sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

A corrupção é um custo da concorrência

A livre concorrência é patrocinada por uma ideologia, o liberalismo. Este é uma doutrina que extravasa o domínio económico pelo que a livre concorrência pode ser vista como um aspecto sectorial do liberalismo e não o mais importante. Reduzir o liberalismo à economia é atrofiá-lo. Mas o seu aspecto político também é só uma das perspectivas a ter em conta. De qualquer modo é impossível que haja liberdade com planeamento económico central e economia estatal. Por outro lado a liberdade pode sobreviver mesmo com uma economia mais orientada.
Na economia mercantil a concorrência é vital. Mais difícil do que produzir é vender, o que leva inevitavelmente à concorrência. Deparamos com ela como a invasão de artigos vindos de todo o mundo, a nível interno como um obstáculo que muitos tentam ultrapassar socorrendo-se da corrupção. A concorrência só seria anulável se a economia fosse totalmente planificada e se o exterior aceitasse vender nas condições impostas pelo comprador.
A concorrência pode ter pois duas vertentes: Uma interior e outra externa. Em relação ao exterior essa concorrência sempre foi entendida como benéfica nas condições em que era exercida até há uns anos atrás: Havia condicionantes que eram introduzidas nessa concorrência e a limitavam, a impediam mesmo em alguns casos. Mas esses impedimentos foram sendo afastados: Contingentações, barreiras alfandegárias, taxas suplementares, desvalorização da moeda.
Antes podíamos lidar com a concorrência exterior segundo a nossa capacidade competitiva. Se não conseguíamos concorrer livremente levantávamos uma daquelas barreiras. Se suplantávamos sem apoio a concorrência exterior nada precisávamos de fazer. Mas se havia um certo equilíbrio tudo dependia da política do Governo e inclusive de acordos internacionais. Duas atitudes de princípio podiam ser assumidas: Ou considerar a concorrência exterior benéfica ou prejudicial para o sector produtivo nacional e agir em conformidade.
Hoje não há barreiras externas, embora haja países que a isso se comprometerem, mas que, diz-se, conseguem ir impedindo de modo indirecto uma concorrência absoluta. O grande problema é constituído pelas condições em que cada país produz, os apoios estatais, os direitos dos trabalhadores, inclusive a sua segurança social. No entanto tudo leva a crer que este tipo de economia globalizada é irreversível, só nos resta lamentar, se for caso disso, que assim seja.
No geral achamos a concorrência, a interna e a externa, benéfica para fazer baixar os preços de bens e serviços que as empresas nos prestam. É com esta premissa que os Estados fecharam os olhos à concorrência exterior em domínios em que isso constituiu a morte de sectores inteiros das economias nacionais. Os baixos preços, mesmo que escondam muita iniquidade pesam mais. Não existe uma economia de mercado global sujeita às mesmas regras da concorrência.
Mesmo dentro da Comunidade Europeia a livre concorrência não funciona plenamente, mas também há quem entenda que deve haver aspectos da economia devidamente regulamentados em que ela não deve existir por pôr em causa ao trabalho nacional. A obrigatoriedade da abertura de concursos internacionais para o fornecimento de certos bens e serviços defende a concorrência, mas pode põe em causa todo um sector da produção nacional.
Em resumo a livre concorrência exterior corresponde a uma perca de soberania, no sentido em que nós a entendíamos, para quem pode não cumprir as mesmas regras. Só que a abertura da economia ao mercado global é também uma questão política.
A concorrência interna não resolve todos os problemas de eficiência, produtividade, igualdade de oportunidades e preços justos. Tem implicações na área laboral, de justiça e outras e é condicionada por um fenómeno apelativo que é a corrupção. A capacidade de o Estado poder garantir uma concorrência salutar, de não deixar que ela seja corrompida pela corrupção, depende da sua organização e da vontade política dos seus dirigentes. Além disso quando o Estado tem capacidade de intervenção na economia, pelo menos em termos de orientação, as suas intervenções podem ser confundidas com o resultado de actos de corrupção.
A suspeita só terminaria se o Estado se demitisse de ter uma intervenção incentivadora, protectora ou qualquer outra. Para obter a máxima eficiência e garantir os preços mínimos para a produção o Estado não pode ser suspeito de favorecimento, tem que optar pela livre concorrência e pela livre fixação dos preços, pela economia de mercado. E qual deve ser a atitude do Estado quando houver abusos evidentes, conluios entre quem devia ser concorrente? Terá sempre que haver alguma regulamentação e a penalização de quem a não cumprir. Também não podemos ser tão liberais que achemos como alguns que a corrupção faz parte do jogo livre só porque qualquer um pode recorrer a ela.
A corrupção aumenta o custo de produção de todos os bens e como tal é um entrave ao desenvolvimento económico. Se o valor pago na corrupção não poder ser transferido para os bens que a empresa produz então pode estar a suportar um custo que não lhe vai permitir investir em desenvolvimento e em última instância a vai colocar em desvantagem no futuro. Mesmo assim muitos recorrem à corrupção, chegam mesmo a investir forte no aprisionamento do Estado, como cliente ou como fiscalizador dos actos de corrupção.
Onde a concorrência é mais distorcida é nas relações com o Estado como cliente e até como fornecedor. Aquele que devia ser árbitro nas relações entre particulares dificilmente o pode ser nas suas próprias relações com os mesmos. Qualquer injustiça que o Estado cometa, qualquer atentado à livre concorrência dificilmente será corrigida/o. Por isso o grande investimento que os grandes grupos económicos fazem em tentativas destas de apropriação do Estado. Sendo o Estado um bom pagador, todos querem trabalhar para ele e recorrem para isso a todos os expedientes.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

A insegurança ameaça-nos a cada instante

A fácil mobilidade das pessoas, a rápida difusão da informação, a simplicidade com que se imitam comportamentos, se copiam modelos, a ansiedade geral de viver a qualquer preço, tudo leva a que muitos fenómenos outrora analisados pelas suas características locais, tem que ser agora vistos a um nível cada vez mais global. Já todos descobrimos que a todos os níveis tudo que acontece em Lisboa pode acontecer em Ponte de Lima.
No entanto temos de estar alerta para que este modo de ver não seja utilizado como desculpabilização, quando se nos deparam respostas como “se em todos os locais é assim, porque é que aqui há-de ser diferente?” ou então “se outros com mais meios não resolvem o problema, vamos nós resolvê-lo agora?”. Se estamos à espera que outros encontrem soluções para tudo e depois nos as forneçam devidamente formatadas estamos mal.
Reduzamos a economia do discurso à segurança, questão em que facilmente nos confrontam com a afirmação de que Ponte de Lima não há-de ser diferente doutras vilas idênticas com meios semelhantes. Uns até dirão que se manifestarmos receio pela insegurança isso até será um atractivo para a criminalidade. Mas isto é uma falsa questão. Não podemos fechar os olhos, a realidade deve ser encarada de frente.
Em Ponte de Lima já confluem criminalidades distintas. Uma endógena, reforçada com elementos que cá se estabeleceram, que é chamada de pequena delinquência, que causa prejuízos e incomoda, mas a qual os poderes públicos têm tendência para menosprezar. Outra esporádica, praticada por grupos de âmbito regional, com selecção de alvos específicos visados em vagas sucessivas e com actuação profissional. Mais esporadicamente terá actuado em Ponte de Lima algum grupo de âmbito nacional ou internacional, mas as evidências não são seguras.
Este tipo de violência grupal especializada deveria ter uma resposta a nível local, mas nas actuais circunstâncias ela teria que ser mais preventiva que actuante. A procura do confronto directo nestes casos implicaria meios de que as forças locais não dispõem com os níveis de segurança próprios exigíveis. A solução deste tipo de criminalidade passa mais pela polícia científica, pelo uso de meios tecnológicos que deveriam estar ao dispor da polícia para este exclusivo fim e não para devassar a vida alheia. A vídeo vigilância não tem sido eficaz.
Já a pequena delinquência só pode ser tratada pelos elementos da polícia local e claro por alguém do sistema judicial que lhe deveria dar instruções, cobertura e seguimento. E, como é evidente, do sistema social que, no geral, já enquadra a maioria dos pequenos delinquentes, mas que falha redondamente na sua resocialização. Só aqui já temos dois aspectos do problema que entroncam no âmbito nacional e que só terão soluções perspectivando o problema a esse nível, mas que terão que ser implementadas por quem está no local.
Tem que haver na confluência dos aparelhos policiais e judiciais algum organismo que não esteja enredado à fase processual, antes acompanhe este particular fenómeno de pequena delinquência, com capacidade de orientação, dando cobertura legal e assegurando o controle até à obtenção de resultados positivos. Tem de haver no sistema social uma solução específica para estes delinquentes, mais apertada que o apoio social normal, que acompanhe mais e crie incentivos à reorientação dos grupos sociais em que estão integrados. Valeria a pena apostar numa recuperação colectiva.
À polícia impõe-se que seja o braço armado dessa política de prevenção, perseguição e resocialização dos elementos envolvidos na delinquência. Mas que polícia? Decerto não a que temos hoje. Em Ponte de Lima imponha-se em primeiro lugar uma continuidade no território policial, uma só força responsável por todo o território, que não há qualquer vantagem em ter em parte da zona urbana uma força policial própria e concentrada e no restante um força excessivamente diluída.
Falando de corporações tudo leva a crer que a dita urbana está a perder nitidamente qualidade em relação à dita rural. Os agentes urbanos dedicam-se essencialmente a mesquinhas questões de trânsito e estacionamento sem qualquer relevância para o bem-estar da população. O cidadão que cometa uma transgressão destas, de importância ridícula, é tratado com os olhos de quem vê à sua frente o maior delinquente deste mundo.
Por vezes há aspectos menos saudáveis na actuação de alguns policiais que, em vez de perseguirem delinquentes, fazem esperas a quem inadvertidamente ousar pôr o pé onde eles fazem o seu domínio efémero, mas que lhes dá o ser. Dir-se-á que esses policiais dão tão só seguimento àquilo que foi decidido noutras instâncias como a Câmara Municipal, mas decerto que, por alguém não ter suficiente bom senso, não vamos todos ser insensatos.
Há muito trabalho de prevenção a fazer. Ter um controle mínimo dos movimentos de indivíduos com actuação marginal, observar o que eles observam, identificar aquilo que lhes desperta o interesse. É necessário que eles tenham consciência de que não são deixados ao abandono. Os policiais não se podem comportar como forças intimidatórias para o cidadão vulgar já suficientemente socializado para não andar a criar problemas, mas têm que dirigir a sua atenção para quem se pretende subtrair à regulamentação social.
Na polícia terá que haver alguma especialização, mas parece-nos faltar quem, a ver pelos assaltos e outros delitos praticados na vila depois da morte da agente Pereira, se especialize no seu principal “metier”: Assegurar segurança às pessoas. Além da perca, sempre não negligenciável, de bens materiais, temos um sentimento de insegurança que se vai acentuando à medida que o centro urbano se desertifica. Os carros espalhados arbitrariamente pela polícia só reforçam esta sensação de abandono.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

O Apóstolo da Desgraça anda por aí

Camões deu eternidade ao Velho do Restelo. Este era avesso ao risco, não via com bons olhos que se partisse para a aventura das Descobertas. Ameaçava com a desgraça que pressentia, mas talvez ele passasse despercebido se Camões o não tivesse notabilizado. O Apóstolo da Desgraça de hoje é uma espécie de Velho do Restelo porque tem uma relação igualmente próxima com a desgraça. Só que a vê mais próxima, seja ali já ou mais lá ao fundo. Afinal a desgraça, aquela que nunca é definitiva, e ainda bem, anda sempre perto de nós.
O Apóstolo não espera que o notabilizem um dia, tem que ser ele próprio o publicitário. Pronuncia-se desde já, anuncia que a desgraça já aí está. A sua desgraça é porém mais comezinha do que a do Velho, não anuncia a perca da independência, o que talvez até fosse bom, não vai haver agora mais infidelidades do que as que o Auto da Índia já anunciava. Enfim é apóstolo mas nunca será profeta, só anuncia o que já é trivial, mesmo que lhe reforce as tintas.
Também o Velho esconjurava e ele não tem força para tanto. O nosso Apóstolo procura ser assertivo, incisivo, peremptório nas suas sentenças. É um justiceiro ansioso. O Velho atemorizava pelas suas profecias. O Apóstolo também o quereria, só que já não tem tanto poder de manipular o medo. Mesmo assim muitos revêem-se nele, não faltam espíritos apressados a gostar de prestidigitadores, mistificadores, falsos profetas que tornam a desgraça ainda mais familiar para nós.
As más notícias podem porém ser dadas por boas pessoas. Gosto muito do Velho do Restelo, pudesse ele ser recuperado para os dias de hoje. Acho-o muito mais simpático, mesmo que tivesse sido mais triste. Era um macambúzio que se não deixava tolher pela consternação Mas porque razão haveria ele de ser alegre? Falava a sério e com o ar apropriado à função. O nosso Apóstolo fala de desgraças a rir e quando assim é das duas uma: Ou as coisas não são como ele descreve e então é um mentiroso, ou ele se ri com propriedade e então é um cínico.
A nossa desgraça tem raízes fundas e procurar culpados vivos é tarefa inglória. São porém muitos os que a isso se dedicam, com mais falácia que rigor. Se há mais de quinhentos anos que percorremos este caminho fundo que nos parece reservado, também já somos pessimistas quase por natureza. Mas, se nem todos os culpados estão no passado, não podemos descarregar todo o nosso azedume sobre os contemporâneos. Sejamos optimistas e tentemos abrir um caminho novo, mais à superfície, preparemos comandante, técnicos, trabalhadores.
O nosso País viveu momentos conturbados, com um acentuado declive até finais dos anos cinquenta do século passado. O efeito EFTA foi preponderante nas mudanças que se verificaram a partir daí. Nestes últimos cinquenta anos houve algum desenvolvimento e foram-se transferindo quase directamente trabalhadores sem qualificação da agricultura para a indústria de roupas, sapatos, cablagens e assessórios de automóveis, construção civil, comércio e serviços. Porém o resultado foi uma competitividade incipiente.
Houve alguma saída da nossa secular miséria, mas não se criou grande lastro para voos mais audazes. Com uma máquina ultrapassada, improdutiva, não se pode querer uma alternativa consistente. Também a governação tem estado muito dependente de conflitos na máquina do Estado, na qual se criaram mordomias não sustentáveis. Um aparelho estatal caro criou na população a ilusão dum País rico. Daí a virem os apóstolos da desgraça dizer que tudo se resolveria pondo a administração em ordem vai um passo.
O futuro é novas organizações, novos regulamentos, novos objectivos. Falta engenho, pulso, empenho, força e trabalho. Passos de mágica e impulsos milagrosos de políticos preferidos e pretensamente iluminados nada resolvem. Ordem pura e dura nada é. Novos modelos de organização implicariam uma administração mais leve, organizações mais eficazes, sectores económicos mais dinâmicos, iniciativas mais arrojadas. Além disto nos faltar, ainda temos o peso do passado que são os desempregados de agora. A sua maioria vem das velhas indústrias EFTA e dificilmente encontrarão trabalho numa economia que se quer competitiva. As Novas Oportunidades podem não chegar.
Afinal o impulso EFTA, que se manteve com a nossa adesão à Comunidade Europeia, não deu para sairmos do caminho fundo que os nossos antepassados nos reservaram. Continuamos relapsos à organização. A nossa pequena dimensão e força levam-nos a perder sempre na divisão internacional do trabalho. O Apóstolo lança lágrimas hipócritas sobre o passado, elogia organizações decrépitas que nos impuseram no nosso passado secular e que ajudaram no nosso anquilosamento.
A tarefa que nos estaria reservada já seria hercúlea, mas para complicar veio esta crise levantar problemas novos, de que não devemos esquecer-nos. A maioria de nós, pequenos aforradores, pequenos empresários, trabalhadores em geral, nada pode fazer perante a voracidade do capital e não podemos deixar que o Estado se demita. Mas não chega dividir o capital em bom e mau, como outrora se dividia o mundo, para resolver o problema. Culpabilizar somente a ganância, que não é facilmente delimitável, é muito pouco e está visto que o capital não cede a considerações morais.
O Velho do Restelo acusava o poder de todo o mal, de prepotência e ousadia. Na altura tudo era claro e linear. Hoje o poder está muito diluído, mais difuso, difícil de identificar, porventura bem mais forte. O nosso Apóstolo concentra todo o poder no político, o que é fácil, mas não é realista. Conseguisse o poder político subordinar os outros poderes, fosse hoje ousado e seguido! Os poderes são hoje imensos, dispersos em pólos que concentram poder suficiente para manter o politico dependente de si, se não for doutra maneira pelo suborno.
Além disso há um poder imenso que remetemos para o exterior, exigente, mas imobilista. Há uma imensa desilusão em quem participou na construção europeia e esperava um choque benéfico que não ocorreu. Decerto que em 2010 não precisaremos de apóstolos mas de muito discernimento. Obstáculos não faltam. O Apostolo da Desgraça só complica.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

O casamento vai virar casaco multiusos?

O casamento não pode ser visto só pelo espectáculo que normalmente o envolve, pelo cerimonial e pelos circunstancialismos efémeros que o enroupam. E infelizmente o que o distingue de outras uniões é hoje pouco mais do que isso. O casamento, sendo um contrato público, não pode deixar de ser um compromisso a respeitar e que comporta um quadro uniforme de referências. Referências que possam ser compreendidas por todos. O casamento visa assegurar a estabilidade e exige para ele próprio uma noção estável.
O casamento nasceu como uma necessidade de organização social, como forma de resolver a promiscuidade sexual, a “fatalidade” do nascimento de filhos, a responsabilidade pela manutenção da família. Hoje, que o casamento, como instituição, está em crise, alargar o seu conceito não parece ser o melhor caminho. No entanto é precisamente esse facto da crise do casamento que faz com muitos o vejam como um facto sem importância que pode facilmente ser apropriado por pessoas que, em princípio, com ele nada teriam.
Os argumentos a favor do casamento já são poucos, há outras formas de garantir os mesmos objectivos. Os casais recorrem cada vez menos ao casamento por eventualmente este complicar a separação, sem dar contrapartidas significativas. Se o casamento assegura maior estabilidade não é estímulo suficiente para muitos e há pessoas que até vivem melhor sem o aperto das responsabilidades, sem constrangimentos sociais.
No entanto aparecem agora novos pretendentes ao casamento. Não para garantir uma dada prática sexual, não para melhor enquadrar eventuais filhos numa instituição estável, não para instituir formas de relacionamento responsável, mas sim para efeito da obtenção de um dado estatuto social, que os direitos já estão ou poderiam estar disponíveis de outra forma qualquer. Nada impede qualquer prática sexual, qualquer um pode ter filhos separadamente e ser responsável por eles, os compromissos são pessoais e uma questão de seriedade.
Falamos, como é evidente, dos homossexuais, da sua pretensão de terem um estatuto igual ao de qualquer casal heterossexual. Longe vão os tempos em que reclamavam direitos, inclusive em que reclamavam o direito de passarem despercebidos, de serem ignorados mesmo. Trata-se agora da reclamação de um direito positivo, de querer avançar no sentido de tornar igual qualquer tipo de prática sexual, que já nenhuma será característica de qualquer grupo. Já não querem só passar ignorados, querem fazer parte da organização social.
Será justo alargarmos aos homossexuais o estatuto do casamento? A tradição será um dos elementos a ter em conta, no sentido de que há conveniência em haver uma certa constança no significado da terminologia corrente. As referências comuns parecem ser demasiado marcadas para que nos permitamos fazer uma generalização que vai afastar algumas delas do que passará a ser o significado corrente do casamento. Não parece admissível que o casamento passe a valer para seres com características diferentes daqueles que é tradicional ver nele.
Uma sociedade criativa logo construiria um estatuto novo, uma nova parceria, que servisse os homossexuais e que tudo fosse claro para a população. Nele se poderia incluir direitos e deveres, permissões e obrigações, tudo o que se julgasse adequado a duas pessoas que eventualmente até poderiam ter um passado em que já tenham usufruído do estatuto do casamento e transferissem para esse novo estatuto parte das responsabilidades já contraídas com o estatuto anterior. O problema parece estar mais na escolha da palavra com a suficiente “dignidade” para substituir o casamento.
No entanto os homossexuais são perseverantes, querem mesmo poder ascender ao estatuto do casamento, que direitos iguais ser-lhes-iam garantidos por outra qualquer via. Os homossexuais não desistem porque constituem um dos poucos lobbies organizados em Portugal e tem membros influentes em várias classes profissionais, em especial entre os chamados trabalhadores intelectuais. Na imprensa, na política, nos meios artísticos, os homossexuais revelam-se um grupo destemido e aguerrido. E existem fortes lobbies noutros Países. Também nesta questão o que a Europa aceita teremos que aceitar.
O objectivo dos homossexuais coincide, embora com motivação oposta, com o objectivo daqueles que se lhe opõem de forma absoluta e não lhes reconhecem direitos específicos. Ao levar a discussão para o domínio do casamento e colocando as coisas em termos de casamento ou nada estamos a atrofiar o âmbito que uma discussão deste tipo justificaria. Não se coloca assim a possibilidade de atribuir outro nome a este enlace com características próprias, nem se coloca outra qualquer forma de resolver o problema e quando assim é só podemos dizer sim ou não à solução proposta, o que é pouco. Cá por mim nestes termos abstenho-me.
Numa sociedade que já não põe entraves a levar à prática a atracção sexual pelo mesmo sexo, cheira a falso puritanismo estar a colocar entraves à legalização, via contrato público, de uma relação monogâmica que entre os seus objectivos também terá a salvaguarda da sua estabilidade e da sua segurança. Será despropositado pôr em referendo uma questão de direito. Poder-se-ia colocar a questão das obrigações a exigir a quem estiver interessado nesse enlace, mas quando tão pouco se exige no casamento tradicional haverá pouco a questionar.
O melhor é mesmo referendar o nome. Não é questão de somenos e da linguagem não se conhece outro proprietário que não seja o povo. Aí eu votaria não. Todos lucraremos em que a linguagem seja clara e não leve a equívocos. Lançar a confusão com a utilização de um termo que passaria a ser ambivalente só serve a quem quer retirar direitos ou a quem quer abusivamente um estatuto que historicamente lhe não cabe. O casamento não pode ser capote para corpos com atracções tão antagónicas.