sexta-feira, 8 de junho de 2007

As impressões que se trocam nas filas de espera

Quase todos nós odiamos as tradicionais bichas, as filas que se desenvolvem um pouco por todo o lado. Elas formam-se para apanhar o autocarro, marcar uma consulta médica, mandar uma encomenda pelo correio, fazer pagamentos nas finanças, ser atendido no banco, até para levantar dinheiro no Multibanco.
Umas são devidas à burocracia, outras ao tradicional deixa andar até à última hora, coisas que eventualmente se corrigiriam, mas outras há que não têm fim à vista. Por exemplo a fila para comer num refeitório, até num restaurante.
Hoje em dia até há um novo tipo de fila de espera que ocorre na Internet sempre que utilizamos um servidor obsoleto cuja lentidão deriva da grande quantidade de tentativas de acesso para uma capacidade limitada. Estas são particularmente chatas porque, embora nos não obriguem a estar de pé, nos põem a olhar para o visor sem hipótese de interactividade. Até desconhecemos o nosso lugar na fila e por isso o seu fim.
Acho que a cara com que encaramos qualquer fila é sempre igual, mas aqui não vemos os concorrentes/companheiros de jornada e não podemos trocar umas impressões com eles, que isto de conversas não é para este terreno movediço que repentinamente até nos pode colocar em filas diferentes, que o mesmo é dizer, podemos deixar de nos ver.
As impressões que trocamos nestas ocasiões estão como que a meio caminho entre o vazio, a ausência de qualquer contacto ou ligação e a conversa que assenta em ideias partilhadas ou que se querem construir no sentido de fortalecer qualquer contacto ou estabelecer uma ligação duradoura.
Mas nem as impressões ou conversas chegam para colmatar uma falha que nós atribuímos à organização e que nos deixa sempre pendurados, sem estarmos previamente preparados para ocupar o tempo. O estar numa fila só serve para criar ansiedade desnecessária.
Este problema resulta em muito de normalmente não irmos para uma qualquer fila com quem queremos, é quase sempre uma incógnita que se nos depara. Só numa fábrica, num escritório será possível criar hábitos de se juntarem as mesmas pessoas numa bicha para almoçar, por exemplo. Mas até isso pode ser um aborrecimento, o estar sempre com os mesmos no trabalho e na fila para o refeitório. Às tantas nem respiramos.
Já, se não “escolhemos” as companhias, mais difícil se torna o estar a falar de coisas vagas com quem “conhecemos” há tanto tempo sem com ele convivermos. Além da maldade que é o trabalho nestes lugares, esta é a pior de todas as filas que podem existir, porque nos colocam na imensidão do nada.
Infelizmente teremos que continuar a preparar-nos para entrar em filas de toda a ordem porque as promessas do seu desaparecimento não podem ser encaradas com a mesma benevolência com que as encaramos a elas. Nós as acharíamos perfeitamente evitáveis, quando o bem almejado não escasseia.
Já quando se trata de um bem raro, como os bilhetes para um bom espectáculo, porque existe muita procura há escassez de tempo e as filas tornam-se inevitáveis. Mas aí corre-se por gosto. Só que também aí a ansiedade é possível.
Mas também quando se quer mostrar às pessoas que o objectivo a atingir não é fácil de alcançar, quando ele implica esforço e não pode ser colocado à disposição de todos, cria-se propositadamente uma fila para lhe dificultar o acesso. É a técnica do conta-gotas.
Perversão ou necessidade da economia e da organização, a formação das filas tem de ser encarada com alguma boa disposição. Se não é possível trocar impressões, conversas, se até o olhar se torna cansativo, se as pernas se tornam pesadas, resta-nos ao menos criar com pequenos passos a ilusão de que vamos estando mais perto do seu fim.
Cada vez mais perto, que atrás desta outra virá e incessantemente, com passos maiores ou diminutos, nos aproximaremos do seu término. Desde o nascimento que assim é e com a agravante que na vida muitos passos têm que ser dados no escuro.
Já nos dão à partida um lugar numa fila em que nem tudo está à vista, cujas regras desconhecemos, mas que se nos vão revelando irracionais, inumanas, imprecisas. Falta a luz que ilumine o nosso caminho.
Para lutar pela sobrevivência, pela segurança, pela dignidade, rodeados de gentes desleal, egoísta, cínica, resta-nos pisar alguns, saltar sobre outros, pedir desculpa que lá vamos nós, para cínicos, cínicos e meio. Onde estará o ponto de equilíbrio?