sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Há problemas sociais que são profundos

Há problemas sociais profundos, isto é, que se lhes não vê solução a curto prazo. Basicamente são o desemprego e a crescente desvalorização do trabalho dependente e pouco qualificado que constituem as principais questões à volta dos quais se desenvolve todos os problemas sociais. Lateralmente haverá uma questão de indigência, de exclusão social, de indiferença suficientemente genérica para que muitos a classifiquem erradamente de endógena. São problemas que realmente se podem transmitir de pais para filhos por via de uma inculturação profunda, mas que não são de todo irreversíveis.
Cinjamo-nos no entanto às questões principais que hoje atormentam muitas pessoas e contribuem para revelar uma sociedade falsa, individualista, em que o egoísmo impera. Porém tal não deriva de um carácter maléfico das pessoas. O desemprego ocorre essencialmente entre aqueles que há anos foram retirados da sua actividade tradicionais, essencialmente a agricultura, e cujo novo trabalho não exige grandes qualificações, quando muito uma formação muita específica. Como se então já previa e foi um risco assumido por quem aceitou implantar esse tipo de indústria de trabalho intensivo, este novo trabalho só perdurou uma ou duas décadas. Mesmo assim durante demasiado tempo as pessoas foram ocupadas em trabalhos que exigiam pouco qualificação.
Numa sociedade capitalista o desemprego não é um drama para os dirigentes, mas tornou-se uma arma política poderosa para todos os quadrantes políticos. A direita aproveita para desvalorizar o trabalho, incentivando a precariedade como forma de criar mais emprego. A esquerda usa a arma da indignação para acusar o grande capital de só ver o problema económico pelo prisma da rentabilidade e da racionalidade. Todos porém têm grande dificuldade de apresentar soluções perante a inevitabilidade do avanço tecnológico, a eficiência de novas formas de organização do trabalho e a concorrência exterior. Os dirigentes económicos exploraram até à exaustão o trabalho barato e agora querem continuar a pagar mal ao trabalho qualificado.
No entanto aqueles factores são tão fortes e inelutáveis que até os sectores políticos mais extremistas cedem perante eles, não querem é dar a impressão de que o fazem e protestam com mais ou menos veemência, com mais ou menos sinceridade ou hipocrisia. No entanto, a não ser revelar-se em manifestações, a esquerda não encontra formas organizativas e linhas de acção por que possa lutar. A sua propaganda destina-se a chamar a atenção de quem possa estar para cair proximamente na mesma situação, no sentido um pouco ingénuo de que é possível prevenir. Mas será mais para alertar do que para impedir que isso aconteça.
O centro nevrálgico da luta promovida pelos partidos militantes deslocou-se para a antiga classe média, onde está agora a capacidade reivindicativa e o poder monetário capaz de sustentar a sua própria luta. É uma classe média que engloba muitos sectores, mas quase na totalidade directa ou indirectamente dependentes do Estado e que reservam para si uma massa salarial muito relevante se compararmos com outros sectores laborais. Destaca-se a área do ensino e da saúde que envolve muitos profissionais bem remunerados que outrora, eram pior remunerados, mas estavam do outro lado da luta de classes.
A focalização em classes sociais já bem instaladas e com qualidade de vida descredibiliza a luta contra o desemprego. Nem os empregadores podem dar essas condições a toda a gente, nem os pretendentes a poderem usufruir dos benefícios do trabalho podem ambicionar à partida atingir esses patamares. Se a realidade determinou o fim dos velhos sectores de trabalho intensivo que davam a maioria do trabalho, na verdade estes não deixam saudades. Mas temos de avaliar se o futuro poderá ser melhor.
De futuro haverá decerto uma muito maior diversidade profissional, que, contrariamente àquilo que se pensaria há uns tempos, não vai acarretar a dispersão empresarial e uma maior pressão no sentido do aumento dos salários. Os sectores do pequeno empresariado entraram em decadência num processo de continua concentração do trabalho em unidades empresariais mais vastas, melhor organizadas e com economias de escala, mas necessitando de menos trabalhadores. As expectativas de vir a integrar o sector empresarial tornam-se cada vez mais ténues e os postos disponíveis para as mesmas funções é menor.
As perspectivas que hoje se abrem já não são nos sectores tradicionais, mas noutros domínios com uma exigência de mais conhecimento e mais capital. Não estando estas perspectivas à disposição da maioria da população jovem de hoje podemos concluir que a expectativa geral é para os jovens a de virem a ser empregados de outrem, de organizações essencialmente com fins lucrativos. Perante o falhanço da esquerda extremista, a inoperância da esquerda moderada e a sofreguidão impaciente da direita, os jovens têm que pensar em novas formas organizativas que possam representar os seus interesses.
Nos primórdios da industrialização houve quem pensasse que, destruindo máquinas se criava trabalho. Noutra fase pensou-se que, acabando com os detentores do capital, se criava trabalho e se dividia melhor o rendimento. Acabada a miragem comunista, caiu-se na exploração desenfreada do trabalho a pretexto da racionalidade, da eficiência, da adaptabilidade, da flexibilidade, da concorrência e de todos os outros factores que se lançam como inelutáveis aos olhos de todos. Na verdade não se podem criar postos de trabalho artificialmente, mas haverá outras soluções, como uma melhor partilha do trabalho disponível
Com a liberdade dada aos manipuladores do capital para gerirem as imensas massas monetárias que estão concentradas em centros de decisão inacessíveis, criou-se uma dicotomia insanável entre a riqueza e a indigência. Para que a indigência se não torne um modo de vida aceite pela sociedade é necessário que a riqueza não faça o seu caminho cego e indiferente aos sentimentos solidários que devem constituir o fundamento da sociedade humana. Para que a nossa imaginação não deambule entre a riqueza e a indigência impõe-se uma participação mais generalizada dos jovens na política, não cristalizando nas ideias feitas, mas abrindo continuamente a mente ao futuro.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

O Estado, as Leis, as Estruturas, as Pessoas

O Estado é uma entidade de tal forma variada e complexa que temos muitas vezes dificuldades em lidar com ela. Quando necessitamos de interagir com o Estado é normal que ele se nos torne pesado, quando somos nós os solicitados, e seja demasiado leve e impreciso, se dele necessitamos. Nem sempre é fácil sabermos qual a estrutura dentro do Estado a que nos havemos de dirigir. Dificilmente temos uma noção de tanto departamento e gabinete que nos permita a navegação sem orientação.
Se o assunto é complexo para nós, que muitas vezes fazemos de complexo o que é bem simples, somos levados a tentar saber quem é quem na máquina estatal para corresponder à nossa solicitação imediata. E como de velhos e maus tempos nos ficou a ideia de que o melhor é saber quem é a pessoa que mexe os cordelinhos da coisa, tentamo-lo, ou na sua impossibilidade ou inacessibilidade dirigimo-nos a alguém que pensamos ter ligações apropriadas ou relações que possam lá levar. Antigamente fazíamo-lo porque éramos néscios, hoje nem tanto. Um amigo, mesmo que falso e interesseiro, é a melhor âncora.
A velha sabedoria diz-nos que há sempre um melhor caminho, por mais enviesados que sejam os troços que nos obriguem a percorrer. Ou porque queremos pressa ou porque nos queremos subtrair à acção de algumas disposições legais ou porque estamos mesmo saturados da burocracia, há sempre uma razão que nos leva à escolha destes caminhos ínvios que fazem as delícias dos mediadores da nossa praça. Há porém quem use tais vias com má-fé e desde logo para que quem facilite ganhe com isso e quem é facilitado pague menos ao Estado do que aquilo que está estipulado que todos paguem.
Não há qualquer desculpa para fugir a este pagamento nomeadamente o facto do dinheiro posto à disposição do Estado ser por este muito mal gasto. E os políticos têm por obrigação expressa não fugir a um cêntimo com aquilo com que todos estamos obrigados a contribuir. Os políticos são pessoas iguais aos outros, até lhes podemos perdoar alguns destes crimes menores, no entanto é de lhes exigir que peçam o devido perdão por não terem resistido à tentação de fugir às suas obrigações legais. Afinal não os vejo a pedir esse perdão e crimes de alguns estão à vista.
Tendo há já largos anos estado num serviço de atendimento ao público, colocou-se-me muitas vezes o dilema se seriam ou não legítimos e justos certos esclarecimentos dados aos utentes e que podiam fazer a diferença entre o deferimento ou não de um processo. Seria minha função omitir qualquer informação que pudesse beneficiar o utente ou teria a obrigação de ceder todo o conhecimento de que dispunha? Os próprios dispositivos legais eram e continuam a ser por vezes suficientemente ambíguos para permitir interpretações contraditórias. Como podemos estabelecer a diferença entre a promoção de um caminho mais benéfico em relação a um mais usual e natural?
O dilema maior surgia quando a prestação ou a omissão de uma informação sobre uma situação específica relativa ao utente era colocada como uma questão de dever. Sendo servidores do Estado devíamos estar do lado deste e ser insensíveis a questões de justiça ou estar do lado do utente? Todos nós somos muito sensíveis a esta questão de justiça relativa, à diferença entre aqueles que não usufruem de certas facilidades porque são sinceros e humildes e aqueles que beneficiem de todos os apoios porque não são honestos, são arrogantes.
A maioria de nós concordará sem pestanejar em que os humildes devem ser ajudados. Mas aqueles que são favoráveis ao rigor asséptico e sem contemplações acabam normalmente por vencer e, por incrível que pareça, isso só favorece os desonestos. Deambulamos muitas vezes entre a permissividade e esta moral farisaica de não fechar os olhos a nada a não ser em privado. Torna-se muitas vezes muito difícil encontrar o meio-termo, aquele que o legislador pretenderia atingir ao fixar o mais grave como o legal para que o mais humano e compreensivo pudesse ter algum campo de acção.
Eu nunca teria dúvidas sobre o lado em que me haveria de pôr. Porque há imensa gente que não domina a burocracia e até desconhece certas prerrogativas que possui. Os defensores do Estado acéfalo dirão que se não deve ensinar qualquer particular a atingir certos benefícios que o Estado nos pode facultar. Para esses o servidor do Estado presta um mau serviço a este se estiver a elucidar os privados sobre a forma de atingir objectivos a que outros acedem por direito.
Sempre entendi, mesmo quando não havia orientações expressas nesse sentido, que tudo devia ser claro e todos os esclarecimentos deviam ser prestados mesmo quando não expressamente solicitados. Há aqueles que sabem de tudo mesmo antes que as questões sejam colocadas no papel. Mas também há aqueles que, mesmo sabendo de alguma coisa, não fazem as perguntas que se imponham. São estes que devem ser ajudados, no pressuposto de que quem não está habituado a viver à custa do Estado não perde por isso direitos a vir a usufruir algum dia de um qualquer tipo de ajuda ou apoio.
A nossa relação com o Estado é na prática a nossa relação com os seus agentes e servidores. Porém nem só estes são os responsáveis, nem só os actuais legisladores, nem só a herança do passado. Mas temos que presumir que quem dá a sua visão da Lei e dum direito consuetudinário, não reconhecido, mas aplicado, tem que ser capaz da melhor interpretação. A face do Estado são os seus agentes e servidores. São os juízes, são os fiscais, são imensa gente a quem é dado o direito, ou se arvora do direito de intervir na organização da vida em sociedade. A dúvida persiste sempre entre se o Estado está mal dotado de estruturas e leis ou se está mal servido de pessoas.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Nós, a sociedade e os grupos

“O Pertencer A” é um sentimento que nos faz falta, que nos afasta da solidão e nos dá algum ânimo nos momentos de maior desesperança. Fazem-nos falta muitos dos grupos que encontramos na sociedade. É verdade que muitos também seriam dispensáveis, ao passo que sentimos a necessidade de novos grupos de cuja criação nos sentimos incapazes. Os grupos fornecem-nos a sua consistência própria e devem ter uma grande plasticidade que nos permita a pertença a vários grupos. Mesmo que não possamos falar por um dado grupo de que reivindicamos pertencer, sentimos um certo aconchego por nos acompanhar esse sentimento de proximidade com alguém.
Nesta questão de grupos nem sempre a veracidade vence. Podemos viver de modo diferente, plenamente imbuídos do seu espírito ou com uma alheamento indisfarçável. Sentimo-nos por vezes desprezados, abandonados, porque a pertença a um grupo pode ser um conforto que nos alivia e anima. Sentimos um especial desconforto quando temos a sensação de que um grupo pertence a alguém. Situação mais grave é aquela que se pode viver ao sermos ou nos sentirmos excluídos de um grupo em que depositamos expectativas exageradas, seja ele da família, de amigos ou de outra natureza.
Investir demasiado num grupo pode ter efeitos perversos, principalmente quando sobrevalorizamos o nosso contributo para ele. Vale pois a pena ser realista, pensar nos aspectos em que o nosso contributo será menor e não compensado pelos contributos noutras áreas que possam ser maiores. Atribuir todos os problemas ao egoísmo alheio não compensa o nosso desencanto com muitos grupos a que não desdenhávamos pertencer. O nosso contributo pode ser mesmo irrelevante para o grupo e nós vangloriarmo-nos daquilo que não damos. “Pertencer a” é dar e receber. Não pode haver equívocos.
Um político quando se sente desligado ou ligado de modo deficiente a certos grupos sociais preponderantes remete normalmente para o povo, essa outra entidade grupal, aleatória, indefinida e inexpressiva a que todos pertencemos e a que ninguém, pelo menos nos momentos de aflição, desdenha pertencer. Os simples mortais como nós, quando se sentem demasiado “acossados pelos cães”, têm muita dificuldade em saber para que lado se há-de virar. Remetermos para o povo é um pretensiosismo que nos fica mal.
Tal ausência de grupos a que possamos ter o sentimento de pertença pode levar a uma situação dramática. Em um ou mais momentos do nosso passado, de modo diferente na juventude ou posteriormente, podemos ter sentido que os grupos que existem não fazem sentido para nós. Pode ocorrer uma ausência de viabilidade de relacionamento, assim como uma descrença em relação à proximidade em que nos sentimos dos grupos em relação aos quais seria pressuposto haver uma razoável aproximação. Por vezes parece que a sociedade nos impõe a pertença a determinados grupos e isso pode ser insuportável.
O suicídio é mesmo a solução encontrada por muitas pessoas que se vêm confrontadas perante estes aparentes becos sem saída. A impreparação e a falta de perseverança fazem com que muita gente venha a cair nos cadafalsos que lhes surgem no caminho. Para muitas pessoas este tipo de preocupações é irrelevante, em especial para aqueles que têm no “Ter” o centro do seu projecto de vida. Claro que se fizermos uma avaliação social este “Ter” leva nítida vantagem, não por estar numa situação de exclusividade, mas por ter uma preponderância que muitos, em situações menos favoráveis, pretendem escamotear para melhorar a imagem.
O “Ter” tem importância, à volta dele se discute o contributo de cada um para a sociedade, e reconheça-se que procurar o “Ter” licitamente é procurar nessa medida contribuir para o todo social. Por nos ocupar a maioria do tempo, por ter um carácter primordial em muito desse tempo, o “Ter” assume hoje a nível social um carácter absorvente, pois para ele remetem todas as questões sociais relevantes, a justiça, a educação, a saúde, etc. Além do papel abrangente do dinheiro, o destaque dado pelo “Ter” é intransponível.
Pelo “Ter” ter a importância que tem, por não poder ser ignorado, haverá pessoas que já o absolutizaram, ignoraram outros valores, sentem-se bem a partilhar a pertença a qualquer grupo formado na base da posse. É débil o cimento que agrega em si tais grupos. Não é na sua lógica que se deve deixar absorver todo o relacionamento social. Este deve existir muito para além do seu domínio. Infelizmente a maioria das pessoas, não se sentindo com cabedal para integrar a sua lógica, deixa-se enredar na lógica contrária de contestação permanente do “Ter”, o que não tem qualquer valor moral ou prático e em última instância remete para a mesma lógica do “Ter”.
Pertencer a grupos do “Não Ter” ainda é no entanto uma atitude que parece fornecer dividendos sociais. O espírito humano está cheio de contradições que só se deslindam, descobrem e se desfazem ao atingir um estado apropriado de maturação. O “Ter” é a solução mais lógica e imediata para o “Não Ter”, mas o caminho de cada um tem complexidade diferente. O nosso dilema é que os jovens têm ainda pouco tempo de pensamento das questões sociais e aceitam muitos estereótipos e os velhos estão presos a parâmetros que não lhes permitem ver para além do umbigo. Se deixarmos que os jovens esperem pelas suas próprias contradições, a humanidade não avança.
Pertencer a grupos sociais do “Ter” não é crime, desde que não o seja em exclusividade. Também não é obrigatória uma diversidade absoluta, cada um de nós tem uma idiossincrasia que nos faz ter “inclinações”. Tentar não ceder em demasia e dar o valor àqueles que cultivam valores diferentes é um exercício de cidadania saudável e eficaz. Pertencer a grupos cujo objectivo seja a partilha e não a exploração intensiva de um sentimento redutor, não se deixar reduzir à pertença de grupos do “Ter”, é o caminho que nos ilumina, mesmo que tais grupos sejam apenas virtuais por muitos anos.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Se calados alguém falará por nós

Todos nós já tivemos esta impressão, estou convicto. Esta impressão é mais suave se derivar da ideia de que não nos deram tempo para expressarmos a nossa opinião, espaço para falar, atenção para ouvir. Mas esta impressão é mais acentuada se, permitindo-nos tempo, espaço e atenção, há mesmo assim a humilhação, desprezo ou simples usurpação da nossa voz. Então três atitudes básicas podemos tomar, conforme a circunstância.
Mesmo considerando que não devemos prescindir da nossa voz, podemos, sendo isso bem claro, dar o assentimento em que alguém fale por nós. Se pertencemos a um grupo mesmo informal e alguém expressa o consenso que nele se obtém ou se presume que nele aja, não vale a pena estarmos a acrescentar nada. No entanto há sempre alguém que queira acrescer algo, que nem tudo foi dito. Muitas vezes é puro preciosismo, porque, se o porta-voz é bom, terá dito o suficiente e possivelmente até terá acertado na essência da questão. Com essa atitude por vezes baralha-se ao querer acrescentar uma vírgula.
Não se coloca aqui a questão do reforço da voz que nos representa. Essa é outra questão que tem a ver com o poder de intervenção social da pessoa ou do grupo social em que nos integramos. Porque, se não for assim, teremos que analisar também em que medida esse reforço de intervenção corresponderá ao abafar de outras vozes, à omissão de outras opiniões. E esta análise é feita no pressuposto de que queremos que todos tenham voz.
Uma outra atitude será de dúvida. Num inquérito podemos pôr sempre a dúvida se a nossa opinião está lá expressa. Ou porque não fomos ouvidos, mas também porque nem todos o podíamos ser, ou porque, se o fomos, entendemos que, propositadamente ou não, ouviram mais pessoas com opiniões contrárias à nossa do que com opinião igual. Ou ainda estes últimos se revelaram menos motivados para ir votar, para responder ou para clicar em qualquer botão de uma qualquer janela da Internet. Ganham os mais activos.
Em última instância podemos dizer que o inquérito estava mal feito e não permitia expressar convenientemente as várias opiniões possíveis, confundia as pessoas, seria até despropositado na ocasião em que foi feito. A escolha das questões tem que ser criteriosa, feita de modo a obter uma resposta para a pergunta essencial que o inquérito consubstancia. Em simultâneo as questões têm que ser colocadas de forma clara e acessível ao máximo das pessoas e no momento adequado.
Num inquérito a maneira como é feita uma pergunta é uma condicionante não desprezível. Se um inquérito se não destina ao universo das pessoas, isso tem que ser salientado na sua divulgação. Também num inquérito não podem surgir perguntas que já têm resposta objectiva, a não ser que se queira saber o nível de conhecimento das pessoas e não a sua opinião, como é pressuposto. Num inquérito nunca pode estar em causa a inteligência, a cultura, a actualização das pessoas, a não ser que esse seja o objectivo expresso.
Outra atitude que podemos tomar perante a circulação das opiniões é a rejeição do seu aspecto, é a negação de que a nossa opinião esteja de algum modo expressa, como que se alguém se negasse também a ouvir-nos. No caso extremo é o surgimento do vazio, dum espaço em que as nossas ondas se não propagam, duma opacidade às nossas imagens, aos nossos argumentos, aos nossos alertas. Essa barreira por omissão de meio de divulgação é a mais comum. Não é por respondermos a muitos inquérito que somos mais ouvidos.
Quem está do lado de lá dirá que o nosso som é pouco audível, que há uma expressão mínima da nossa opinião e que se ela não é mais avantajada é porque não “calha” no meio social em que se insere. Esta explicação satisfará algumas pessoas que até se comprazem em ser vincadamente diferentes e estar isoladas. Mas muitas mais pessoas pressentirão que essa omissão é propositada e não é dada expressão suficiente às ideias com que mais se identificam.
Num inquérito muitas vezes as perguntas são escolhidas conforme as respostas que se querem obter e quando muito deixar-se-á um escape para as outras respostas que não cabem nos seus propósitos e podem portanto estar misturadas, agrupadas, indefinidas. As outras opiniões são aquela escapadela que permite que se diga que todo o universo se pode ver reflectido num inquérito, mas, se isso serve para uns propósitos generalistas, não serve para propósitos mais minuciosos.
Mas, em termos de opinião pública, todas as opiniões são válidas e devem ver reflectido o seu peso relativo. O que quererá dizer que todas as opiniões devem ser tidas em conta sem que necessariamente qualquer delas tenha que ser seguida. A opinião pública é um espelho em que nos devemos reconhecer. Sem termos a pretensão de traçar uma bissectriz que defina o sentido da acção, podemos mesmo assim concluir que nem todas as correntes têm na opinião pública a repercussão correspondente ao seu volume, já para não falar do seu valor.
Quando alguém verifica que pertence a uma corrente que não está a passar em lado nenhum, será normal ficar apreensivo. O pior que pode acontecer é ela nem oposição suscitar, porque isso é mesmo sinal de que está a ser escondida. No fundo todos nós desejamos ter voz para que ela também influencie os outros, mas se estamos à espera de uma repercussão directa positiva ou negativa, podemos ter que esperar sem sucesso.
Podemos fazer alguma coisa para que ao menos ninguém fale por nós, deturpe a nossa voz? Podemos falar claro e evitar opiniões intriguistas. De resto toda a influência que nós possamos exercer na sociedade é de longo prazo, mas para todos, para aqueles que da Lei da Morte se vão libertando e para aqueles que nunca constarão de compêndios e extractos. A inteligência passa pelo mundo e deixará sempre algum efeito no seu rasto, desanuviará o ambiente, mas as dificuldades são o hábito e a apatia.