sexta-feira, 29 de abril de 2011

Ainda é possível um governo de esquerda?

O socialismo pode não estar na onda, mas mantém-se uma forte corrente de opinião. Uma parte significativa do eleitorado apoia-a, uma parcela ainda expressiva defende-a. No entanto, se virmos a questão somente pelo prisma da ocupação do poder, é inglória esta luta de pôr e repor o socialismo na onda quando se vê que há vendavais que põem tudo em questão e levam quase tudo por água abaixo. Quase tudo, porque alguma coisa fica e se vai acumulando como património que já não dispensamos. Infelizmente até pessoas ditas socialista põe em cauda o exercício do poder socialista Não haverá fortes raízes no terreno que perdurem, uma linha de pensamento esclarecido que se transmita, haverá muita desilusão, mas as alternativas são piores.
Iludimo-nos com a tempestade que assolou o capitalismo nos últimos três anos. As primeiras borrascas desacreditaram o sistema, este tremeu. Subitamente o dinheiro pelava nas mãos de quem o detinha. No entanto os que saíram imunes deste afundanço redobraram energias e tudo fazem para rentabilizar ainda mais as suas economias. O capitalismo parece ter recuperado o domínio do mundo com juros a pagar por quem ousou pô-lo em causa. Por seu lado o socialismo não soube aproveitar esta desavergonhada rapina e está a ser vítima disso.
Se quiséssemos aferir da vitalidade do socialismo chegávamos a conclusões contraditórias conforme os países analisados. Ondas de esquerda varrem territórios há pouco tempo indefectivelmente de direita. Noutros lados, infelizmente na maioria dos casos, ocorre o contrário. Estaremos nós sujeitos a este saltitar ao sabor da onda, sem um objectivo que não seja somente defensivo, firmando-nos apenas na força de uma corrente de opinião que ora é maioritária e logo minoritária?
Ao nos deixarmos arrastar pela procura de soluções pontuais ou mesmo pela busca do aproveitamento de oportunidades que a direita vai proporcionando pela sua ineficiência, a esquerda descura o aspecto ideológico e age mesmo, por força das circunstâncias, em contradição com princípios que diz advogar. Falta à esquerda uma linha de pensamento capaz de se demarcar do caduco marxismo e de fazer frente ao radicalismo dito de esquerda e ao liberalismo dito ”neo”, mas que não é mais que o refinamento do velho capitalismo de sempre.
Não é suficiente à esquerda haver uma corrente de opinião favorável aos governos socialistas, haver capacidade para promover ou pelo menos aproveitar ondas favoráveis a esses governos. Além de não haver uma clara noção do objectivo mais importante a atingir, não há uma linha de rumo que permita ponderar os desvios sofridos e os avanços alcançados. Terminada a época dos muros, das barreiras dentro das quais se construía uma fortaleza, afinal expugnável, o combate é agora frontal. A esquerda monolítica, irredutível em posições já ultrapassadas, tem que repensar estratégias. Mas também a esquerda tem que ser capaz de se orientar no meio da confusão que se lança entre projectos pessoais e políticos.
Terminada a época em que se lutava para que o Estado garantisse tudo a todos, é tempo de resistir à sedução do dinheiro e ao seu carácter corruptivo porque vamos ter que continuar a lidar com ele até ao fim dos tempos. A esquerda já não pode apostar no Estado como distribuidor dos bens e recursos, mas com a função essencial de criar e fazer cumprir as regras que permitam o acesso de todos ao maior número de benefícios. É imperioso garantir a todos alguma fonte de rendimentos, sendo que só o trabalho faz acrescer valor a tudo que existe, inclusive ao dinheiro. O Estado não pode repartir dinheiro a troco de nada.
Já hoje, mercê do avanço científico e tecnológico, não é possível garantir trabalho a todos. Com o aumento da produtividade e uma aparente abundância de alguns bens, inclusive de trabalhadores, o trabalho é cada vez mais desvalorizado a nível de retribuição. Neste contexto o papel da esquerda é a defesa dos trabalhadores e do Estado do saque a que estão sujeitos por aqueles que detém o poder que a posse dos meios de produção confere. Essa defesa também passa pela defesa do dinheiro sujeito a depreciação devido às actividades especulativas. Porém não é possível separar o dinheiro bom, bem aplicado, do mau, mal aplicado.
À esquerda já se impõe entretanto uma nova tarefa derivada dos conflitos entre trabalhadores Efectivamente já existe, e tenderá a existir cada vez mais, uma competição entre trabalhadores com a criação de feudos em que a especialização favorece certos grupos profissionais. A distinção entre trabalhadores é cada vez maior e, se hoje ainda só leva a invejas mal disfarçadas, levará no futuro a conflitos abertos e bem mais graves. A esquerda já não pode definir o seu espaço à velha maneira da luta de classes. A linha de separação está cada vez mais diluída.
Se em tempos o leque de rendimentos do trabalho era no máximo de um para três, hoje já quintuplicou e tem tendência para se agravar, criando assim uma desigualdade social insustentável. A esquerda tem que se manifestar sobre se quer uma sociedade assente de novo em classes sociais rebaptizadas ou se quer cumprir a sua disposição mais elementar de combater a diferenciação social. A certeza de que a maioria de nós terá que ser empregada de alguém ou do Estado deve impor um tratamento igual para todos.
Impõe-se a refundação do pensamento de esquerda em que não caibam oportunismos e facilitismos. O Estado não pode ser sobrevalorizado, mas também não pode ser descurado o seu papel na condução da sociedade. Também não é de maneira alguma a simples criação teórica de igualdades como a de oportunidades, também cada vez mais posta em causa, que chega de programa de esquerda. Sem apostar em igualdade inatingíveis pode apostar-se em equilíbrios felizes. Só a formação de uma corrente de pensamento articulado e consistente pode ajudar a que se defina um caminho, um objectivo, uma força perdurável a que a humanidade possa recorrer mesmo em tempos tão instáveis como os de hoje.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

É isto que eu não quero!

Estes tempos de exacerbada turbulência política são caracterizados por um mau uso da língua portuguesa que corrompe cérebros, uns atrás dos outros. Os problemas são sempre colocados na mesma forma simplista. Passa-se por cima das verdadeiras causas como gato sobre brasas. Vai-se imediatamente para as conclusões que, regra geral, se reduzem a um ataque com o máximo de agressividade verbal ao outro contendor político. Em vez de argumentos aduzem-se uns tantos termos de conteúdo abstracto como verdade, coerência, frontalidade, lealdade em contraponto com mentira, inconstância, hipocrisia, traição. Tudo conceitos distorcidos e fora de contexto com que se pretende uma pretensa elevação do discurso.
Usam-se termos que por si representam uma grande agressividade mas também se empregam alguns mais subtis que agridem mais que outros já muito gastos. Mas a agressividade também tem a ver com a construção verbal, com a forma como nos expressarmos. Até usando as mesmas palavras é possível construir frases distintas. Contam a ordem das palavras, a entoação e a veemência que lhes damos especialmente se usamos o modo oral, mas que são aspectos também transmissíveis na expressão escrita. Além disso pode tornar-se acintosa uma forma de dizer mais branda quando a repetimos até à exaustão. Uma das estratégias do combate político é conseguir o máximo possível de repetidores.
A forma faz parte integrante da agressividade. Por exemplo as expressões “Não é isto que eu quero” e “É isto que eu não quero”, aparentemente iguais, pressupõem uma continuidade do discurso diferente e, mesmo que o discurso acabe aqui, pressupõem significados diferentes. Se as usarmos na política optaremos decerto a segunda frase por mais gravosa. Efectivamente quando eu digo “É isto que eu não quero” estou a ser peremptório, a afirmar expressamente que “isto”, seja o que for de que se trate, é coisa que está fora do meu pensamento aceitar, comprar, sujeitar-me a. As hipóteses podem ser muitas, mas aquela que passa por aceitar “isto” está colocada fora de questão.
Já se eu disser “Não é isto que eu quero” não sou suficientemente veemente, não afasto em absoluto a aceitação “disto”. Só digo que, não sendo “isto” que coloco como primeira escolha, pode vir a ser a opção viável e aceitável. Pois com este sentido de tolerância e versatilidade nunca seria adoptada no nosso discurso político. Quem a usasse neste sentido seria tido por titubeante, cheio de incertezas, quando não de receio ou medo. No nosso discurso de homens decididos e cheios de certezas, não entram frases tão pouco assertivas. Temos que ser duros, agressivos, impiedosos. O “não” tem que estar bem junto ao “quero” para que seja clara a sua anulação. O “não” é em política o termo mais usado.
Além do curto-circuito argumentativo esta construção verbal visa os mesmos objectivos. Escolhem-se as expressões mais fortes, mais contundentes, pelo que hoje já se não conversa com quem tenha ideias diferentes. A palavra está hoje prenhe de ódio, por mais doces que nos mostremos. Estamos repletos de esquemas mentais perversos que transportam tudo para a zona negra do nosso espírito. O apelo a valores abstractos, o acinte posto nas palavras, a repetição são a parte mais visível do mau uso das possibilidades da linguagem. Mas afinal cada qual só responde como pode porque a não resposta é a morte imediata.
Há preguiça em quem aceita estes esquemas, há astúcia em quem os constrói. Muitos são esquemas anacrónicos, foram incutidos no nosso pensamento pelo salazarismo. São de fácil reprodução. Transmitem-se de geração para geração. Os radicais propuseram lavagens ao cérebro e todas falharam. Limparam-se os dados, mas não se limpou o modo de pensar. A assimilação dos esquemas mentais já testados é mais imediata. Não se construíram os instrumentos intelectuais que possibilitariam outra forma de pensar.
Não nos devemos conformar, mas a realidade é que o pensamento dominante é o pensar “pequeno”. Somos dominados pelas expectativas e pelos interesses e, para este efeito, até é irrelevante distinguirmos entre estas duas categorias mentais. Para simplificar referimo-nos normalmente a interesses como aqueles factores que condicionam o nosso comportamento. È na convenção do respeito pelos interesses de todos que assenta a democracia. Quem não respeita esta convenção que tem como consequência o facto de um homem valer um voto, também está pronta a patrocinar as tais lavagens ao cérebro e a fracassar.
Porém aceitar a defesa dos interesses de todos não é aceitar a forma de pensar dominante. Felizmente que é cada vez menor a fobia em relação a quem pensa diferente. Há uns tempos quem pensasse diferente era logo acusado de pretender pôr em causa os interesses alheios. Se as expectativas e interesses pessoais, grupais ou de qualquer ordem menor do que a comunidade no seu todo, podem ser postos em cheque pela alteração da forma de pensar, o objectivo principal é levar as pessoas a aceitar ver para além do seu mundo restrito e possam contribuir para a formação de uma nova e solidária vontade colectiva.
Em parte os políticos são vítimas do imediatismo, da necessidade de ter respostas prontas para adversários contumazes. No entanto não é caso para serem desculpabilizados. Nem nos devemos iludir por aqueles que aparecem com discursos aparentemente limpos e que chamam a atenção para o pensamento mais titubeante doutros. A destreza no discurso político pode ser importante mas não é decisiva. O mais importante é o interesse em jogo, a compatibilidade entre os nossos próprios valores, os que são embandeirados pelos políticos e aqueles que na verdade estão por detrás da sua actuação

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Uma alternativa que se esvaneceu

Em determinados momentos históricos surgiu uma ideia benévola de que tudo devíamos fazer para que o Partido Comunista (PC) evoluísse e abandonasse o estalinismo ou em alternativa se criasse um partido novo capaz de ser o depositário daquele repositório de bons princípios que ainda há quem julgue que o marxismo poderá ser. O PC sempre se riu desses propósitos, mas sempre levou a sério os opositores internos e externos da sua direcção. Sempre manteve os seus oponentes à distância, conseguindo o controle do aparelho e da ideologia. Porém as munições usadas para atacar os velhos partidos e grupos radicais que tentaram ocupar o seu lugar já não têm sido tão eficazes contra o Bloco de Esquerda (BE). A ideia de muitos que procuraram uma alternativa ao PC passava pela sua própria mudança ou pela ocupação do seu lugar, tornando esse lugar mais radical e menos conciliador com os preceitos democráticos. Tal ideia sempre foi partilhada por muitos dos dirigentes actuais do BE que passaram a sua juventude no próprio PC ou em grupos concorrentes que o PC apelidava de grupelhos por não seguirem a ortodoxia soviética. Perante a forte resistência do PC eles cederam. Mesmo acabado o País dos Sovietes o PC aguentou a sua própria ortodoxia, sem grandes referentes externos, mas paradoxalmente tal facto também retirou aos opositores muitos dos argumentos que usavam. Diferente da ideia desses dirigentes era o pensamento do eleitorado. Permaneceu neste a ideia benévola de um partido de esquerda, verdadeiramente socialista. Porém numa atitude suicida o Bloco está cada vez mais longe desse objectivo e quer-se parecer cada vez mais com o PC. O radicalismo do Bloco, a sua política de terra queimada, a tenacidade com que pretende obter o apoio duma classe média egoísta, com a sua pretensa elevação intelectual, já não corresponde ao perfil de um partido não sectário, capaz de contribuir para que, no quadro de uma esquerda não monolítica, vençam as ideias mais inovadoras e solidárias. O Bloco distancia-se cada vez mais do humanismo e cada vez menos do PC. Desencadeou-se uma guerra permanente e uma constante manifestação das diferenças, com o uso de uma linguagem depreciativa e mesmo ofensiva em relação a quem não comungue das suas ideias terroristas. Seguiu-se a prática habitual dos partidos ditos mais à esquerda destinada a manter inviolável o seu espaço político. Porém, à medida que os discursos se aproximam entre o Bloco e o PC, vai-se verificando que a sua convergência faz com que o seu peso total diminua, necessariamente à custa do elemento mais fraco, o Bloco. Confirmam-se os receios de absorção que sempre existiram ao tentar criar uma alternativa não alinhada entre a esquerda monolítica e a esquerda reformista. Muitos recordarão que em política quando se mete uma ideia na gaveta, nunca de lá sairá pelas mesmas mãos. A ideia de um partido “verdadeiramente socialista”, dum partido devidamente estruturado para não ceder ao radicalismo, mas igualmente estruturado para não colocar o socialismo na gaveta mantém-se no imaginário social. O PS desiludiu, o Bloco só iludiu incautos. Continua a existir um lugar vago, sente-se ainda a necessidade dum partido bem definido à esquerda. Esse lugar só pode ser aquele que está a ser indevidamente ocupado pelo Bloco. Este partido ocupou temporariamente no imaginário popular aquele lugar ideal, mas enquistou-se e bloqueou as hipóteses de um governo à esquerda. O Bloco é mesmo uma rocha pesada e sem alma. À medida que cresceu, este BE mais se tem tornado um partido truculento, sempre pronto a adoptar como suas todas as lutas, sempre dispostos a não deixar ao PC a iniciativa em termos de contestação e oposição. O BE só não consegue roubar ao PC os métodos, a ideologia tornou-se supletiva ou mesmo dispensável, só em termos de radicalidade se nota alguma diferença. No entanto a originalidade inicial do BE foi-se diluindo perante a agressividade com que se tem disposto a lutar pelo lugar do PC no panorama político. O BE cedeu ao tacticismo, ou praticismo imediatista, de curto prazo. Como pode um partido de esquerda deixar-se envolver na mesma luta política da direita, utilizar os mesmos sentimentos da direita, defender os mesmos estratos sociais, utilizando os mesmos argumentos economicistas? Não se vêem ideias sobre a forma de construir uma alternativa a uma forma de governar típica da direita. Vemos dois partidos, o PC e o BE, que se combatem pelo mesmo espaço político, não se distinguem diferenças nos seus propósitos, têm linguagens similares, caminham para o mesmo modelo de centralismo organizativo. O que os distingue é a sua implantação, tanto a nível de imaginário popular, como a nível de organizações sociais, em particular no sindicalismo. Neste aspecto o Bloco não é alternativa ao PC, nem ajuda a criar uma alternativa à direita. O facto do BE ser um partido novo, sem uma passado pelo qual se responsabilize, mas também sem passado que o credibilize, parece levá-lo a querer disputar a respeitabilidade alheia sem curar de fazer o seu próprio percurso. O BE nasceu da diferença e deixou-se arrastar pela similitude de discurso. Um dos motivos desta colagem é não ter, nem de perto nem de longe, a mesma capacidade mobilizadora do PC. O Bloco não lançou ancoras para o futuro. As poucas iniciativas nesse sentido não são suficientes para abrir um percurso alternativo, para cimentar um conjunto de ideias próprias, para constituir uma alternativa mesmo que contra o PS, mas mais apelativa do que o velho comunismo. A simpatia com que algum eleitorado viu o BE derivava do surgimento de uma esquerda sem as maleitas, os vícios e trejeitos de uma esquerda facciosa e rancorosa, que não desculpava as ideias alheias. Não se via no BE um concorrente directo ao PC a utilizar as mesmas armas e as mesmas pessoas. Via-se no BE uma esquerda sem mácula, sem utilizar as velhas ideias da inveja e do ódio sociais. Esperava-se um partido construtivo. No entanto os genes dessas ideias velhas e corrosivas estava lá, no seu núcleo duro, nos fantasmas do passado, reminiscências reavivadas de lutas ultrapassadas, fora do tempo. Afinal a alternativa secou. Esta alternativa era falaciosa, só nos resta a esquerda reformista.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Ideias, ondas, correntes

Sempre se deu um grande importância a ter ideias. Conseguir ter ideias originais nunca foi fácil. Porém tudo mudou nas últimas décadas. As ideias circulam agora por aí em todos os meios possíveis e imaginários e à distância de uma mão. Repentinamente ideias já velhas são enroupadas doutro modo e já parecem nascidas há pouco. A comunicabilidade aumentou exponencialmente. Hoje é tão fácil obter uma ideia como encontrar e meter no carrinho o objecto que se procura num supermercado numa qualquer esquina perto de si. Os meios de comunicação já não se preocupam em dar notícias, mas sim em espalhar ideias. As notícias também utilizam ideias, como é evidente, mas estas não são usadas com imparcialidade de modo a que nos transmitam uma imagem real. Há hoje um modo de descrever factos que tende sempre para o reforço de uma ideia pré-existente, o que não revela qualquer criatividade. Colocam-se na notícia ideias que circulam por aí, venham ou não a propósito, e dá-se assim uma interpretação e uma justificação dos factos que dispensam qualquer esforço intelectual adicional. O que interessa é ter umas ideias para despejar à mesa do café, da secretária ou nos encontros fortuitos que se nos deparam. Atrevemo-nos a pesar ideias só porque elas aparecem referidas na notícia. Atrevemo-nos a determinar o seu valor sem que no nosso mapeamento mental existam as noções básicas que enformam o problema em questão. Temos direito a pronunciarmo-nos sobre tudo aquilo que nos diz respeito é verdade. Não temos tempo para tirar todos os cursos do mundo que, teoricamente, nos possam habilitar a ter um pronunciamento acertado e assertivo sobre qualquer assunto que nos diga respeito. Mesmo com o perigo de errarmos, mesmo utilizando apenas as tais ideias que por aí se difundem, temos todo o direito de nos pronunciarmos. Essa forma de agir até tem uma vantagem. A realidade muda, novos acontecimentos ocorrem, novas opiniões se formam e desse modo estamos sempre prontos a recolher novas ideias sem curar de saber da sua compatibilidade com aquelas que antes tínhamos. Dispensamo-nos de qualquer esforço intelectual de elaboração dum discurso próprio e de assimilação coerente dessas ideias. Assim nunca chegamos a definir conceitos que nos possam ajudar a compreender a realidade e quaisquer ideias anteriores são facilmente descartáveis. Se necessário recorremos ao velho truque do “enganaram-nos”. Tal justifica o deitar fora todas as ideias que tínhamos coladas no nosso mapa mental para fazer parte do nosso argumentário do dia-a-dia e recolher aí outras. Hoje todo o candidato a manipulador e demagogo sabe que assim é e tenta utilizar os meios técnicos disponíveis para difundir as “suas” ideias. Estar em maioria nos orgãos de informação, conseguir dominar a agenda política, isto é, colocar lá os assuntos mais favoráveis e a sua visão mesmo que distorcida deles, ter os repetidores bastantes para levar as suas ideias a todos as camadas sociais, é o grande passo para aquela difusão de ideias elaboradas à medida. Para este efeito há regras próprias, porque o discurso não é imutável, é necessário começar de um modo e ir abrindo espaço à introdução daquelas ideias mais duras que realmente interessam à agenda escondida. Não interessam minimamente que as ideias sejam esclarecedoras, interessa sim que sejam colocadas num enquadramento sugestivo, de modo a encadeá-las, se possível, com outras já antes difundidas. A manipulação tem a ver com a lenta reorientação do sentido dessas ideias, com o seu lento reenquadramento, com uma subtil introdução num contexto adequado. A este fenómeno de uma sucessão de ideias concordantes e concomitantes designa-se por onda. Nós, os que nos submetemos às ondas, já não conseguimos ter o domínio total do nosso mapeamento mental. Do mesmo modo quem formou a onda e quem contribui para ela perde muitas vezes a capacidade de a reverter ou redireccionar. Normalmente só um embate brusco da realidade consegue destruir uma onda bem montada. Numa onda os conceitos adquirem uma configuração própria, no extremo a verdade pode ser a mentira. Desmontar a onda por via intelectual pode ser um esforço inglório porque implica um trabalho longo de análise de conceitos, da sua articulação, um desmontar da dinâmica social que lhe está subjacente. Montar uma onda contrária, capaz de vir a suplantar a que prevalecia anteriormente pode também não garantir o sucesso. Normalmente é a ocorrência de factos anómalos, imprevistos e negados por quem alimenta a onda em voga que pode levar a um revigoramento súbito de uma outra onda até aí inerte que pode inverter a relação de forças. Uma pequena onda que se forma em tempos mais desfavoráveis em oposição a uma outra maior tem possibilidades de marcar presença quando as condições se tornarem melhores. Quando tal não acontece, quando não aparece uma onda pronta a substituir a anterior, dizemos que ocorre o vazio. Como até quem beneficia com a grande onda dominante tem horror ao vazio incentiva sempre o nascimento de algum movimento de ideias contrário, alguma onda alternativa. No entanto não são as ondas que nos deviam interessar, mas sim as correntes de opinião e de pensamento necessárias para que uma comunidade projecte o seu futuro. As ondas são fenómenos passageiros, pouco estruturados e degenerativos. As correntes de opinião são fenómenos mais sólidos a que as pessoas se sentem vinculadas, em que as ideias têm um sentido preciso, que criam elos sociais. As correntes de pensamento são fenómenos mais vastos que permitem uma linha prolongada de actuação. Certas correntes podem-se tornar a prazo travões por desactualizadas, outras vezes remetem para aventureirismos despropositados. No entanto são as correntes de pensamento que permitem que se lute por ideais bem estruturados. Sem essa linha de actuação que possibilite o esforço colectivo não há progresso humano. A ansiedade actual deriva de estarmos sujeitos ao efeito das ondas e a não haver fortes correntes de pensamento.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

O que podemos esperar da educação?

A educação mais antiga de que temos algum conhecimento, se de educação a podemos apelidar, passava por nos convencermos que nem todos tínhamos o direito de exercer todos os nossos instintos. Cada grupo da hierarquia social tinha os seus direitos, alguns partilhados com outros grupos, mas também alguns que lhe eram outorgados com certa exclusividade. A educação servia o poder e à sua consolidação. Os Estados com alguma estrutura preocupavam-se com a educação dum número restrito dos seus habitantes e os outros ficavam limitados à educação religiosa, mais preocupada com deveres do que com direitos e a sua partilha. A educação moderna também se não preocupou directamente com a partilha de direitos, somente se ocupou da sublimação daqueles instintos por parte de sectores mais vastos ou da generalidade da população como forma de atenuar a conflitualidade social. Partindo do princípio de que o homem é intrinsecamente mau, o progresso basear-se-ia em substituir os piores instintos, os mais agressivos, por instintos cada vez mais moderados. As reacções ofensivas teriam assim uma forma de controlo da sua intensidade. Dessa forma, sempre que houvessem conflitos, eles seriam resolvidos a um nível de agressividade mais reduzida. A educação moderna é um esforço intelectual meritório que o poder nem sempre acompanhou. Em especial no século vinte surgiram mesmo regimes totalitários que promoveram uma acção inversa de partilha de instintos agressivos, confiantes em que seriam capazes de os satisfazer e de consolidar por essa via o seu poder. Felizmente os regimes totalitários foram derrotados, tanto na Alemanha como na Rússia. A modernidade foi entretanto fazendo o seu caminho em países como a Inglaterra e a França, cuja base cultural, embora com muito custo, foi sendo suficiente para suster as tentativas regressivas. Em várias épocas da história se pode falar de um tipo de educação moderna que soçobrou perante o reavivar de fundamentalismos ancestrais, muitas vezes trazidos por invasores ou imigrantes que acabaram glorificados. Com base nessas experiências históricas os teóricos de direita defendem que a educação de tipo moderno traz atrás de si inevitavelmente a decadência. Na realidade essas experiências provam que a nível global temos de estar preparados para nos defendermos dos perigos que possam ocorrer e a sublimação dos instintos, que por essa razão existem, nem sempre é a melhor solução. Mas se cedermos aos instintos na sua forma primária estaremos a pôr em perigo os sistemas de valores que o homem foi construindo. A maioria dos Estados faz hoje sérias tentativas para conciliar a necessidade de defesa com a manutenção de direitos já quase dados por adquiridos, como a eliminação da violência nas relações sociais. Porém a dificuldade dessa conciliação, mais a dificuldade de identificar com precisão todos os perigos que podem ocorrer, criam nos Estados mais débeis a impressão de que está em causa a sua sobrevivência e a própria estabilidade social. Esta questão leva a direita a pôr em causa a continuação da educação moderna sustentada naquele princípio de sublimação dos instintos, o que criaria um homem fraco. Não seremos nós capazes de, por via intelectual, com a compreensão da natureza e modo de actuação dos nossos instintos, tratar directamente deles, sem necessidade da sua sublimação? Não podemos nós ter o domínio absoluto de nós mesmos e podermos utilizar as armas ancestrais de que dispomos por via daqueles instintos quando houver necessidade disso? Decerto que é um caminho difícil, mas capaz de levar a um novo tipo de educação a que podemos chamar de pós-moderna. Tratar-se-ia de alterar o imperativo de dar satisfação a um instinto sublimado por uma de duas vias possíveis. Uma via longa de conseguir o domínio absoluto sobre o surgimento dos instintos, na linha de uma mudança radical do homem. Haveria por essa via uma eliminação de um certo tipo de reacções de que somos portadores por terem assumido um carácter genético. Uma via mais curta e mais viável de tornar selectiva a resposta ao despoletar dum instinto. Uma inibição de natureza intelectual exercer-se-ia sobre a própria resposta, o que teria a vantagem de permitir que o processo inverso pudesse ser adoptado no caso de necessidade absoluta. Durante a nossa longa evolução fomos capazes de ir retardando as nossas respostas instintivas. O espírito de sobrevivência que nos levou a adoptar procedimentos rápidos em situações graves ter-nos-ia levado à sua ponderação até limites razoáveis. Porque não seremos capazes de uma inibição absoluta? Efectivamente em princípio fomos levados a adoptar, gravar e a despoletar de uma forma automática alguns procedimentos rápidos essenciais à nossa defesa e sobrevivência. A organização social impôs-nos restrições a esta forma de agir através da competição, da luta e da subjugação. A melhoria da organização social levou-nos a uma avaliação mais consciente dos pós e contras dessas atitudes espontâneas e à supressão prática de atitudes automáticas, pelo menos por parte dos que estão inibidos de exercer o poder. Este modo de agir baseia-se no princípio de que é necessário o apoio de alguma forma de coacção para levar à assumpção de uma qualquer forma de avaliação “consciente”. Assim, dissimulada embora a coacção, a sociedade vai incutindo na sua juventude uma ponderação atempada, o que não evita outras coacções pela vida fora. Nem todos aceitam participar numa sublimação de instintos agressivos, alguns até os cultivam. Não estaremos já suficientemente evoluídos a nível de capacidades intelectuais para substituir todos os processos mais ou menos coercivos e agir numa liberdade que assente na ponderação adequada num tempo de resposta que a situação justifique? Hoje a situação social é esquizofrénica. Homens teoricamente preparados para adoptar e agir segundo princípios de uma educação pós-moderna fazem tudo para manipular outros homens, a maioria dos quais é decerto prisioneira dos seus pequenos circuitos comportamentais que não conhecem paragem ou retrocesso por via dos processos intelectuais de que estão imbuídos. Toda a educação só é efectivamente eficaz se for suficientemente abrangente para não permitir movimentos contrários ao progresso da humanidade.