sexta-feira, 25 de março de 2011

O que esperar da juventude?

Quando a juventude que resultou do Baby Boom do pós-guerra, que viria a ser estudante nos anos 60, se começou a manifestar no México, em Paris, um pouco por todo o lado, as gerações anteriores temeram o pior. A violência era natural, fazia parte do material genético, psicológico, familiar, social e político. Esta geração não tinha achado outra forma de se exprimir. A violência era temida, mas também apelativa. Tudo estava bloqueado por temores antigos, mas não faltavam ideias simples, altruístas, temas fracturantes para incorporar nessa rebeldia pronta a estilhaçar barreiras. Fazer alterar coisas muito simples como a sexualidade foi para essa geração um objectivo grandioso que justificava grandes meios.
Essa juventude manifestou-se com alguma violência. E dessa forma conseguiu colocar na agenda política muitas questões até então interditas. Na sequência dessa movimentação social viria mesmo a dar-se uma alteração significativa do modus vivendi. A sociedade viria a incorporar muitas das reivindicações então colocadas. No entanto a desigualdade económica agravou-se, só não foi levada a sério enquanto as melhorias iam chegando para todos. Os problemas financeiros vieram terminar com este estado de letargia. Novas questões ajudaram a criar um clima de insegurança que esta geração pensava já ter ultrapassado.
Esta geração, uniformemente apelidada de geração de Maio/68, está, passados mais de quarenta anos, na sua fase mais madura. Já não é capaz de colocar as questões com o mesmo idealismo da sua juventude. Quando na generalidade já tem no seu curriculum vivências que garantem que os seus objectivos de vida foram em grande parte realizados, esta geração sente-se cansada e paradoxalmente insatisfeita. Mas, se a insatisfação que a geração de 60 transporta remete para a fadiga, remete também para a incapacidade de lidar intelectualmente com instintos sublimados. A geração de 60 nunca levou a violência a estados de excesso.
Paradoxalmente esta geração de 60 está possuída duma verborreia inenarrável. Foi capaz de saber aquilo que faltava à anterior, mas agora não é capaz de deixar uma herança que livre os seus filhos das inquietações que julgava extintas. Terá enfim constatado que a sua contribuição enquanto geração para o progresso da humanidade não foi suficientemente significativa. Fez progressos grandiosos, mas que, como qualquer construção humana, ameaçam ruir. Tornou-se irritável e insegura com a responsabilidade do poder. O risco de atingir a senilidade sem deixar uma herança sólida tornou-se uma obsessão para muitos.
Os progenitores desta geração de 60 temeram a sua irreverência, mas cedo ela foi capaz de ganhar respeitabilidade em detrimento da autoridade que até aí prevalecia. A geração de 60 era portadora de ideias novas, de novos paradigmas que afrontavam velhas ideias, esquemas ancilosados. Se a geração de 60 pôs em causa o poder, rapidamente se apercebeu que necessitava dele para implementar essas novas ideias e instituir paradigmas mais estruturantes. Hoje não sabe que fazer com o poder que detém. Como foi possível perder assim a sensatez quando dizem que a idade a traria?
A geração de 60 chegou ao século XXI sem incutir nos seus filhos aquele temor reverencial com que ela via os seus ascendentes. As ideias que enformam a actual juventude são já bastante diferentes daquelas que eram vulgares então. Surpreendentemente é a geração mais velha a querer que a geração mais nova tenha um impulso semelhante ao dela para avançar com ideias e paradigmas sobre os quais se pudesse construir o futuro para as próximas décadas, como em certa medida eles construíram o seu nas décadas passadas. As suas próprias ideias estão esgotadas. Os seus paradigmas estilhaçaram-se.
A geração de 60 foi capaz de avançar contra a família e a sociedade de forma frontal, sem subterfúgios. Abriu numa mentalidade arcaica e inconsistente uma abertura promissora. Quase acabou com os problemas de mentalidade, tornou todos livres, estabeleceu um padrão de modernidade que se difundiu largamente. Porém não terá resolvido muitas das questões então colocadas, principalmente aquelas que sempre foram tidas por cruciais para resolver o problema humano e social. Efectivamente mantém-se por resolver o problema do dinheiro e de tudo o que lhe está correlacionado.
Chegamos a um tempo em que tudo se parece resumir à economia, tema que a geração actual vê com displicência. A desigualdade, sendo maior, não é vivida de forma tão afrontosa como o era em tempos idos. O discurso da geração de 60 era integracionista e referia aquilo que era calado, silenciado e condenado. A geração actual tem dificuldade em formular um discurso assim porque a sociedade já não assume ser segregacionista e ter temas tabus. Falta à actual geração um discurso mínimo para uma situação complexa em que convergem dados, opiniões de origem variada, mas baseadas nos mesmos esquemas mentais
A geração de 60 juntava-se na rua, discutia na rua, agia na rua. A rua era para ela vital, como o espaço em que fazia sentido ter liberdade. Na rua colhia ideias e daí se partia para casa, para os grupos, para a sociedade. A actual geração descobre a rua, só que esta já mudou de natureza. A rua é agora a antecâmara de um estúdio de televisão, um espaço que incute algum receio e para o qual todos se preparam nessa perspectiva. A actual geração distraída em casa, no bar, na festa, parece querer voltar à rua. Porém, querendo ter um discurso novo, esbarra na hipocrisia, no cinismo, na mistificação que campeiam no discurso público, dominado pela transfigurada geração de 60. Não se é rebelde em casa. A actual juventude quer ser rebelde, mas encontra a rua dominada pela verborreia ordinária dos mais velhos.

sexta-feira, 18 de março de 2011

A pirâmide que todos temos que subir

A pirâmide social é um facto, um dado sociológico, uma inevitabilidade que toma a forma de lei que se aplica a todos os organismos hierarquizados. Uma pirâmide pode ser mais chata ou mais aguçada, mas nos dois casos, quando o é exageradamente, é porque a realidade que ela representa enferma de alguma deficiência. Pois quando toma a forma de lei, de modelo a seguir, a pirâmide é a forma ideal para cada grupo particular de casos.
Uma pirâmide demasiado chata representa um organismo pouco funcional em que há demasiados iguais a cada nível e uma concentração exagerada de poder de decisão em grupos inorgânicos. Uma pirâmide demasiado aguçada representa um organismo em que o poder de decisão está demasiado disperso por vários níveis, tornando morosa a chegada de uma decisão a quem tem que a executar e tornando difícil a identificação de quem tomou a decisão ou falhou na sua transmissão quando se trata de assumir responsabilidades.
Uma pirâmide funcional será aquela em que o número de elementos dum nível inferior seja o adequado ao trabalho de coordenação do elemento do nível imediatamente superior e este se encontra acessível em tempo útil a cada elemento de nível inferior. As organizações sociais e as laborais, as informais e as formais, apresentam diferentes solicitações, diferentes gruas de exigência, são-lhe inerentes diferentes graus de responsabilidades, dando origem a uma variabilidade na sua eficiência prática. Dentro dum número limitado de opções, impõem-se o encontro do tipo de pirâmide mais adequado a cada caso.
Numa sociedade em que as pessoas individualmente se desconhecem, a estrutura das pirâmides e a posição em que cada um participa já é um indicativo das suas características, muitas vezes é o único de que dispomos. Como o indivíduo participa simultaneamente em várias organizações, desenvolvem-se contradições entre essas suas participações, sempre reforçadas pelos inimigos e disfarçadas pelos amigos. Um desenvolvimento homogéneo de cada um pressuporia que não houvesse equívocos e as várias participações remetessem todas para uma única e unívoca posição na pirâmide social mais abrangente.
Um indivíduo pode estar numa pirâmide a um nível bastante inferior e pode estar noutras a um nível mais relevante. Porém à medida que as posições sociais deixaram de ser herdadas, mesmo que essa herança continue a desempenhar um papel importante, já teve que prestar outras provas, passar por outros crivos para garantir idêntica posição àquela que noutros tempos receberia por herança. Individualmente há agora uma mobilidade social maior, mas essa mobilidade continua a ser bastante condicionada por muitos outros factores que o poder consegue controlar.
A estratégia pessoal para a ascensão de posição na pirâmide social pode passar por diferentes formas de investimento que se repercutem em diferentes pirâmides de valor social. Sendo umas mais valiosas que outras a média ponderada resultante poderá representar a característica básica do indivíduo por constituir a sua inserção no panorama social. Este entendimento leva o indivíduo a investir o máximo nas organizações ao seu alcance de forma equilibrada. No entanto há quem pense que assim nunca sairá de uma mediania confrangedora e faça por investir tudo numa das organizações com maior visibilidade social e funcione assim como alavanca para outras.
Só que uma boa participação numa organização pode não alterar significativamente a média das nossas intervenções, incluindo aquelas que ocorrem independentemente da nossa vontade. Quando se trata de criar imagens com segundas intenções utiliza-se essa boa participação para criar um simulacro de muitas outras participações que não correspondem à realidade. A nossa sociedade está cheia destes métodos para criar ídolos com pés de barro. Uma boa contribuição num domínio especifico mão é sinal doutras contribuições igualmente meritórias. Os casos comprometedores são mais do que evidentes.
A modéstia recomendaria que não desistíssemos de vermos reconhecidos os nossos méritos, mas reconhecêssemos também os nossos fracassos. Essencialmente que mantivéssemos uma posição de equilíbrio no desequilíbrio social. Cada vez é mais difícil a uma pessoa dominar um grande panorama do saber já disponível. Mesmo assim poderemos e deveremos ter uma visão de conjunto, suficientemente versátil para assimilar aquilo que se vai adquirindo e suficientemente segura para nos dar estabilidade.
Cada vez mais as pessoas se integram em mais organizações em cada uma das quais desempenham um papel diferente doutro. Cada vez mais cresce o número de pessoas inconformadas com a sua posição na pirâmide social. Mesmo a sua subida raramente lhes trás estabilidade. Cada vez mais a pirâmide de rendimento é a única referência para todas as comparações. Cada vez mais se quer vender o mérito como resultado do valor económico da pessoa em detrimento de procurar que seja dado o respectivo valor económico a quem demonstrou mérito dentro de uma organização.
Não nos podemos furtar a pertencer a organizações, não nos podemos subtrair a integrar a pirâmide social. Cada vez mais difícil será livrar-nos da insatisfação e do desencanto por não podermos usufruir em plena das suas possibilidades. Cada vez há uma maior preocupação com o que nos falta do que há usufruto do que se tem. Sentimo-nos aprisionados num edifício a que falta o nosso empenho. Sem uma filosofia de vida, sem um olhar abrangente, sem uma postura em que a modéstia não conflitue com a afirmação, estamos a construir um edifício oco e sem sentido.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Aspirações diferentes para um futuro diferente

O futuro é uma aspiração a que todos nos julgamos e bem com direito. Porém que futuro? Entre o futuro que ambicionamos e aquele que viremos a viver vai decerto haver uma grande diferença. Como é raro sermos surpreendidos para melhor o mais normal será virmos a ter um futuro pior do que o que antevemos. Como não ganhamos nada em sermos surpreendidos, seja viver na ilusão dum futuro melhor ou viver numa amargura que se não justifica, o melhor é vermos a evolução mais provável mediante aquilo de que dispomos e que melhor conhecemos, a nossa mente.
Mediante aquilo que temos tido e o que não tivemos, vamos construindo um futuro de desejos com pouca lógica interna. Não é saudável abandonar muitas das nossas aspirações e às vezes fazemo-lo por economia de recursos. Por outro lado esquecemos mais depressa aquilo que tivemos do que aquilo que não tivemos e na altura desejávamos ter tido. Recuperar as aspirações que tiveram sucesso pode ser bom para avaliar as aspirações de hoje. Aspirações há que são mesmo de abandonar, mas é bom que compreendamos as razões de as ter tido.
Porque muitos de nós fomos comunistas ou, pelo menos, complacentes com eles? Não foi pela falta de informação que Salazar impôs, pela sua propaganda sem qualquer crédito intelectual. Sabíamos da perseguição aos escritores e intelectuais de Leste, da invasão da Hungria e Checoslováquia, da forma como os comunistas haviam ocupado o poder no Leste da Europa, e no entanto relativizávamos tudo, atribuíamos os erros cometidos ao facto de o comunismo ter despontado num país pobre e rural como a Rússia que era Imperial, mas atrasada no seu imenso território. O comunismo foi pensado para um país evoluído.
Portugal era também um país atrasado, constituía uma máquina pesada, apática, difícil de deslocar para novos voos. Porém nos anos cinquenta o país estava exausto e Salazar prestes a cair. Só que paradoxalmente três factores haveriam de mudar o rumo dos acontecimentos. Primeiro a entrada na EFTA permitiu uma abertura ao comércio e a possibilidade de instalação de novas indústrias para aproveitar a mão-de-obra barata. Depois as guerras coloniais permitiram um reagrupamento, uma unidade à volta de um objectivo, porque então quase ninguém aceitava a perca das colónias e poucos políticos eram favoráveis à independência colonial. Em terceiro a emigração para a Europa Central foi o factor que descomprimiu a tensão social, permitiu mascarar a miséria dos campos, possibilitou a entrada de divisas preciosas para a manutenção do regime.
Criou-se na década de sessenta um clima de condescendência com o carácter musculado do salazarismo, tendo este por seu lado suavizado o controlo sobre a população. A perseguição tornou-se mais selectiva. Dado o considerável apoio implícito dado às teses de Salazar, devido à ocorrência daqueles três factores atrás descritos, as organizações que podiam pôr em causa as suas teses tinham dificuldade de implantação na população em geral. As vozes incómodas que surgiram do lado da Igreja Católica foram colocadas de quarentena de forma fácil. Os velhos republicanos já tinham perdido o folgo.
A adesão às teses de uma revolução democrática e nacional de Cunhal era ao tempo um desfecho plausível para quem queria fazer alguma coisa pela mudança de um estado de coisas moribundo, doentio, que, de qualquer modo e à força dos factores exteriores, daquilo que Salazar chamava de ventos da história, haveria de terminar mais dias menos dia, mas cuja espera nos desesperava. Já que assim haveria de ser, a maioria limitou-se a esperar mesmo que até lá tivesse que ir cumprindo os serviços mínimos que o salazarismo imponha. Os rebeldes eram poucos e na enxurrada em que se transforma a história deles não resta valor.
Com Marcelo houve uma continuidade pouco evolutiva. O tempo encarregou-se dos estragos e Marcelo não conseguiria obviar ao estado de saturação dos envolvidos nas guerras coloniais. Ele subestimou o papel da motivação pessoal na moral das tropas e não conseguiu travar a avalancha exterior que cada vez mais ia ameaçando precipitar-se sobre o país. Portugal já estava num beco sem saída há muito, mas na realidade parece que ninguém se preocupava muito com isso, somente ninguém queria bater com o nariz na parede do fundo.
Aqueles que tinham instituído o regime e tinham sido o seu sustentáculo durante uns cinquenta anos, o exército, sentiram a responsabilidade. Muitos levaram à letra os ensinamentos de Salazar, que atrás dele viria o comunismo, outros sobrestimaram a força deste e puseram-se ao seu serviço antes que fosse tarde. Outros ainda se reservaram até que fosse aplicada a decisão mais dolorosa que era a descolonização. Os 19 meses de PREC que ocorreram entre 25 de Abril de 1974 e 25 de Novembro de 1975 foram o período de descoberta para muitos, de aventura para outros, de realinhamento de pensamento e acção para aqueles para quem as dúvidas eram maiores que as certezas.
Porque razão terão alguns abandonado o lado dos que no processo advogaram a aplicação do teoria comunista, cujo modelo já era conhecido? Em primeiro lugar porque a informação mudou, não só em quantidade, mas também de forma qualitativa. Havia agora a possibilidade de aferir da veracidade de toda a informação através de várias fontes. Depois, porque os comunistas começaram a aplicar métodos que se julgava abandonados e com uma ferocidade desconhecida. Os comunistas desrespeitaram os compromissos antes assumidos ao escolheram o lado errado da democracia. Houve quem gostasse, é certo, tenha esses tempos por gloriosos.
Muitas pessoas passaram incólumes por este período e só acordaram com a queda do muro de Berlim em 1989. Outros ainda não acordaram. Cada um vive os seus próprios problemas pessoais e não é justo especular sobre eles. O que espanta é que parece que nada se passou e deparamos com um esgrimir de ideias sem correspondência com a realidade. Toda a subjectividade é aproveitada pelos comunistas para emitir as suas mensagens, constituída afinal apenas por ideias desgarradas retiradas de uma visão desfocada da realidade e que se destinam a provocar no receptor uma colagem pela repetição insistente. Os amanhãs que cantam emudeceram, mas há quem sonhe com passadeiras vermelhas.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Méritos e deméritos da meritocracia

Um conceito que tem tido o aplauso da direita e da esquerda sociais e políticas, não há nisto qualquer divergência, é a meritocracia. É um conceito especialmente apreciado, o que já não acontece com outros como partilha, lealdade, solidariedade, igualdade e muitos mais com mérito social indiscutível. No entanto há quem dê à meritocracia a qualidade de poder eliminar muitos dos males sociais. Segundo tais opiniões se a meritocracia presidisse à gestão da sociedade haveria maior satisfação e uma felicidade mais efectiva. Se uns acreditam por ingenuidade haverá outros que o fazem por nítido interesse.
É incontestável que é da realidade que os teóricos extraem ideias como esta da meritocracia para com elas, purificadas na sua imaginação, construírem um mundo ideal. O senão é que essa realidade só tem em conta a ponta da pirâmide social. A realidade tem-se encarregado de desmentir o valor da aplicação prática de muitas destas ideias que se supõem puras, porque o universo todo a que elas se aplicariam é disforme. Ao mesmo tempo ter-se-iam de muitos outros valores e não aplicar somente alguns. A aplicação de um só conceito tem levado a resultados desastrosos. As ditas ideias puras deixam-se contagiar por aquelas que subestimamos como a lascívia ou a inveja.
A meritocracia tem mérito, não a depreciemos, porém, tal como qualquer outro conceito, nele incluímos ideias que se podem analisar pelo mérito da sua contribuição para esse mesmo conceito, mas que também se analisam pelo seu próprio mérito. Ora os defensores da meritocracia, para dar crédito ao seu conceito, mas também para justificar a pirâmide social, colocam a igualdade de oportunidades como premissa. A igualdade de oportunidades é assim uma ideia igualmente meritória, que se conceptualiza deste modo como só fazendo sentido se na sua sequência se verificarem processos em que a meritocracia é o princípio aplicável, como se a pirâmide fosse toda assim construída.
Sendo a sociedade um edifício necessariamente diversificado e com uma hierarquia, mesmo que só funcional, seria a igualdade de oportunidades a tornar legítima toda a divergência posterior. Assim, se colocarmos ou retirarmos mérito ao conceito de igualdade de oportunidades, estamos a fazer o mesmo ao conceito de meritocracia. Na realidade todos os teóricos da meritocracia sustentam que a igualdade de oportunidades é suficiente para que sobre ela se construa todo o edifício social, podendo assim fazer com que toda a restante evolução pessoal e social se desligue de qualquer outra preocupação, em especial da de igualdade.
Podermos partir de uma igualdade de oportunidades teórica sem garantia de qualquer convergência ou sequer solidariedade em relação à chegada? A única sustentação teórica para a igualdade de oportunidades assim definida é o facto de nenhum lugar de chegada no topo da hierarquia social está vedado a quem parte de qualquer um dos lugares da base social. Assim a necessidade da meritocracia para garantir que um lugar de topo seja ocupado por quem merece é evidente, o que, no entanto não dá a garantia do respeito doutros valores.
Os teóricos da meritocracia sustentam a pouca relevância social da perca doutras igualdades para justificar a ênfase dado à sua igualdade de oportunidades. Será esta suficientemente importante para valer por si e por si sustentar a meritocracia? Mesmo dando de barato a questão do que é relevante, a igualdade de oportunidades não resiste a uma análise dos próprios méritos. São muitas as razões aduzíveis para retirar à igualdade de oportunidades o carácter duma base absoluta que permita relativizar todas as desigualdades a que está sujeito o percurso pessoal e social de cada indivíduo e da sociedade.
Em primeiro lugar porque não é possível fixar em qualquer ocasião da vida um momento que possa assemelhar-se ao lançamento em igualdade de circunstâncias de uma corrida de atletismo. Pelo nascimento já temos um passado genético, neurológico, psicossomático que nos diferencia e nos coloca em diferentes blocos dum hipotético ponto de partida. Em segundo porque os ambientes familiares são profundamente diferentes, as tradições culturais são diversificadas e o ambiente e a cultura familiar são determinantes na construção do indivíduo e dos ambientes sociais.
É verdade que a frequência de creches, jardins e escolas contribuem para uma certa convergência na uniformidade, para uma socialização em circunstâncias mais iguais, mas tal não garante que surjam crianças igualmente dotadas e preparadas. Mesmo as tentativas feitas em regimes totalitários, retirando as crianças do seu ambiente familiar para as desvincular de uma cultura ancestral que toda a família transporta, não tiveram qualquer sucesso. A igualdade de oportunidades é pois um esforço meritório que a sociedade deve promover com bom senso e sem extremismos no sentido de proporcionar a todas as famílias um mínimo de condições para criar, desenvolver e socializar os seus filhos.
Mesmo que se conseguissem condições que trouxessem vantagens para todos e se fizesse dessa igualdade um ponto de honra, tal não desresponsabilizaria a sociedade de promover outras medidas que garantam durante a vida outras igualdades. A igualdade de partida tem que ser vista com a mesma relatividade doutras igualdades. Todas as igualdades são importantes e não se compensam mutuamente. A meritocracia, perdida esta base teórica, sustentar-se-á por si? Claro que não. Mas teoricamente será o melhor princípio para justificar a selecção de pessoas, se com ele não quisermos justificar todas as desigualdades abissais existentes hoje na sociedade.
De qualquer forma a meritocracia tem os seus defeitos intrínsecos. Os instrumentos de que se serve para medir, a forma de avaliar e os elementos escolhidos para aferir do mérito são sempre controversos. Depois é impossível destrinçar o mérito doutros factores. Num percurso individual há sempre uma mão que é dada por alguém, um empurrão providencial que projecta os dotados de “mérito” para um sucesso meritório. A meritocracia não pode justificar tudo, mas também não pode ignorar os males que pode provocar. Hoje acusa-se a comunicação social de criar falsos ídolos. Porém a solução não é calar a comunicação, é preparar as pessoas para essa exposição.