apelam à participação dos outros, mais entusiasmo empregam na sua participação. Não podemos dizer que um Natal foi pior ou melhor conforme o bacalhau que comemos ou as doçarias que provamos. Também não o podemos classificar pelas prendas que nos deram ou deixaram de dar.
Mas não restam dúvidas que, por poucos que possam ser os anos que usufruímos da magia do Natal, foram aqueles em que ousamos esperar por uma prenda no sapato que mais presos estão à nossa memória ou têm nesta mais espaço reservado, por pouco explícito que seja. Havia então algo manifestamente diferente do que acontece nos dias de hoje. Era o significado que o tempo tinha, a maneira diferente como nós lidávamos com ele. Havia um tempo de espera, um tempo que era destinado a essa simulação que, acreditando nós ou não nela, era parte constitutiva da festa, dos seus mistérios e deslumbramentos.
Hoje torna-se muito mais difícil cortar o tempo, suspender o tempo, dar um espaço de tempo próprio a uma vivência que nós sabemos ser única e embora cíclica, decerto modo irrepetível. Vivemos hoje de tal modo atemorizados que não largamos o tempo da sociedade, não temos ocasião para cultivar relações e sentimentos que não tenham a ver com aquilo a que nós chamamos o futuro e que tanta apreensão nos causa. Não se trata somente da maior velocidade que foi imprimida à vida, mas de termos adoptado um estilo de vida que atropela tudo, impõe um ritmo único a todos.
O Natal não é propriamente um tempo para continuar a dar largas ao pessimismo, mas para fazer um apelo às forças que o possam suster. No entanto o que se pode fazer de pior para isso é tornar o Natal um tempo de slogans. No Natal devemos procurar realçar aquilo que nele há de mais genuíno, mas não lhe atribuindo qualidades que não tem. Também não é com o Natal que vamos corrigir tudo, até porque o tempo é pouco. Importante é continuarmos a fazer do Natal aquele tempo para ser vivido na presença de bons sentimentos, como um momento que valerá a pena recordar mais tarde.
Porém a sociedade está a conduzir-nos para uma vivência única, sem tempos e sem ritmos. O individualismo não será a causa, antes será a consequência duma forma de opressiva e permanente imitação colectiva. Precisamos de alimentar continuamente o Eu só porque o ambiente é agressivo, impiedoso, inumano. Numa sociedade aberta já se não recorre apenas aos velhos truques da hipocrisia e do cinismo individuais, mas recorre-se à desvergonha e malvadez colectivizadas.
Criticamos a sociedade, mas quando damos por ela, estamos todos a colaborar. Ao nos preocupamos somente em nos safarmos individualmente não somos senão vítimas dum estado de coisas para o qual vamos também contribuindo. Até os instrumentos colectivos de que hoje dispomos já estão imbuídos da maior perversidade. Todas as formas de associativismo humano estão minadas pelos mais diversos vícios. A actual apologia do Eu resulta em muito do fracassos das vias pelas quais se procurou estruturar o nosso viver colectivo. Mas convenhamos que se não deve construir um edifício em cima da areia movediça.
O dilema da humanidade é este, o Eu de cada homem está em permanente construção. A nossa confiança tem que residir na possibilidade de construirmos uma identidade colectiva suficientemente sólida para resistir no essencial e se ir reconstruindo também pela vida fora. Ao homem só lentamente lhe vai sendo permitido evoluir no sentido de conhecer os mistérios do seu próprio Eu. Hoje os conhecimentos já serão bastantes para se começar a pensar em intuir outros sentimentos pessoais e colectivos, em estruturar outros princípios que suportem outras regras de convivência.
Talvez a humanidade nunca consiga resolver, dentro de parâmetros saudáveis, o dilema da colaboração/competição que é imanente ao pulsar da mente humana. Mas pode melhorar muito. O Natal é esse momento que está ainda no tempo primordial, na inocência anterior às inevitáveis roturas, na satisfação ingénua da existência. Preservar o espírito de Natal é contribuir para manter a esperança num mundo diferente, em que seja maiores as convergências do que as divergências.
O Natal é daqueles episódios de que temos motivos para esquecer alguns, louvar outros e olhar com indiferença para muitos mais, mas se fizermos uma súmula de todos eles continuaremos decerto a ter do Natal uma visão positiva. Podemos dizer que o Natal é a festa para a qual mais pessoas contribuem, mais dinheiro gastam, mas também mais apelam à participação dos outros, mais entusiasmo empregam na sua participação. Não podemos dizer que um Natal foi pior ou melhor conforme o bacalhau que comemos ou as doçarias que provamos. Também não o podemos classificar pelas prendas que nos deram ou deixaram de dar.
Mas não restam dúvidas que, por poucos que possam ser os anos que usufruímos da magia do Natal, foram aqueles em que ousamos esperar por uma prenda no sapato que mais presos estão à nossa memória ou têm nesta mais espaço reservado, por pouco explícito que seja. Havia então algo manifestamente diferente do que acontece nos dias de hoje. Era o significado que o tempo tinha, a maneira diferente como nós lidávamos com ele. Havia um tempo de espera, um tempo que era destinado a essa simulação que, acreditando nós ou não nela, era parte constitutiva da festa, dos seus mistérios e deslumbramentos.
Hoje torna-se muito mais difícil cortar o tempo, suspender o tempo, dar um espaço de tempo próprio a uma vivência que nós sabemos ser única e embora cíclica, decerto modo irrepetível. Vivemos hoje de tal modo atemorizados que não largamos o tempo da sociedade, não temos ocasião para cultivar relações e sentimentos que não tenham a ver com aquilo a que nós chamamos o futuro e que tanta apreensão nos causa. Não se trata somente da maior velocidade que foi imprimida à vida, mas de termos adoptado um estilo de vida que atropela tudo, impõe um ritmo único a todos.
O Natal não é propriamente um tempo para continuar a dar largas ao pessimismo, mas para fazer um apelo às forças que o possam suster. No entanto o que se pode fazer de pior para isso é tornar o Natal um tempo de slogans. No Natal devemos procurar realçar aquilo que nele há de mais genuíno, mas não lhe atribuindo qualidades que não tem. Também não é com o Natal que vamos corrigir tudo, até porque o tempo é pouco. Importante é continuarmos a fazer do Natal aquele tempo para ser vivido na presença de bons sentimentos, como um momento que valerá a pena recordar mais tarde.
Porém a sociedade está a conduzir-nos para uma vivência única, sem tempos e sem ritmos. O individualismo não será a causa, antes será a consequência duma forma de opressiva e permanente imitação colectiva. Precisamos de alimentar continuamente o Eu só porque o ambiente é agressivo, impiedoso, inumano. Numa sociedade aberta já se não recorre apenas aos velhos truques da hipocrisia e do cinismo individuais, mas recorre-se à desvergonha e malvadez colectivizadas.
Criticamos a sociedade, mas quando damos por ela, estamos todos a colaborar. Ao nos preocupamos somente em nos safarmos individualmente não somos senão vítimas dum estado de coisas para o qual vamos também contribuindo. Até os instrumentos colectivos de que hoje dispomos já estão imbuídos da maior perversidade. Todas as formas de associativismo humano estão minadas pelos mais diversos vícios. A actual apologia do Eu resulta em muito do fracassos das vias pelas quais se procurou estruturar o nosso viver colectivo. Mas convenhamos que se não deve construir um edifício em cima da areia movediça.
O dilema da humanidade é este, o Eu de cada homem está em permanente construção. A nossa confiança tem que residir na possibilidade de construirmos uma identidade colectiva suficientemente sólida para resistir no essencial e se ir reconstruindo também pela vida fora. Ao homem só lentamente lhe vai sendo permitido evoluir no sentido de conhecer os mistérios do seu próprio Eu. Hoje os conhecimentos já serão bastantes para se começar a pensar em intuir outros sentimentos pessoais e colectivos, em estruturar outros princípios que suportem outras regras de convivência.
Talvez a humanidade nunca consiga resolver, dentro de parâmetros saudáveis, o dilema da colaboração/competição que é imanente ao pulsar da mente humana. Mas pode melhorar muito. O Natal é esse momento que está ainda no tempo primordial, na inocência anterior às inevitáveis roturas, na satisfação ingénua da existência. Preservar o espírito de Natal é contribuir para manter a esperança num mundo diferente, em que seja maiores as convergências do que as divergências.