sexta-feira, 14 de maio de 2010

Trabalho e/ou Liberdade, uma aliança ou um dilema

A glorificação do trabalho não é apanágio só da esquerda nem só da direita, mas apresenta diferentes contornos conforme a posição política de quem a faz. Para a esquerda mais genuína o trabalho é o elemento central de toda a dinâmica social. Para a direita mais radical o trabalho pode ser somente uma obrigação dos elementos sociais dependentes Mas há algo de concordante em todas as posições porque afinal o trabalho faz falta a todos, até aos que não trabalham. As divergências fundam-se mais nas formas de prestação do trabalho. Este é hoje genericamente aceite como um acto dignificante, acto social imprescindível do modo como a sociedade está estruturada e funciona.
Houve uma grande evolução nas condições de prestação de trabalho que trespassou sistemas e regimes. As excepções são poucas e confirmam a regra. Tal evolução é, pelo menos em boa parte, irreversível porque, embora historicamente haja avanços e retrocessos, não é crível que regressemos a algum dos estádios já ultrapassados durante o seu decurso. Claro que ainda há vozes que, com a justificação da opção pela garantia do sustento, dizem que estariam dispostas a perder muitas das melhorias conseguidas nessas condições de trabalho. E muitos não o dizem por opção política, aceitariam essa situação por puro realismo. A liberdade não paga tudo quando está em causa a sobrevivência.
Felizmente que não precisamos de colocar as coisas nesse ponto. Podemos lutar pela liberdade e pelo trabalho sem preconceitos, sem cedências, sem sofismas. Não necessitamos de aceitar um trabalho que implique uma dependência abusiva. Mas continua a haver duas perspectivas antagónicas e ambas rejeitáveis para ver a questão do trabalho. Uma das perspectivas que ignora a sociedade aponta para a sobrevalorização da liberdade como supremo valor de que a nenhum pretexto se pode prescindir. A oposta aponta para o valor supremo do trabalho de que a sociedade até terá o direito de se apropriar.
Convenhamos então que não há um direito a uma liberdade absoluta quando usufruímos dos benefícios de viver numa sociedade. Temos a obrigação de pôr ao dispor dessa sociedade bens, trabalho e o poder que tenhamos obtido. No entanto é sabido que a maioria de nós é profundamente recalcitrante em aceitar essa obrigação. Por outro lado se temos que reconhecer ao Estado direitos, este não tem o direito de nos impor condições degradantes de prestação de trabalho. O Estado, como primeiro responsável pela organização social, actue ou não como empregador, não nos pode impor condições aviltantes. Mas a esquerda mais se rebaixou nos casos em que aceitou o Estado como empregador global.
O modelo de organização da sociedade, e em particular da actividade económica, que durante séculos assentou essencialmente na posse da terra, está hoje, pelo menos teoricamente, dependente da vontade soberana da população. O poder que era detido por quem detinha a terra transitou por diversos grupos sociais e está hoje mais próximo da população em geral, embora nesta haja partes com diferentes interesses e diferentes capacidades de intervenção. O Estado tem vindo a estruturar-se com possibilidades de uma relação mais directa com cada elemento da população e também de uma acção mais directa na definição das condições de prestação de trabalho.
A disputa que no mundo inteiro tem tido lugar sobre o modelo que deve servir de base à actividade económica tem-se desenrolado entre aqueles que querem impulsionar a sua regulamentação exaustiva, aqueles que querem o liberalismo máximo e aqueles que querem a simples apropriação dessa actividade pelo Estado. Com a diminuição drástica do poder dos que defendem esta última opção, passou a haver uma luta mais acesa entre os que defendem as duas primeiras opções. Além disso muitos dos que defendem a primeira opção defendem também alguma intervenção do Estado em actividades económicas importantes em especial as que estão em sistema de monopólio.
Hoje em qualquer Estado moderno este é o principal empregador. A estrutura do Estado é ocupada por elementos eleitos, outros escolhidos por aqueles e uma imensa multidão de prestadores normais de trabalho. Em relação a estes o Estado funciona ao mesmo tempo como patrão e como regulamentador da prestação de trabalho. Como patrão o Estado funciona em concorrência com o sector privado e torna-se atractivo. Aqueles que trabalham para o sector privado anseiam ter as mesmas condições. Como concorrente o Estado “porta-se bem”, é desleixado, como patrão absoluto o Estado é agressivo, concentrador.
Se na actividade privada se estabelecem hierarquias na sua organização, no Estado elas são mais evidentes, mais numerosas, mais requisitadas. Em causa está não só o nível de remuneração mas um poder mais efectivo, mais assumido, menos dependente e que ultrapassa a funcionalidade restrita. Por vezes extravasa-se em muito aquilo que seria razoável, racional. Pequenos tiranetes são vulgares incrustados nas estruturas do Estado. Este facto cria muitas vezes conflitos desnecessários e prejudiciais a um trabalho eficaz. Este Estado é permissivo.
No países em que a estrutura do Estado é mais permeável aos procedimentos normais de uma sociedade, onde imperam as razões de família, de grupo, de amizade, de compadrio, mas também de favorecimento e até venda de lugares, há menos eficiência e relações laborais mais problemáticas. Todas essas relações que impliquem cedências pessoais são nefastas. Nestes casos é difícil garantir a liberdade, porque são as próprias pessoas que colaboram activamente na criação de situações de dependência para além da subordinação funcional.
Há ainda um outro problema que lança a confusão nesta questão e que é a existência de actividades que dificilmente se podem englobar na definição clássica de trabalho, principalmente aquelas que são de valor social duvidoso. Permitiu-se que o crime e actividades pouco claras invadissem a área normal do trabalho. Porém não há qualquer dilema entre liberdade e trabalho. Estes dois valores constituem o fundamental para aferir do nível civilizacional duma sociedade. Uma boa coexistência entre eles define um bom nível. A estabilidade, uma sólida relação entre eles definem um alto estado civilizacional.

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