sexta-feira, 29 de junho de 2007

O que nos faz ser piedosos, beneméritos e mecenas

Todas as culturas valorizam o acto de dar mais do que o contributo obrigatório e legal para o conjunto da sociedade. Quando alguém está interessado em dar, não nos preocupamos normalmente com as razões que o levam a isso. A essas pessoas também se costuma dizer que, se querem fazer bem, não olhem a quem.
Há pois gente disponível para dar e outros para receber. Aqueles que estão sempre disponíveis para dar são poucos mas os que se dispõem a receber são muitos e entre estes há os gananciosos, sem receio do ridículo. Mas também há quem a essa disponibilidade acrescente alguns escrúpulos e até mesmo quem de todo se mantenha indisponível, uns para dar e outros para receber.
Os que recebem podem merecer de nós os sentimentos mais díspares mas teremos que convir que não faltarão no mundo seres humanos que suscitem a nossa piedade. Mas haverá muitas outras razões igualmente plausíveis que justificam plenamente o exercício da benemerência ou do mecenato.
Por hábito nós, justiceiros primários sempre prontos a atirar a primeira pedra, diremos que os que nada dão são avarentos e às vezes até enchemos de sangue a cara e manifestamos a nossa indignação em relação àqueles que tanto têm e se comportam dessa maneira.
Mas na realidade se há quem não dê por princípio, também há aqueles que não dão por saturação, quando se pede para tudo e todos acham que têm razão. Depois, mercê muito da pedinchice televisiva, há sempre gente disposta a dar cobertura moral a todos os pedintes que, pelas mais variadas razões, vão proliferando a todos os níveis da sociedade.
Pedem os que não podem e os que podem trabalhar, os que esgotaram e os que não esgotaram a sua conta bancária mas que a querem sempre bem recheada para sustentar os seus vários vícios e até os que a querem engordar para uma reforma livre de perigos e uma “capela” num cemitério qualquer.
Os meios de comunicação, em particular a televisão, entram nestes esquemas com uma tal leviandade que nem perante a fraude evidente chegam a pedir desculpas aos patos-bravos que vão caindo na esparrela de alimentar espectáculos de gosto mais que duvidoso.
Dir-se-á que a satisfação pessoal que estes já obtiveram com a sua dádiva resultará, não do facto de terem prescindido dela, mas de terem podido prescindir a favor de outrem, seja este quem for, e isso já os terá recompensado sem terem que esperar outra compensação ou reconhecimento.
O problema é que isto é uma abstracção difícil de conseguir e haverá sempre outras motivações atrás destes gestos magnânimos. Mas não há dúvida que no processo psicológico que determina a predisposição para dar, e concomitantemente para não dar, o sentimento de restituição é o mais primário e facilmente descortinável de todos.
Aqueles que acham que ainda não receberam o suficiente da sociedade não estarão predispostos a dar aquilo que lhes pode ou não fazer falta e entre outros aqueles que, mesmo queixando-se, pensam já ter recebido algo, pensarão também que podem dar alguma coisa em troca.
Mas também haverá aqueles que, mais do que no passado, estarão a pensar no futuro e assim estarão a pensar para eles, que não para os outros, em fazer um investimento em vez da tradicional restituição. As pessoas ao fazerem-no podem ser movidas por diferentes forças, desde a bondade até a um máximo de calculismo e quando assim é só se satisfazem com um reconhecimento imediato.
Depois podemos ir mais além do domínio da restituição ou do investimento, isto é das nossas motivações mais profundas, e pensar que a classificação de uma dádiva também pode derivar da forma como nós tivermos obtido os meios de que dispomos para satisfazer a nossa generosidade. Aqui a divergência é naturalmente maior.
Do lícito ao menos lícito, do duvidoso até ao ilegal, do que sendo legal é moral até ao plenamente imoral, longos são os caminhos percorridos até que se descubra o verdadeiro lugar onde posicionar a licitude e a moral que, independentemente dos méritos de cada um e da sua oferta possam servir de motivo para realçar ou denegrir essa atitude pessoal.
Daqui a dificuldade em haver acordo entre os intervenientes, os que testemunham e acima de tudo entre aqueles que são chamados a valorar estas atitudes. Mas todos podemos convergir em que tudo tem um preço e que se a dádiva for grande até poderemos prescindir dos outros critérios e achar que, não o sendo na globalidade, o resultado final pode acabar por ser positivo.
E lembramo-nos de Champalimaud que no fim da sua vida, controversa quanto baste, deixou 500 milhões de Euros a uma fundação para fins humanitários. Não duvidemos que isto suavizou sobremaneira as críticas que podíamos atribuir a tanta ganância. O mecenato tem os seus efeitos.

sexta-feira, 22 de junho de 2007

Quem tem direito a atirar a primeira pedra?

A busca de reconhecimento social assume diferentes importâncias para as distintas pessoas e nos diferentes ambientes que constituem o todo social. Também cada pessoa em si lhe atribui diferente valor nas várias etapas da sua vida. E acima de tudo em cada momento cada um vê o seu reconhecimento, e o reconhecimento que faz dos outros, por prismas diferenciados.
Normalmente a plausibilidade do reconhecimento depende do respeito por aquilo que em cada momento é considerado mais válido pelo senso comum. Pelo que não é de esperar grande reconhecimento quando os nossos valores conflituam com os prevalecentes na sociedade.
Mesmo assim, e ainda bem, podemos ver serem tolerados ou aceites valores contraditórios no domínio pessoal e social. Porém esta situação nem sempre satisfaz os objectivos das pessoas. Em alternativa não raro recorremos à falsidade baseada na discrepância total entre aquilo que é importante para cada um e aquilo que cada qual faz transparecer como tal para os outros.
Muitas vezes ocorre a situação de se instalar no nosso espírito a dúvida entre cada uma de duas atitudes das mais próximas no espectro das reacções que podemos esperar da parte do grupo social ou da sociedade no âmbito do qual “queremos” actuar. Entre a rejeição, a tolerância, a aceitação e a plena integração social há um vasto leque de hipóteses a considerar.
Nunca pode ser aferida com precisão e a cada momento aquilo que é mais consensual na sociedade. Nem mesmo podemos ter certezas sobre muitos dos valores que se dizem patrocinados pelo Estado ou por outras organizações transmissoras de valores que interferem na vida social. Não raro os seus diferentes componentes estão em desacordo quanto a aspectos fulcrais.
Este tipo de dúvida surge muito mais facilmente no espírito das pessoas esclarecidas e sinceras do que entre os ignorantes e os falsos. Estes últimos não têm tempo para estas lucubrações. Agarram-se às certezas que consideram suficientes para os ajudar a obter o que ambicionam ter e preocupam-se só em ter um grupo social com que se identifiquem e que lhes possa servir de apoio. Os mais capazes destes obtêm mesmo apoios fora dele.
Mas o facto de termos dúvidas não nos pode inibir de tentar influenciar os valores sociais que achamos que devem ter uma solidez bastante no domínio da sociedade. Pode ser mesmo uma questão de sobrevivência porque mesmo as pessoas que estão de paz com a sua consciência, por julgarem estar a corresponder àquilo que é socialmente mais valioso, não raro são vítimas indefesas da perversidade, dos volte faces sociais.
O conflito permanente entre valores pessoais e sociais torna-nos vulneráveis pelo que devemos ser cautelosos, sem ser calculistas, nesta questão crucial para a nossa vida que é termos de percorrer com maior ou menos regularidade o percurso entre a confrontação, a condescendência, a convivência e a vivência irmanada.
A procura de uma estabilidade dinâmica, que não prescinda da procura de avanços para os valores que mais prezamos, é pois a melhor postura que podemos assumir perante a vida e a sociedade. Mesmo que saibamos que esta não valorize sobremaneira este modo de agir e no seu “egoísmo” nos queira agrilhoar a uma postura estática e de preferência subserviente.
Nós temos direito de mudar, de nos adaptarmos, de intervirmos e, se nos é imposto um limite, ele deve ser o princípio da lealdade para com aqueles com quem convivemos regularmente. Este princípio é porém caracterizado por só ser válido se for reciprocamente aceite.
Aos valores sociais não se pode exigir qualquer lealdade quando nós os não partilhamos ou não reconhecemos aos outros a sua representação. Este princípio é pessoal, embora possa ser alargado às pessoas que o partilham.
Porém a natureza das diferentes relações sociais que estabelecemos, suspendemos e reatamos levam-nos a não podermos partilhar com a maioria dos outros qualquer convergência, se não casuística, em relação a princípios.
O facto de ser para certas pessoas quase um constrangimento estar a pensar e abordar estas questões não se podem inibir de o fazer. O embaraço de muitos que estão mais sujeitos à exposição pública é porém compreensível. É mesmo legítimo não gostar de que se ponham em causa princípios basilares da sua vida mais pessoal, mas não o é proibir que os outros o façam.
Existem aqui princípios que, mais para além do que a lealdade, devem ser aceites por todos: ser humano, humilde e condescendente. Há elementos de falsidade contidos em muitas vidas que lá estão contra a vontade consciente dos que as viveram. Mas por isso não podem ser branqueados, como não devem ser usados para humilhar ninguém. Quem tem direito a atirar a primeira pedra?
Normalmente nós, se gostamos de uma pessoa e a adoptamos até como exemplo a seguir, condescendemos com ela do mesmo modo como faríamos em relação a nós próprios. Porém se não gostamos dela somos intolerantes e exigimos a ela aquilo que estamos longe de exigir a nós mesmos.
O único aspecto que podemos lamentar é não gastarmos, para pensar os outros, o mesmo tempo que gastamos para os endeusar e adorar ou para os denegrir e aviltar. Nem mesmo nos chega dizer que queremos para os outros exactamente o mesmo que queremos para nós próprios. Ninguém acredita nisso.

sexta-feira, 15 de junho de 2007

Corrupção, suborno, influências, como combatê-las

Corrupção, suborno, chantagem, acesso a informação privilegiada, uso de informação reservada, aproveitamento de influências ilegais, de tudo se vê um pouco por todo o lado, associando os detentores do poder, seja em representação do Estado, seja de organizações sociais, com gente igualmente sem escrúpulos, desonesta, sem dignidade.
Pela vastidão deste universo, quase nos custa levantar o dedo para alguém. ¿Porquê a uns se há-de tornar vítimas, se são muitas as hipóteses de apanhar os pequenos e poucas as hipóteses de apanhar os grandes corruptos e não há quaisquer umas de apanhar a grande maioria?
São muitos os organismos onde há imensas irregularidades porque se facilita e confia bastante ou porque a fronteira entre o legal e o ilegal é ténue. Aí nunca funciona qualquer “direito/dever” de delação. Terá que haver quem por profissão o faça com legitimidade e, embora só podendo abarcar uma parte diminuta da realidade, sempre exercerá um efeito dissuasor.
Se as pessoas souberem que houve uma denúncia, ganharão ódio ao denunciante, na vida social este sai penalizado. As pessoas ainda não compreendem que se seja pelo Estado contra os particulares, mesmo que estes desrespeitem todas as regras que os outros aceitam e defendem.
Mas se forem os serviços, por sua iniciativa, a pôr cobro a uma situação delituosa ganharão mais credibilidade, aumentará o respeito, aqueles que nunca respeitarão pelo menos atemorizar-se-ão. É necessário haver regras mas essencial que haja quem as faça respeitar.
Haverá sempre quem tente passar as malhas de qualquer rede de controlo desde que o risco compense. È o que se passa com o contrabando e o tráfico ilegal de estupefacientes. Quando se consegue diminuir ao benefício, diminui-se necessariamente o delito.
Também haverá sempre quem nos supermercados roube pequenos objectos de pouco valor porque há taras para tudo. Mas este prejuízo já está previamente assumido e não é por isso que nos devemos tornar um País de delatores.
O Estado no entanto não pode prescindir a favor dos particulares de parcelas significativas da actividade económica, que serão sempre apetitosas para quem seja menos escrupuloso. Também não pode legalizar o que não o pode ser, só para que não seja tão atractivo.
A única saída para o Estado só pode ser castigar severamente aqueles que, estando na parte de cima do edifício social, dão a sua cobertura, escondem, ilibam, decidem contra a lei. Quer se tenha ou não a convicção de que é por aí que se pode acabar com o crime, é essa a expectativa das pessoas.
São estes comportamentos que mais difundem o crime, como possibilidade “normal” de obter benefícios. São alguns dos criminosos deste tipo que ocupam o topo dos vários aparelhos de poder (autárquico, futebolístico, etc.), que se pavoneiam nas televisões e são endeusados na sua terra.
Muitos tornaram-se ídolos das multidões por falarem mais alto, de modo mais troante. Já estão calejados mercê de uma actuação sistematicamente marginal, mas as pessoas adoram-nos. Bamboleiam-se na corda, mas ganham resistências inesperadas. Põem à luz do dia a impotência do Estado.
Como não ter pena daqueles que fazem tentativas desajeitadas para usufruir esporadicamente de algum bem? Daqueles que pouco ganham com o crime, nem são exemplo para ninguém? Os “bons” exemplos estão lá em cima.
Ao contrário do que hoje acontece, o sistema legislativo e o sistema judicial devem assumir claramente que este tipo de pessoas só é ilibado por ter uma boa “integração social”, mesmo que seja um exemplo desprezível.
O nosso sistema aposta muito nesta vertente da integração social e deve-a prosseguir para que os criminosos não socialmente inseridos sejam integrados. Mas não pode utilizá-la como álibi para ilibar os que já estão socialmente integrados por estarem na parte superior da pirâmide social.
Se o facto de ter amigos não quer dizer que se não mereça a cadeia, também o ar de normalidade atribuído a certos crimes, como o económico, tem que ser combatido. Não é pela falta de legislação exigente, mas é a grande compensação que se pode obter com a fuga a certas obrigações sociais, como os impostos, que torna estes crimes “bons” e cria apetência para tornear a lei.
Se há crimes “acessíveis” a todos, há pois “bons” crimes só possíveis aos poderosos, socialmente bem inseridos. Por exemplo, a informação valiosa que corre em círculos restritos só chega a quem é conveniente que chegue. Aos fracos nunca será permitido dela beneficiar, serem corruptos.
As redes de interesses que se espalham por corredores, gabinetes e salas de jantar estão bem oleadas, rapidamente de reconstituem quando atacadas, contaminam quem se aproxima, apanham os mais prevenidos. Pode-se apanhar uma ponta, mas a maioria da rede permanece impune. Trata-se pois de um combate que tem que ser persistente, consistente e também preventivo.
Seria necessária firmeza, decisão, para que saíssem de cena muitas destas personagens, para trazer alguma decência à nossa vida pública. Se “alguns” poderosos fossem castigados, a punição social se encarregaria de os erradicar do palco mediático e até deixariam de ser exemplo para os fracos.

sexta-feira, 8 de junho de 2007

As impressões que se trocam nas filas de espera

Quase todos nós odiamos as tradicionais bichas, as filas que se desenvolvem um pouco por todo o lado. Elas formam-se para apanhar o autocarro, marcar uma consulta médica, mandar uma encomenda pelo correio, fazer pagamentos nas finanças, ser atendido no banco, até para levantar dinheiro no Multibanco.
Umas são devidas à burocracia, outras ao tradicional deixa andar até à última hora, coisas que eventualmente se corrigiriam, mas outras há que não têm fim à vista. Por exemplo a fila para comer num refeitório, até num restaurante.
Hoje em dia até há um novo tipo de fila de espera que ocorre na Internet sempre que utilizamos um servidor obsoleto cuja lentidão deriva da grande quantidade de tentativas de acesso para uma capacidade limitada. Estas são particularmente chatas porque, embora nos não obriguem a estar de pé, nos põem a olhar para o visor sem hipótese de interactividade. Até desconhecemos o nosso lugar na fila e por isso o seu fim.
Acho que a cara com que encaramos qualquer fila é sempre igual, mas aqui não vemos os concorrentes/companheiros de jornada e não podemos trocar umas impressões com eles, que isto de conversas não é para este terreno movediço que repentinamente até nos pode colocar em filas diferentes, que o mesmo é dizer, podemos deixar de nos ver.
As impressões que trocamos nestas ocasiões estão como que a meio caminho entre o vazio, a ausência de qualquer contacto ou ligação e a conversa que assenta em ideias partilhadas ou que se querem construir no sentido de fortalecer qualquer contacto ou estabelecer uma ligação duradoura.
Mas nem as impressões ou conversas chegam para colmatar uma falha que nós atribuímos à organização e que nos deixa sempre pendurados, sem estarmos previamente preparados para ocupar o tempo. O estar numa fila só serve para criar ansiedade desnecessária.
Este problema resulta em muito de normalmente não irmos para uma qualquer fila com quem queremos, é quase sempre uma incógnita que se nos depara. Só numa fábrica, num escritório será possível criar hábitos de se juntarem as mesmas pessoas numa bicha para almoçar, por exemplo. Mas até isso pode ser um aborrecimento, o estar sempre com os mesmos no trabalho e na fila para o refeitório. Às tantas nem respiramos.
Já, se não “escolhemos” as companhias, mais difícil se torna o estar a falar de coisas vagas com quem “conhecemos” há tanto tempo sem com ele convivermos. Além da maldade que é o trabalho nestes lugares, esta é a pior de todas as filas que podem existir, porque nos colocam na imensidão do nada.
Infelizmente teremos que continuar a preparar-nos para entrar em filas de toda a ordem porque as promessas do seu desaparecimento não podem ser encaradas com a mesma benevolência com que as encaramos a elas. Nós as acharíamos perfeitamente evitáveis, quando o bem almejado não escasseia.
Já quando se trata de um bem raro, como os bilhetes para um bom espectáculo, porque existe muita procura há escassez de tempo e as filas tornam-se inevitáveis. Mas aí corre-se por gosto. Só que também aí a ansiedade é possível.
Mas também quando se quer mostrar às pessoas que o objectivo a atingir não é fácil de alcançar, quando ele implica esforço e não pode ser colocado à disposição de todos, cria-se propositadamente uma fila para lhe dificultar o acesso. É a técnica do conta-gotas.
Perversão ou necessidade da economia e da organização, a formação das filas tem de ser encarada com alguma boa disposição. Se não é possível trocar impressões, conversas, se até o olhar se torna cansativo, se as pernas se tornam pesadas, resta-nos ao menos criar com pequenos passos a ilusão de que vamos estando mais perto do seu fim.
Cada vez mais perto, que atrás desta outra virá e incessantemente, com passos maiores ou diminutos, nos aproximaremos do seu término. Desde o nascimento que assim é e com a agravante que na vida muitos passos têm que ser dados no escuro.
Já nos dão à partida um lugar numa fila em que nem tudo está à vista, cujas regras desconhecemos, mas que se nos vão revelando irracionais, inumanas, imprecisas. Falta a luz que ilumine o nosso caminho.
Para lutar pela sobrevivência, pela segurança, pela dignidade, rodeados de gentes desleal, egoísta, cínica, resta-nos pisar alguns, saltar sobre outros, pedir desculpa que lá vamos nós, para cínicos, cínicos e meio. Onde estará o ponto de equilíbrio?

sexta-feira, 1 de junho de 2007

A Portugalidade está a um preço exagerado

A invocação de questões de origem étnica, etnológica, de proximidade, até de antiguidade nada acrescenta às possíveis razões para a regionalização. Respeitando e até louvando os estudos de pormenor que sobre esses aspectos se vão fazendo, não é por aí que chegaremos a algo de consistente que constitua uma mais valia irrecusável.
É que razões para nos separarmos, para ao menos nos demarcamos, sempre se arranjarão. Para nos unirmos é que é mais difícil. Faz-me lembrar os tempos de Salazar, os quais na área agrícola só agora se estão a modificar, em que a agricultura era estudada tão ao microscópio que havia regiões, sub-regiões e micro-regiões para tudo.
Aqui porque a vinha era a latada e ali de enforcado. Aqui porque as quintas eram delimitadas a muros de lei e acolá não. Aqui porque o gado tinha cornos, mais além era galego. Aqui porque a couve era galega, lá mais longe havia a penca de Chaves.
Quando queremos, tudo serve para nos zangarmos com o vizinho. Dir-se-á que os princípios não interessam, que os nascimentos se podem fazer em leito de palhas ou de mato. O aspecto principal é as consequências. Mas nós não queremos uma regionalização cujos fundamentos assentem na zanga.
A Lei determina e bem que haja um referendo, que haja um consenso tão vasto quanto possível, uma colaboração entre as partes e entre estas e o todo. Só há um princípio que a Lei não estipula e o devia fazer de forma vinculativa para todos:
Para dar seguimento à regionalização, o Sim no referendo teria que ocorrer em todas as regiões em que se quer retalhar o País. Não podemos obrigar uma região a existir se ela própria acha que não tem condições para tal, mas que já teria se englobada noutra ou com um a diferente partição.
Acima de tudo é necessário preservar a unidade nacional, garantindo a coesão territorial. Se Portugal nasceu a Norte, fixou cedo as suas fronteiras, cimentou cedo o uso de uma língua e de valores espirituais comuns, fortificou a sua coesão lutando em todas as zonas do País contra os adversários externos.
Portugal resistiu em uníssono contra a força centralizadora de Castela, garantiu de tal modo a sua identidade nos século XIV que, quando dinasticamente caiu na esfera espanhola, já as diferenças eram tantas que não era fácil suavizá-las.
De qualquer modo valeu-nos a derrota da Armada Invencível e toda a ajuda inglesa. Não se sabe se melhor ou pior, mas a história teria sido seguramente outra. São as contingências da sorte, do destino, do fado.
Em Portugal nunca ocorreu uma tentativa separatista com esse fim último. A Portugalidade faz-se sentir de S. Gregório a S. Vicente, nas Ilhas Atlânticas e até pelo mundo fora. O esforço desenvolvido pelos descobridores não foi feito pelos moradores da Ponta de Sagres, mas por todos sem distinção.
A produtividade do Minho em homens sempre se diluiu por Portugal, por Lisboa, pelo mundo. Aí não há diferenças. Lá fora os nossos casam-se mais entre si que cá dentro. A nossa fraca mobilidade interior é secular e já fez que nós só conhecêssemos o caminho do mar de Viana do Castelo a Lagos e das cidades ribeirinhas de Porto e Lisboa.
São movimentos que se não podem atribuir a má vontade dos políticos de hoje. Os nossos melhores cérebros seguem os mesmos caminhos há séculos de migração e emigração. Os nossos políticos, mesmo sem serem cérebros (serão?), são na maioria “provincianos”, até têm vaidade nisso.
Furtamo-nos à força centralizadora da Meseta Ibérica, o Planalto Castelhano, e caímos noutras. Os nossos primeiros barcos partiam de Sagres, mas quando passaram a trazer especiarias e oiro era de Lisboa que largavam e onde fundeavam. Pouco podemos fazer contra esta centralidade. Não podemos reescrever a história.
Podemos e devemos dizer que nem com Salazar houve um aparelho central tão vasto, tão forte, tão cheios de mordomias, tão convencido, tão afastado das realidades nacionais, tão parasitário, tão sugador de recursos.
Tudo o que for possível conquistar tem que ser efectivo e não por duplicação. As sanguessugas não podem passar de “produtoras” a “fiscalizadoras”. Ninguém pode ser cosmopolita à custa dos outros.
A regionalização tem que se fazer em prol de um Estado mais eficiente, enquadrada numa perspectiva nacional, que não podemos menosprezar, mas que não nos pode sair ao preço por que está actualmente. A regionalização tem que constituir um reforço da nacionalidade, da Portugalidade.

Um boato sabe-se como nasce mas não como terá fim

Se não gostamos de boatos, sempre damos seguimento a alguns. Quando procuramos certificarmo-nos podemos recorrer às pessoas erradas que, não tendo a nossa perspectiva, dão continuidade ao boato, passam a outrem como uma certeza absoluta a dúvida que nós lhe formulamos.
Talvez a solução fosse perante a dúvida calarmo-nos. Mas o problema é que nas nossas mentes a dúvida pela-nos. O querer ficar sem dúvidas é normal e nada diz sobre qual seria o lado para o qual tenderíamos se nos coubesse desfazer a nosso prazer a dúvida em causa.
Nós convivemos mal com a dúvida. Nós queremos despejá-la depressa, queremos ter certezas. Nem que, perante a demora da verdade, nos sejam dadas só inconfirmadas certezas.
Os piores de nós nunca aceitarão dúvidas, perante a sua própria má vontade já terão certezas. Uns nunca aceitarão boatos, porque rejeitarão a sua natureza. Outros, pelo contrário estarão sempre à espera de boatos que tragam dúvidas, que de preferência nunca se resolvam, porque certezas já eles têm.
Mas mesmo entre os menos maus não faltará quem também esteja à espera do boato, quem queira achincalhar os outros e não é com dúvidas que o fará. O boato já lhe dará as certezas de que precisa.
A leviandade levará muitos a arremeter com as falsas certezas que tem e os outros que se desunhem. Também para estes se a verdade nunca vier ao de cima, tanto melhor.
Um boato na verdade nunca deixa de o ser, mesmo que as pessoas se cansem dele, mesmo que seja esclarecido pela imprensa ou pelos visados, desmentido por todos.
Mas também é verdade que aquilo que nasceu como boato, por mais que se confirme, para muita gente nunca será verdade. Nunca será mais que uma maquinação urdida para tentar destruir alguém.
Um boato faz o seu percurso, seja às claras seja subterraneamente, às escondidas, está sempre pronto a renascer, de preferência nas alturas mais incómodas, com a perversidade que cada um lhe possa dar, porque são as pessoas que lhe dão a substância e a qualidade.
O boato é como uma bomba de relógio que alguém leva com mais ou menos apego, com mais ou menos alarido, mas de que não tem o controlo. Transporta a tal dúvida que ninguém quer. Em quem tenha muitas dúvidas, mas gostava que ele fosse verdadeiro, o boato cria um medo tremendo porque lhes incute um indesejável comprometimento.
O boato também não é nada cómodo para quem, sabendo que ele é verdadeiro, gostava que ele redundasse em mentira. Porque o boato só fere verdadeiramente quem “sabe” que ele é verdadeiro, e só tem por desejo que se fale o mínimo dele, que passe por ser esquecido ou melhor ainda que se transforme em calúnia, o que será bastante difícil.
O boato é como uma bolha de sabão que tem o seu ponto óptimo para rebentar e causar estragos. Quando se confirma já pode vir tarde mas também pode tornar-se um escândalo. Tanto pode ser uma certificação, como constituir uma extraordinária surpresa. Para o boato deslizar bem quanto menos se estiver à sua espera melhor.
Para uns o boato desempenha bem o seu papel quando é falso. Porque mesmo que isso se venha a provar, pelo menos parte do seu efeito perdurará, às vezes todo o efeito pretendido por quem o lançou.
Para outros a sua plena justificação consegue-se quando se vem a atestar a sua veracidade. Há verdades, certezas absolutas que mesmo assim não são facilmente assumidas. O boato é a forma encontrada por muita gente para não correr riscos, para não ser abafada, logo que fale ou manifeste intenção de o fazer ou então porque se não sente com legitimidade para falar mas com obrigação de o fazer.
O boato, caso se não provar, pode sujar quem o espalhou e lhe deu asas, a ele aderiu e o difundiu. Mas haverá sempre quem veja com maus olhos um boateiro, original ou não, por mais consciente que este seja.
Muitas vezes nunca se consegue descobrir onde esteve a origem, o ponto de ignição do boato. Naturalmente que é das primeiras coisas que queremos saber porque daí derivará muita da sua credibilidade. Mas todo o seu sortilégio está nesse desconhecimento.
Se quem lhe dá origem quer, pelo menos numa primeira fase, passar despercebido, o mesmo acontece com muitos do que lhe dão continuidade, porque sempre podem ser acusados de eles ou organizações de que façam parte estarem na sua origem.
Aqui a imprensa tem um papel melindroso. Não faltará quem queira passar despercebido na correia de transmissão do boato e queira ver a imprensa a revelar em primeira-mão, num estado virginal, a novidade que lhe dá gozo. Ora a imprensa não pode contribuir para “peditórios” destes.Numa sociedade democrática ao boato ser-lhe-á sempre atribuída uma natureza ofensiva, um carácter insidioso.