sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

A meritocracia como forma política democrática

Há quem diga que a democracia só seria efectivamente o melhor regime político se os seus quadros pudessem constituir um meritocracia incontestável. Nós só elegemos uma ínfima parte das pessoas que exercem cargos políticos. Depois os poucos que são eleitos escolhem mais alguns, ministros e secretários, e estes são na realidade quem escolhem a grande maioria, muitas vezes sem conhecer as pessoas que beneficiam de tanta “sorte”.
Embora em democracia este procedimento seja perfeitamente legítimo e se aceite ou mesmo recomende que exista alguma afinidade e lealdade entre quem escolhe e quem é escolhido, não é aceitável que a escolha seja feita de fidelidades partidárias ou pessoais. Uma pessoa indicada pelo partido ou por um amigo pode ser muito competente, mas à partida sofre de uma suspeição de compadrio.
Além da revolta gerada por escolhas claramente fraudulentas, no geral para cargos de menor visibilidade pública, mas não menos relevantes no aparelho de Estado, há no nosso país a sensação de que também a sociedade civil se comporta afinal da mesma maneira que tanto critica no sector público.
É verdade que se caminha no sentido da maioria dos empresários escolherem um bom profissional anónimo em detrimento dum parente mentecapto, mas ainda assim muitos se vão afundado alegremente agarrados aos seus. É evidente que o mesmo tipo de pessoas no aparelho de Estado, onde menos lhes dói, se preocupam ainda menos com a competência dos seus colaboradores ou daqueles que, por força do seu peso político, conseguem impingir aos outros.
O triunfo pelo mérito é em Portugal muito difícil e a tradição não ajuda. Na sociedade tradicional não havia mobilidade social, a grande maioria das pessoas iam exercer a profissão já exercida pelos pais ou ainda pior. Só no último meio século, e em particular após o 25 de Abril, passou a ser vulgar os filhos economicamente menos favorecidos ombrearem com os mais favorecidos, suplantá-los nos negócios e ocupar altos cargos.
Este hábito novo ainda hoje encontra resistências em certos sectores sociais e profissionais mas a igualdade de oportunidades é cada vez mais vista como condição básica da democracia. Já a meritocracia encontra mais dificuldades, pelo hábito chamado da cunha, qual veneno larvar, pior que fungo, bactéria ou vírus, que empesta as nossas relações.
Na impossibilidade de haver um sistema electivo para todos os cargos de responsabilidade no aparelho de Estado, a única maneira de lhes dar alguma qualidade é mesmo uma aposta na meritocracia, na escolha de forma transparente daqueles mais capazes e a quem não repugnaria cumprir ordens legítimas dos seus superiores hierárquicos.
A meritocracia não é uma oligarquia, um sistema fechado ou com grandes limitações à entrada, em que um grupo de “eleitos” ocupa rotativamente cargos. Não é uma gerontocracia, um sistema em que os anciãos, mercê de uma experiência que já nada diz à realidade actual, controlam a evolução da sociedade. Não é uma genearquia, um sistema em que está estabelecida a linhagem dos que virão a ocupar os vários tipos de cargos disponíveis no aparelho de Estado.
No entanto estas são as principais doenças que afectam os sistemas que querem basear no mérito toda a escolha dos seus dirigentes não eleitos. Elas constituem sistemas atractivos para o tipo de imaginação portadora dessas doenças. Os oligarcas para os convencidos, os gerontocratas para os respeitáveis, os genearcas para os arrogantes. Ainda não vi um louco que não quisesse ser Rei.
Mesmo com as facilidades infraestruturais, as pessoas têm dificuldades em lutar pelo mérito. Hoje essa luta começa pelo percurso escolar, de cuja importância às vezes os jovens se não apercebem, mas em que a família pode ter um papel crucial. Depois continua numa adaptação ao mundo do trabalho, sem ser a procura de um lugar de repouso à espera de uma “merecida” reforma.
Efectivamente existem fases fulcrais em que se joga muita da nossa capacidade de chegar ao mérito. Cada etapa pode ser decisiva porque, se cada uma não for ultrapassada com êxito, as sequelas resultantes podem ser inibidoras de um desempenho meritório na etapa seguinte. E aqui convém lembrar o princípio da inteligência emocional. O empenho em prosseguir um caminho que implica algum custo depende da nossa disponibilidade emocional.
Em muitas circunstâncias a nossa descrença, a nossa desconfiança no êxito em alcançar o mérito ou pelo menos o seu reconhecimento mínimo, leva-nos a por de lado qualquer pretensão a ter uma intervenção positiva. Aqueles que são classificados de Velhos de Restelo são muitas vezes pessoas que foram ficando para trás, não numa competição leal, mas numa competição desigual entre quem teoricamente e à partida teria as mesmas possibilidades de êxito.
Por efeito também da nossa luta, as coisas hoje estão mudadas, sem podermos descurar que continua a haver muito cinismo, muita deslealdade, muita traição, muita vingança. Muitos pais continuam a educar os filhos nestes princípios, convencidos que eles se têm que defender e muitas vezes a melhor defesa é o ataque. Não vêm riscos num caminho que já conhecem.
A meritocracia não é o resultado dos elogios mútuos daqueles membros de clubes literários que a isso despudoradamente se dedicam. A meritocracia não é o resultado da protecção das sociedades secretas que se dedicam a promover os seus membros, independentemente do seu valor. A meritocracia não é lobbying exercido pelo poder económico. A meritocracia não passa por filiações partidárias ou amizades cruzadas de interesses suspeitos. A meritocracia é o que isto não é…