sexta-feira, 23 de abril de 2010

O que no 25 de Abril vai resistindo à espuma dos dias

Há assuntos, temas que se ficam pela espuma dos dias. Há quem aproveite as oportunidades em que a realidade nos mostra determinada cara para abordar assuntos pela perspectiva mais favorável às suas pretensões. Passada a hora tudo se esvai, tenha ou não produzido o efeito pretendido. Esporadicamente há reavivamentos, um reacender das chamas à volta desse assunto, uma abordagem nova a reforçar ou a desmentir a que anteriormente teve mais valimento. E volta tudo ao mesmo, um estado de letargia, de adormecimento, quiçá de esquecimento.
Porém não se esquecem temas como o 25 de Abril, não só pela sua importância, mas também pelas comemorações que se mantém e provavelmente manterão por muitos anos. Um efeito dessa manutenção do assunto na ordem do dia, de pelo menos esse dia ano a ano, é a constante alteração da forma como o abordamos. É assunto que não se fica pela espuma dos dias, mas a que a distância vai permitindo uma interpretação mais perto da verdade, mais consistente, menos condicionada e contaminada pelas ideologias que desde logo quiseram que a sua interpretação dos acontecimentos passasse por única.
Se queremos chegar a uma forma de análise mais isenta e real teremos que tentar retirar a cor à espuma e, tendo a sua evocação um efeito emocional, não sendo possível remover toda a espuma, tentar torná-la o mais transparente possível. Lá no fundo vemos o 25 de Abril só como um golpe militar. Foi condicionado, empolado pelo facto de o País estar envolvido em três frentes de guerra colonial e haver no exército uma forte componente popular. A guerra colonial desenrolava-se à volta de uma dúzia de anos e tinha-se encarniçado na Guiné, por efeito da dimensão, morfologia, concentração populacional, apoios exteriores e permeabilidade quase absoluta da fronteira guineense.
Os recursos humanos estavam mobilizados pelo desenvolvimento que no País se tinha verificado, pela emigração e pela guerra. A carreira militar não era atraente, malgrado se dissesse que os oficiais e sargentos estavam ávidos de comissões militares. O cansaço era já evidente. Em 1973 dá-se a primeira grande crise energética. Os Países árabes e do Norte de África, que então tinham o quase monopólio de produção petrolífera, começaram a colocar a questão de fazer um bloqueio à exportação de petróleo para Portugal se este não descolonizasse.
O isolamento internacional acentuava-se. Um dos aspectos que além desse efeito teve uma clara repercussão interna foi a recepção que o Papa fez aos representantes dos movimentos de libertação das colónias portuguesas. Por cá Marcelo Caetano mantinha a velha justificação de sempre. A tese principal era o velho princípio salazarista que o regime de índole corporativa que estava instalado era a uma alternativa ao caos e ao regime comunista que inevitavelmente se lhe seguiria. Havia outras forças que emergiam, personalizadas por Mário Soares e Sá Carneiro, mas a que o regime optou por virar as costas.
A grande maioria da população foi alimentando as Conversas em Família de Marcelo até ao dia em que este disse que o tempo das vacas gordas tinha acabado e que, no seguimento da tal crise de 1973, nos devíamos preparar para o tempo das vacas magras. Os sectores mais dinâmicos do exército, fossem de direita ou esquerda (?), viram que a população não queria um regresso ao passado e que facilmente descartava um regime que já nada lhe prometia. O que condicionava o exército era o que tinha condicionado toda a nossa política, em especial nos cem anos anteriores: As colónias. Era uma rotura difícil.
Porém os militares viram que, sem o apoio da Nato e sem a neutralidade dos países árabes, era a viabilidade do império colonial que estava em causa. As soluções eram cada vez menos, o tempo era cada vez mais escasso. Por mais válidos que fossem os Ideais de multiracialidade a sua viabilidade estava cada vez mais em causa. De qualquer modo politicamente o regime estava num beco sem saída e esses militares viram que, não só podiam assumir o poder, como não haveria quaisquer outras forças capazes de o tomar e de o conservar com uma durabilidade suficiente para fazer as transformações que se imponham no sentido da descolonização, da democratização e do desenvolvimento.
Com algumas cautelas os militares assumiram como primeira opção a chamada à ribalta das reservas da Nação, os militares mais velhos como Spínola, os quais se veriam a revelar decrépitos e sem chama, já ultrapassados pelos acontecimentos. Assumiram estão eles próprios as responsabilidades que viram não poder transferir para outrem de modo imediato, definitivo. Mas só em parte se redimiram de um passado comprometedor, não conseguiram assegurar uma transição pacífica nas colónias, com perdas para os que foram obrigados a retornar e com perdas de vida para aqueles que, sendo negros, sempre se tinham colocado ao seu lado. É a sua maior vergonha.
O mérito desses militares de Abril está no que em conjunto fizeram para aguentar dentro do razoável uma situação que esteva pronta a rebentar pelas costuras e explodir. Em cada uma das soluções possíveis dum problema há custos e em alguns aspectos deste processo que pôs fim ao antigo regime os custos foram excessivos. Só que a alternativa à solução adoptada estaria apenas em deixar ficar tudo na mesma, o que seria acumular ainda mais tensões com resultados imprevisíveis.
O mérito não está no passado daqueles duzentos capitães de Abril que, só a custo e pressionados por factores externos, resolveram contradizer. Também não houve razões nobres de índole ideológica, moral ou humanitária que os moveram, antes foi por razões práticas que resolveram por fim a um tempo sem sentido. Os militares, quer nós consideremos, quer não, que o fizeram a tempo, só após o 25 de Abril cumpriram com mérito a sua obrigação militar. E tudo está bem quando acaba bem ou, pelo menos, menos mal.

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